Somos todos elefantes

Crítica da peça O homem elefante, da Cia Aberta, com direção de Cibele Forjaz e Wagner Antônio

28 de maio de 2015 Críticas
Foto: Rodrigo Costa.
Foto: Rodrigo Costa.

Vol. VIII nº64, maio de 2015.

Resumo: A peça O homem elefante mostra a história de um jovem londrino da segunda metade do século XIX, nascido com uma deformidade que o afasta do convívio social e o transforma em atração de freak shows. A teatralidade da encenação promove apreensões que tensionam as noções de natureza e ciência e ainda revelam certas questões relativas à alteridade.

Palavras-chave: alteridade, teatralidade, Bernard Pomerance, Cibele Forjaz

Abstract: The play O homem elefante tells the story of a young man from mid-17th century London. He was born with a deformity that keeps him from social contact and transforms him into a freak show attraction. The staging theatricality promotes tensions between the notions of nature and science, and reveals certain questions about the matter of alterity.

Keywords: alterity, theatricality, Bernard Pomerance, Cibele Forjaz

 

Somos todos elefantes

O Homem Elefante, peça da Cia Aberta em parceria com a diretora Cibele Forjaz e Wagner Antônio, iniciou temporada no teatro do Oi Futuro Flamengo no final de 2014, estendendo suas apresentações até fevereiro de 2015. O projeto foi idealizado pelos atores, Daniel Carvalho de Faria, Davi de Carvalho e Vandré Silveira, fundadores da Cia Aberta, e estes ainda dividem a cena com a atriz convidada Regina França.

A peça mostra a história de John Merrick, um jovem londrino da segunda metade do século XIX. A dramaturgia, apoiada no texto escrito em 1977 por Bernard Pomerance, nascido no Brooklyn, Nova York, em 1940, desenvolve o caso verídico de Merrick, portador de uma rara doença congênita causadora de calosidades iniciais em seu lado esquerdo do corpo e estendidas, com o tempo, para toda a superfície corporal. Sua aparência extremamente disforme criou sérios impasses para o convívio social e o destinou a se tornar atração de shows de aberração, os chamados freak shows.

Em certa ocasião, o médico anatomista Frederick Treves toma conhecimento da existência de Merrick e lhe oferece condições de cuidados no Hospital de Londres. Após uma incursão pela Bélgica, justamente por causa da proibição desses shows na capital londrina, Merrick retorna a Londres bastante doente e é acolhido por Treves, que passa a alojá-lo em um quarto especial do hospital sob tratamento e como objeto de estudo. Nessas condições, ele desenvolve uma série de habilidades e, de modo particular, a linguagem. O desenvolvimento da linguagem e, consequentemente, da capacidade de comunicação, é aquilo justamente que insere Merrick em uma comunidade de sentido e estabelece uma tensão de cunho ontológico. Se, por um lado, o ato de se comunicar e de expressar seus sentimentos e pontos de vista se torna forte apoio para que o jovem transforme sua condição natural de deslocado social, sempre será também o veículo por onde é cooptado como um produto da cultura.

Com o tempo, Merrick se torna uma espécie de celebridade estranha da sociedade vitoriana, que faz incursões ao hospital para conhecê-lo em uma mistura de curiosidade e estupefação. O doutor Treves adquire renome, inclusive o título britânico de Sir, tanto pelos estudos científicos do caso, quanto pelo tratamento humanizante concedido ao jovem. Pomerance não foi o único a enxergar o potencial estético e ético do caso e a elaborar uma narrativa que problematiza em sua forma a questão da alteridade. O diretor David Lynch realizou um filme para o cinema em 1980 com John Hurt, como Merrick, e Anthony Hopkins, como Treves. É possível perceber no filme de Lynch a formalização de uma narrativa visual que sublinha a experiência daquele que olha o outro todo o tempo como diferente.

