Tensão entre o insinuado e o sublinhado

Crítica da peça Agreste Malvarosa

26 de fevereiro de 2010 Críticas
Atrizes: Rita Elmôr e Millene Ramalho. Foto: Marcos Souto Soares.

Através de uma estrutura oscilante entre a narração dos fatos e a encarnação das personagens, Newton Moreno aborda em Agreste (rebatizado de Agreste Malvarosa, subtítulo do texto, segundo o próprio autor) a sexualidade pela via do afeto e o desconhecimento do corpo, evideciados por meio da história de um casal unido há mais de 20 anos até que a morte de um deles suscita uma revelação que descortina a ignorância furiosa dos moradores de um isolado vilarejo no sertão.

Diretores do Amok Teatro, convidados para assinar essa montagem, Ana Teixeira e Stephane Brodt, porém, aproximam as bases do registro de atuação empregado na narração e na interpretação das personagens. Em ambas as esferas sobressai o envolvimento das atrizes Millene Ramalho e Rita Elmôr com a tragédia que desponta diante do espectador. As atrizes portam máscaras faciais constantemente carregadas, investem em trabalhos de composição (postura curvada, voz frágil, gestual trêmulo), sublinham a adesão à via-crúcis das personagens.

Há uma exposição do sentir, uma evidenciação de um colamento algo ingênuo entre atrizes e personagens na contramão de um distanciamento narrativo. Talvez o realce do comprometimento das intérpretes com o drama das personagens, que pouco se altera na instância da narração, esteja fundado num desejo de fazer do ato de narrar uma forma de presentificar o passado, de reviver experiências determinantes por meio de uma fala evocativa, ainda que os protagonistas da história não tenham sobrevivido para relatar o ocorrido.

Em todo caso, a evocação do passado é materializada com precisão na gramática gestual das atrizes – gestos sugestivos, propositadamente incompletos como se se esfumaçassem no ar durante a sua realização; gestos que esboçam vivências e traduzem sensações. Nesse sentido, o passado é redimensionado em cena com mais força pela via da sugestão do que pela da explicitação. Existe uma tensão entre polos extremos (também presente na música de Beto Lemos, que ora pontua a cena com delicadeza, ora reitera climas, como na sonoridade que reforça o momento de revelação da verdade) atravessando a encenação de Agreste Malvarosa.

A expressividade do insinuado se impõe na sequência do enterro, na qual Ana Teixeira e Stephane Brodt potencializam a imagem do corpo invisível do morto através de sugestões de presenças (o corpo deitado que não se vê, mas se intui devido a elementos como chapéu e sapatos). Na contramão de qualquer eventual ambição ilusionista, os diretores assumem a construção da cena diante do espectador, a exemplo do aproveitamento dos dois grandes bancos de madeira para simbolizar o caixão. Investem numa relação direta com a plateia, seja ao aproximar o público da cena, seja ao fazer com que as atrizes narrem determinados trechos do texto de Newton Moreno buscando o olhar de cada espectador.

Há um inegável rigor na realização de Agreste Malvarosa. Stephane Brodt assina a cenografia, que elege a palha como elemento principal. O cercado que delimita a área de atuação no Teatro do Jockey sugere não apenas o espaço interno onde vivem os personagens centrais (composto por um básico austero – cestos, cadeiras, bancos, santuário e cruz) como a claustrofobia de um mundo arraigado e intolerante.

Também responsável pelos figurinos, Brodt investe em panos rústicos, lenços e couro, materiais escolhidos para cobrir personagens que desconhecem seus próprios corpos, mesmo que este desconhecimento não as impeça de exercer a afetividade. A iluminação de Renato Machado valoriza as marcações de cena e pelo menos um momento deve ser mencionado: aquele em que lança focos sobre as atrizes, dispostas uma em frente a outra, quando narram a descoberta dos corpos alheios.

Agreste Malvarosa é uma revisita a Agreste, encenado anteriormente por Marcio Aurelio. O casal era interpretado por atores (Paulo Marcello e João Carlos Andreazza), enquanto que a montagem de Ana Teixeira e Stephane Brodt traz duas atrizes, opção que gera uma relação mais literal com o texto de Newton Moreno. Eventuais discordâncias à parte, o espetáculo porta o profissionalismo que tem marcado as montagens do Amok.

Site da Cia. Amok Teatro

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