A dor e a esperança do amor (e do teatro)

Crítica de Barba Azul – A esperança das mulheres, direção de Oscar Saraiva

23 de junho de 2012 Críticas
Foto: Divulgação.

A ocupação artística Vem!, do Teatro Gonzaguinha, no Centro Cultural Calaouste Gulbenkian, tem em sua programação uma plataforma que se dedica aos trabalhos recém saídos do âmbito acadêmico, que se chama Incubadora. Essa plataforma leva ao palco do teatro os trabalhos de companhias recém formadas, de jovens produtores, atores e também diretores. Esse espaço é o lugar em que esses jovens artistas podem mostrar suas experimentações a um público mais amplo e diversificado do que aquele que frequenta, normalmente, as universidades e escolas de teatro. É um espaço em que o novo ator/diretor/produtor e as companhias possam exercitar, bem como construir, sua liberdade artística, ao mesmo tempo em que desenvolvem sua autogestão, podendo trilhar um caminho mais profissional. Considero importante essa iniciativa dentro da programação do Teatro Gonzaguinha porque dissemina a possibilidade de reunir projetos artísticos que procuram de alguma forma encarar o teatro como o lugar da pesquisa, do campo da experimentação de novas linguagens estéticas, e dos riscos que isso pressupõe, e também a possibilidade do risco no campo das produções independentes e a sua exposição para um público além daquele do âmbito acadêmico. Acho importante disseminar o pensamento crítico sobre esses trabalhos. Muitas vezes, vêm carregados de forte caráter colaborativo, tanto na sua produção como na sua estrutura poética.

O primeiro trabalho do Incubadora a que pude assistir foi Barba Azul – A esperança das mulheres, peça dirigida por Oscar Saraiva e que é oriunda do curso de artes dramáticas do Centro Universitário da Cidade, sendo assim, uma peça de formatura. O texto é de Dea Loher, dramaturga alemã que se inspirou no conto de fadas do século XVII, La Barbe-Bleue de Charles Perrault. No conto, um aristocrata extremamente feio, e que possui uma excêntrica barba azul, mata suas mulheres após casar-se com elas, escondendo-as num quarto em seu enorme castelo. Mas Dea Loher não faz uma adaptação do conto aos dias atuais. Ela o toma como pretexto, uma inspiração para falar dos relacionamentos afetivos fadados ao fracasso e ao inevitável desencontro de “almas gêmeas” no ciclo caótico da sociedade contemporânea em que vivemos.

O drama da autora alemã narra a história de Henrique (Iuri Kruschwesky), um vendedor de sapatos femininos (eis aí a presença de um fetiche sexual masculino, o pé de uma mulher!), morador de uma grande metrópole, um homem “sem imaginação”, como a própria autora descreve, e seus encontros fortuitos e sequenciais com sete mulheres solitárias. À medida que ele vai se relacionando com essas belas mulheres, ele mata, sem dó nem piedade, friamente, cada uma delas, como no conto de Charles Perrault.

O texto é dividido em cenas narradas pelo personagem Henrique e pelas mulheres. Essas narrações são entrecortadas por diálogos curtos e ágeis entre cada encontro de Henrique com sua “presa”. A narrativa é fragmentada no sentido de não haver uma lógica ficcional da história com início, meio e fim. Cada cena de Henrique com uma mulher se estabelece como um bloco de falas, de diálogos rápidos e objetivos. A estrutura de blocos narrativos, que não quer dar conta de uma coesão linear da história, estabelece um espetáculo em tom de depoimento dos personagens para o público e de cada mulher para Henrique. E, em certa medida, dos atores diante do espectador, pois é possível perceber a atitude de desconstrução de camadas do personagem pelo ator em cena.

Fica a cargo da personagem Julia, a cega (Mariana Terra) ser uma espécie de narradora onipresente, intercalando monólogos direcionados para Henrique e para o público. Suas falas exprimem metaforicamente a solidão que sua cegueira lhe propiciou e que se reflete na trajetória do personagem Henrique, que quer amar a todas, mas só consegue lhes dar a morte em troca. Os diálogos entre as mulheres e Henrique exprimem a dor e a angústia de cada personagem diante do problema do amor e do desejo: Júlia, o primeiro amor (Marianna Pastori), Judite, a insone (Etiene Mascarenhas), Anna, a amiga (Nayana Carvalho), A prostitua, (Thaissa Yumi), Eva, a mulher com revólver (Nataly Batistela) e A audaciosa (Larissa Chiben) aparecem como tipos, o que é evidenciado na dramaturgia, que apresenta a personagem com um nome seguido de uma identificação subjetiva, denotando a solidão e a busca por algo que dê sentido às suas vidas. Essas mulheres, por algum motivo que desconhecemos, vêm em Henrique a esperança do amor para suas vidas vazias de afeto. Pedem que o mesmo satisfaça seus desejos, dos mais óbvios, como a prostituta que quer ser amada e escolhida, como o desejo de levar um tiro no coração (metáfora da morte por amor).

A encenação de Oscar Saraiva é bastante fiel à estrutura narrativa do texto de Dea Loher. O diretor conserva o caráter narrativo em que os atores se dirigem diretamente ao espectador, traçando comentários sobre a trajetória do personagem central e de cada mulher. Do palco, os atores recebem o público, já caracterizados por seus personagens. Mas essa condição é tensionada na medida em que eles se colocam na condição do ator sem disfarces, e que se dispõem ao contato direto e objetivo com o espectador. Da mesma forma que vemos os personagens, vemos os atores no esforço de mostrá-los, marcando-os como tipos com gestualidade, fala e corpo definidos em cada construção.

Na cenografia de Carlos Augusto Campos tem destaque o fundo do palco, que é recoberto por uma espécie de quadro negro, em toda a extensão longitudinal do espaço cênico, que está todo escrito com giz branco. São palavras aparentemente soltas, que lotam o espaço do quadro e parecem ter sido escritas aos poucos, à medida que a peça foi sendo levantada, trabalhada e, finalmente, apresentada. É como se esse quadro tivesse sido preenchido ao longo do processo criativo e exprimisse a vontade de cada ator e da equipe envolvida na criação, de externar sentimentos, dúvidas, questões, dores e paixões tanto em relação ao que o espetáculo trata como ao próprio sentido de ser essa uma peça de caráter universitário, recém saído do âmbito acadêmico e assim, carregado das dúvidas legítimas de jovens artistas. O cenário é ainda composto por bancos de madeira e duas penteadeiras com lâmpadas nos espelhos, o que reflete a intenção de mostrar os bastidores de uma peça, a sua preparação, a preparação de cada ator e de todo o coletivo.

Dâmaris Grün é atriz formada em Teoria do Teatro pela Unirio

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