A alteridade pode ser entendida como um regime que, ao contrário de anular as diferenças, procura traçar a recusa identitária na direção de formação de uma sociedade que paga tributo à multiplicidade. A sociedade contemporânea, pressionada por diferenças emergentes no mundo todo, muitas vezes trata a alteridade por um viés inverso, ou seja, procura desfazer as diferenças em nome do homogêneo e de uma identidade única. É claro que estamos diante de uma crise aberta e não de definições, pois os sistemas de dominação precisam manter as oscilações entre o homogêneo e o múltiplo, entre o privado e o público, se quiser garantir seu lugar no ambiente atual tecnológico. Um dos modos de aproximação da noção de alteridade que a peça revela pode ser encontrado em Jacques Derrida, sobre o sentido da hospitalidade com o outro, em que esse autor nos aponta que todo o movimento de acolhimento do estrangeiro congrega em alguma medida a exclusão e o medo patológico.

Outra forte interlocução com a dramaturgia é o próprio livro de Treves, que reúne uma série de relatos de seus casos médicos, no qual a pesquisa realizada pela Cia. Aberta encontrou descrições e considerações do médico a respeito do Homem Elefante, como era chamado Merrick, dada sua aparência disforme.

Foto: Rodrigo Costa.
Foto: Rodrigo Costa.

Investimento nos recursos de teatralidade

Sabemos que partir de um material fabular no teatro da atualidade, tendo como opção contar uma história, traz à tona a necessidade de realizar operações dramatúrgicas juntamente com a criação da encenação. Como ressalta Jean-Pierre Sarrazac em O futuro do drama: “Escrever no presente não é contentar-se em registrar as mudanças da nossa sociedade; é intervir na [conversão] das formas” (SARRAZAC, 2002). Em O homem elefante, a junção da dramaturgia de Pomerance com o relato médico de Treves promoveu sua tradução numa cena que tensiona certos lugares de existência nos quais transitamos e que se tornaram cada vez mais presentes a partir do evento da modernidade, materializados em dois planos: o da natureza e o da ciência.

Em princípio, não se trata de entendermos esses planos como pura dualidade, como se eles pudessem ser totalmente diferenciados e estanques. A cenografia de Aurora dos Campos realizou os dois planos como rebatimentos um do outro, o que nos faz apreender que está implícito um movimento pulsional entre eles, ou seja, um trânsito de impulsos energéticos na estruturação de cada um deles. O plano da natureza localizado no pequeno palco do teatro comporta inicialmente um breve prólogo em que os espectadores são alojados em pé, lado a lado, onde é apresentada a história um tanto fantasiosa do nascimento de Merrick por meio de recursos de encantamento do teatro de sombras e toques de grafismo. Mais adiante na peça, será neste plano em que se revela a a humanidade dos personagens, não sem nuances e conflitos de suas personalidades — lugar de representação da exploração da condição natural de Merrick, vista como aberração em tensão com as tentativas de aproximação compassiva do outro em relação a ele. Uma das imagens mais marcantes do regime sensível que constitui tal instância de tensões é a leitura corporal de apuro estético que o ator Vandré Silveira, na pele de Merrick, realiza numa tortuosa dança — ao mesmo tempo atlética e encarnada — como uma crise aberta nos traçados harmônicos do corpo.

A meu ver, a teatralidade que se investe neste plano quer dar a ver um forte aspecto de construção no que diz respeito às nossas apreensões do que seria a natureza humana, desfazendo tal noção como uma totalidade única e sim como algo atravessado pelos elementos da cultura. Se pudermos tomar a teatralidade como uma noção complexa que, para além de estar relacionada com certa adjetivação que “designa algo ostensível ou empreendido para gerar efeito” (MOSTAÇO, 2010, p. 37), visa a um trabalho de arte que convoca o comparecimento de sentidos múltipos no espectador e geradores de uma recepção mais fina em relação aos aspectos de construção daquilo que normalmente denominamos por realidade. Como destaca Edelcio Mostaço:

Vsévolod Meyerhold, ao promulgar o [teatro teatral] por ele forjado, insistia em destacar na cena exatamente seu aporte construído, produzido, resultante de signos inflados de significação que poderiam facilmente ser tomados como símbolos e alegorias. A teatralidade, nessa acepção, emerge valorada positivamente, como uma virtude da arte.” (op.cit).

