Histórias de família e a poética do real

Crítica da peça Histórias de família, da companhia Amok

29 de julho de 2012 Críticas

A Cia Amok, através da trilogia da guerra, vem propondo uma reflexão sobre as subjetividades que vivenciam grandes conflitos bélicos e também uma nova forma de fazer um teatro político. Em Dragão, de 2008, o tema era o conflito entre palestinos e israelenses, a partir de depoimentos tirados da realidade, como no teatro documentário. Em Kabul, de 2010, a matéria principal partiu do romance Andorinhas de Kabul e de uma imagem real de uma mulher de burca sendo assassinada no estádio de Kabul para falar da total perda de humanidade. Em Histórias de família, a Amok optou por representar um texto dramático de uma escritora sérvia que vivenciou a guerra da Bósnia.

Para falar do aniquilamento de pessoas que a guerra causou na Bósnia, Biljana Srbjanovic escreveu Histórias de família. O conflito na ex-Iugoslávia testemunha uma limpeza étnica comandada pelas tropas sérvias, marcando a irrupção da barbárie na própria Europa. Neste caso, o real se torna tão imediato e possui uma tal dimensão de barbaridade que foi preciso fazer uma elaboração estética complexa. A autora trata de um drama familiar interpretado por atores que interpretam crianças, que por sua vez brincam de representar os adultos. Ela quis mostrar a falta de coerência do mundo dos adultos e de como eles podem se comportar como crianças de uma maneira irresponsável com as questões do mundo.

A encenação da Amok propõe um jogo de quatro personagens diante de uma plateia de bonecas, todas mutiladas, simbolizando a infância perdida dentro de um contexto de perda de valores imposto pela guerra. Os personagens não apresentam nenhuma psicologia, a brincadeira deles é agredir e violentar o outro, seja com palavras ou com violência física.

Esta peça tem referência no teatro pós-dramático, proposto por Lehmann, no sentido em que não possui uma sequência linear como na estrutura do drama, mas apresenta cenas independentes que terminam e depois recomeçam como se nada tivesse acontecido. Cada quadro explora uma possibilidade de jogo que conduz ao parricídio (o filho que mata os pais). No final do primeiro quadro, o filho, Andria, espalha gasolina nos seus pais que estão dormindo e na casa inteira que pega fogo. No entanto, na cena seguinte, todos os personagens reaparecem vivos.

Conforme afirma Lehmann, no teatro pós-dramático, a função da arte é uma via negativa, não no sentido de ser triste ou violenta, mas ela pode ter a ver com o riso, com o grotesco e com a coisa sem sentido. O mundo da criança é um mundo sem sentido e, com a arte, surge a possibilidade de retornar a este mundo. O fato de as cenas terem como relevância a violência, a perda de valores, a denúncia, a brutalidade com os filhos e com a mulher, além do fascínio pela morte do filho que mata os pais, pode funcionar como um choque, fazendo com que se passe a pensar sobre esta realidade.

A questão da política, para Lehmann, está relacionada com a forma como se trabalha a percepção destas questões, de como o teatro pode mudar as formas de percepção das questões políticas. Neste sentido, a via negativa criada pelo pós-dramático pode estabelecer as novas formas de um teatro político ao destruir a tradição de contar histórias como no drama e estabelecer uma interrupção das cenas, além de uma perturbação no espectador.

A diretora Ana Teixeira e o ator Stephane Brodt, também responsável pela adaptação e direção, mais uma vez continuam enaltecendo o seu grande trunfo que é a poética corporal dos atores. Stephane Brodt, Bruce Araujo, Rosane Barros e Christiane Góis criam imagens perfeitamente desenhadas, revelando grande força e energia, característicos do intenso treinamento realizado pela Companhia.

Os atores interagem uns com os outros pela sincronicidade dos movimentos, onde se pode perceber uma partitura corporal de cada ator ao se relacionar com os vários objetos que compõem o cenário de uma família decadente: um velocípede antigo, duas cadeiras de rodas (tiradas de hospitais psiquiátricos) que eles usam de várias formas e ainda com a luz, que muda de enquadramento, criando diferentes espaços e tempos pelo jogo dos atores.

A estratégia usada pelos atores ao representar crianças e, ao mesmo tempo não se tornarem infantis, não foi a de imitá-las, mas de buscar a infância na maneira de atuar. Os atores optaram por trabalhar com as emoções indo até o limite, passando de uma situação de riso extremo para de raiva em segundos. Esse jogo exige um extremo preparo físico dos atores tanto com a voz quanto com o corpo, que deve estar flexível para reagir.

A música é um fator importante no espetáculo, diferentemente dos anteriores, que tiveram um músico tocando instrumentos ao vivo. Ela estabelece um tom circense que rompe com a violência e a crueldade dos diálogos da peça. A música cria um ambiente lúdico e influencia no ritmo dos atores ao levá-los para o plano da brincadeira e da ironia das situações.

O espetáculo dialoga diversas vezes com o real como, por exemplo, na notícia de jornal lida pelo personagem Voiji no início do espetáculo, notícia esta tirada de um acontecimento da época; na cena em que a personagem Milena lava as bandeiras dos países que estiveram em guerra sem conseguir tirar o sangue dos mortos, que foi um acontecimento real; e na cena final, quando a personagem Nazdege, que passou toda a peça calada sendo tratada como um cachorro pela família, recupera a fala e conta como perdeu seus pais.

Esta cena final é tocante não somente porque o seu depoimento, tirado de um documentário sobre as crianças que sobreviveram na guerra, narra que ela ainda sente a presença do pai, mas também porque o depoimento acontece ao mesmo tempo em que as cenas reais da guerra são projetadas na janela da casa, mostrando que a guerra acaba, mas os fantasmas continuam a assombrar a vida dos que ficam. Encontra-se aqui outra relação entre teatro e história, ou seja, a dramaturgia textual e a poética da cena também criam um efeito no real. As novas vozes, antes desconhecidas, começam a ecoar através dos signos de teatralidade dos atores. A arte pode dar a ver o real de outra forma, como uma partilha do sensível, conforme expressão de Jacques Rancière, ou seja, como novas possibilidades de perceber e de se sensibilizar com o mundo.

O teatro da Amok partilha uma nova forma de teatro político, não ao abordar diretamente a macroestrutura da história da guerra, mas ao abordar as subjetividades dentro do núcleo familiar, que são a estrutura da sociedade. A Amok procura novas formas para lidar com o real, sempre priorizando a poética corporal dos atores como condição essencial para este diálogo.

Referências bibliográficas

LEHMANN, Hans Thies. O teatro pós-dramático. Trad. Pedro Sussekind. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

——-. Escritura política no texto teatral. São Paulo: Perspectiva, 2009.

RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível. Trad. Monica da Costa Netto. São Paulo: Ed. 34, 2005.

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