Um Galpão realista

Crítica do espetáculo Tio Vânia (aos que virão depois de nós), do Grupo Galpão, de BH

22 de abril de 2011 Críticas
Foto: Bruno Tetto.

O Grupo Galpão se propôs a trilhar um território inesperado ao eleger uma peça de Anton Tchekhov como base de seu próximo espetáculo, o primeiro encontro com a diretora conterrânea mineira Yara de Novaes. Impelido pelo desejo de experimentar uma construção mais intensa de personagens, pôs de lado a tradição mambembe, popular e a comédia, que em 29 anos de trabalho coletivo entre atores rendeu seus maiores êxitos (como Romeu e Julieta, de 1992, Um Moliére imaginário, de 1997, ou o mais recente, Till – A saga de um herói torto, de 2010). Abandonada a zona de conforto – embora a constante rotativa de diretores convidados sobre a qual se funda a trajetória do grupo testemunhe contra a noção de conforto – para se lançar na experimentação de um teatro realista de fundo psicológico – estética relativamente inédita para os atores, ao menos nessa gradação.

Sob os desígnios do diretor Paulo de Moraes, em 2007, o Galpão havia já se aproximado do realismo de matizes melodramáticas, ao encenar uma seleta de contos autobiográficos provenientes de um concurso aberto a que o público contasse suas histórias. Pequenos milagres, espetáculo produzido então, trazia aos atores a semente do desafio de se pôr em outra chave de interpretação. Foi, contudo, uma experiência menos radical devido à própria diferença de complexidade e estrutura dos textos e dos personagens que os habitam.

Tio Vânia dispõe caracteres humanos mimetizados da realidade russa do fim século XIX, quando a peça foi escrita por Tchekhov para o Teatro de Arte de Moscou (fundado por Konstantin Stanislávski e Vladimir Nemiróvitch-Dântchenko), no contexto das primeiras rupturas com o drama moderno – desdramatizado à medida que levava o realismo às últimas conseqüências e denunciava um contexto sociopolítico de iminente transformação, mas precedido por uma condição de grave aporia, pela qual as ações voluntárias eram autocanceladas, fosse a venda da fazenda, o encontro clandestino de Helena com Ástrov ou as tentativas de assassinato e suicídio de Tio Vânia. A peça em quatro atos, embora guarde a rigidez formal de um momento anterior da dramaturgia universal, revela inquietações contemporâneas sobre o homem e o meio ambiente, as relações de trabalho e a cultura.

Foto: Bruno Tetto.

A adaptação feita no espetáculo que o Galpão estreou em abril, no Festival de Curitiba, batizada de Tio Vânia (aos que vierem depois de nós) respeitou a linearidade do texto original, sintetizou cenas e excluiu a personagem da ama, sem que a essência da forma e do conteúdo se alterasse mais do que o reforço crítico ao hábito de embebedar-se de vodka. A relação com o espectador se manteve distanciada pela disposição frontal da plateia. Preservada a quarta parede, a ilusão construída no interior das cenas se quebra pontualmente nas mudanças expostas do cenário, ocasiões aproveitadas pela direção não somente para revelar a artesania teatral, como também para, rompendo o realismo, encaixar alguma poesia visual.

O cenário primeiro com o qual o público se depara traz esse traço de estranhamento poético no detalhe de uma árvore seca fincada na grande mesa em torno da qual debatem os personagens, símbolo outonal. O realismo é reafirmado na madeira sólida de que é feita a mesa e no café da manhã com queijo e pão (uma licenciosa troca dos costumes russos pelos mineiros), ao mesmo tempo em que a árvore e as cadeiras de variados tipos (até mesmo as escolares, de aparência improvisada) remetem o espectador à consciência da cena armada, da invenção. Esse movimento contraditório entre reafirmar a ilusão e trair-se percorre toda a encenação, como resposta ao problema de se montar um drama realista em palco contemporâneo. Se a música é em parte executada ao vivo em um violão espanhol cujos sons funcionam dramaturgicamente a delinear as emoções dos personagens e em parte executada mecanicamente, mas fingindo-se brotar do interior da cena (como quando se liga o rádio), é a batida de um relógio ausente (o que ilustra a cena está parado) que com as pancadas ritmadas da bengala da Mãe constituem os principais marcadores temporais responsáveis por embalar a encenação em um ritmo próprio.

Foto: Bruno Tetto.

O cenário derradeiro, descortinado ao cair de uma tela branca que isolava a grande mesa, evidencia plasticamente outra ruptura com o realismo em favor da metáfora, ao revelar o espaço ocupado outra vez por cadeiras mais meia dúzia de pilares esparsos que nada sustentam e cuja marca visual é a semidestruição. É curioso notar que, no ensaio geral realizado uma semana antes da estreia em Curitiba, os pilares eram movidos pelos atores inúmeras vezes durante a apresentação, sem que tais deslocamentos reelaborassem ambientes definíveis. Além do que, concediam uma dinâmica de ocupação espacial estranha à apatia e imobilidade que caracterizam profundamente os personagens de Tchekhov. À altura da estréia, porém, essa movimentação já havia sido alterada, restando apenas três momentos bastante definidos em que os pilares são redistribuídos sobre o palco, marcando transições espaço-temporais.

Essas transições, assim como os raros instantes em que um dos personagens se abandona ao monólogo interior, constituem os momentos nos quais a diretora exerce a criatividade com maior liberdade de abstração e metaforização – exemplo é a cena em que Vânia rememora em voz alta e solitário a época em que conheceu Helena, enquanto ela, apartada em um plano onírico, cumpre uma movimentação coreografada de gestos líricos e lânguidos, rumo ao fundo do palco. Antes, na passagem do primeiro ao segundo ato, também Helena protagoniza um instante de exceção, quando erguida e posta sobre a mesa, despe o vestido e veste a camisola enquanto o móvel (com ela) é retirado do palco. Há ainda uma liberdade maior nos trânsitos secundários que os personagens fora de cena desempenham ocasionalmente ao fundo.

Os respiros poetizados deixam entrever a sedução na personagem, como não ocorre no curso padrão das cenas. Em torno dela vivem todos, os homens, apaixonados, e mesmo as mulheres, prontas a tudo largar para lhe dar atenção. Na construção da atriz Fernanda Vianna, a preguiça e a sensação de que viver lhe pesa são enfatizadas, junto a uma completa inadequação ao ambiente da fazenda e ao desinteresse pelo que se passa ao redor. A atriz investe nos gestos e trejeitos, o corpo que se arrasta, o olhar nublado a percorrer as laterais do ambiente sem se fixar, as mãos inquietas. Na execução, ainda revela o esforço, atraindo a atenção para o ato de interpretar, enquanto personagens como a Mãe (Teuda Bara) e, sobretudo, Sônia (Mariana Muniz) e Ástrov (Eduardo Moreira) fluem imputando mais verdade à revivescência de emoções e sentimentos – a primeira, como a velha representante de uma geração decadente a quem não mais se quer ouvir; a segunda, moça firme embora cansada, que deposita a ansiedade no girar da colher pela xícara de café; e o terceiro, médico consciente das falhas humanas, inclusive das que ameaçam o meio ambiente, mas suscetível a um copo de vodka, portador de uma fala vigorosa e entusiasmada, carregando os resquícios de encantamento de um belo homem em decadência.

Paulo André acrescenta à maquiagem o andar e a voz desconjuntados ao fazer Teleguine, personagem a esmo, que serve ao contraste da classe trabalhadora vulgar contra a decadência intelectual e financeira da velha aristocracia, representada, por sua vez, pela afetação de Serebriakov (Arildo de Barros). Por esse mesmo raciocínio, pode-se entender a entrega do papel de Vânia a um ator marcado pela chave cômica como Antonio Edson como outro ponto de referência para o contraste da classe média de aparência ordinária e modos grosseiros, mas detentora da disposição ao trabalho que move o mundo, versus a elegante indolência ociosa e o verniz cultural dos proprietários da terra, cuja supremacia, tal como se conheceu, está com o tempo contado. Ainda assim, destoa a falta de contenção física, que mantém a construção de personagem no campo cômico do patético.

Guiado por Yara de Novaes, o Grupo Galpão se arrisca mais em relação à sua própria história do que ao teatro em si. A um grupo estável mas inquieto como este, há de ser mais um passo que conduz aos que virão depois.

Foto: Bruno Tetto.

Informações sobre temporadas no site do grupo: http://www.grupogalpao.com.br/port/home/

Luciana Eastwood Romagnolli é jornalista formada pela Universidade Federal do Paraná, com especialização em Literatura Dramática e Teatro, e atua no jornal mineiro O Tempo.

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