No plano da ciência como rebatimento dos aspectos mais expressionistas do plano anterior, o desenho luminoso e a cenografia fazem prevalecer a frieza, o homogêneo, dando ênfase à racionalidade e ao distanciamento. Aqui se desenvolvem as cenas do hospital, os enunciados de Treves e a composição do corpo-máquina do Homem Elefante. Tal corpo-máquina, como estamos denominando, se instaura a partir da ação do médico (a ciência) embutindo hastes, aparentemente de metal, nas diferentes partes do corpo de Merrick para lhe corrigir a postura e fazê-lo galgar a verticalidade humana. Não passa despercebido ainda que uma haste pode ser algo que se aloja como suporte em objetos, mas também é parte de um vegetal, ou mesmo de um corpo animal. Não estaríamos aqui diante de uma imagem que congrega um futuro, ou uma possibilidade sempre em devir entre natureza e ciência, ou então um entre corpos humano e animal? Não estaria anunciada também a condição de diferente que, para além de ter como destino sua anulação, pode inferir novos modos de sensibilidade no âmbito social?

Gostaria ainda de pensar neste ponto juntamente com Hans Thies-Lehmann (2007) em O teatro pós-dramático. Esse autor ressalta uma operação presente nesse constructo denominado por ele como “teatro pós-dramático”, que alude a uma forte qualidade ambígua do corpo no teatro contemporâneo. Em sua perspectiva, a presença viva, carnal, do corpo e a noção de hybris que permeia as origens das manifestações teatrais configuram ambas um estado de perigo permanente para este corpo, que estaria sempre na iminência de ser transformado, de revelar outra condição, de arriscar por meio de seus gestos a sua própria visibilidade, para dar lugar à outra imagem que, de certo modo, deve se insurgir contra a primeira, ou seja, a presença viva. A meu ver, este corpo-máquina de Vandré como Merrick na referida cena, ao tornar visível os constrangimentos e as dores de seu corpo monstruoso em meio à sua nova condição vertical (não animal), atua como uma alegoria, como um dispositivo que indiretamente em sua aparência provoca outra imagem. Tal dispositivo alegórico pode ser tomado como hipótese para a encenação, na medida em que esta parece revelar um mundo baseado em comportamentos artificiais, seja por meio de estereótipos de personagens, seja por fixidez ou distanciamentos, ou mesmo uma espécie de comoção esperada em relação à condição de Merrick.

No meio desses dois planos elevados está o lugar em que se posicionam os espectadores, um lugar de desconforto, de trânsito, que convoca o espectador a virar o corpo para ver as cenas que não desvinculam o olhar do corpo. Se pudermos considerar, como salientou o mestre de teatro polonês Jerzy Grotowski, que a montagem do espetáculo se faz na mente do espectador, é possível pensarmos em uma apreensão que guarda mais uma complexidade. A plateia assim posicionada parece coabitar um fluxo de recepção que desloca o acentuado teor histórico ou contextual da recepção da narrativa que conta a vida do protagonista, gerando problemas para uma transposição interpretativa imediatista. O que parece relevante nessa construção cênica é o enfrentamento da história contada como produção de significados simbólicos e alegóricos que solicitam decifrações e percepções interpretativas, realçadas pela relevância sensorial dessa plateia colocada meio de viés.

Foto: Rodrigo Costa.
Foto: Rodrigo Costa.

A perspectiva do diferente

A meu ver, a hipótese de encenação baseada em alguma medida na noção de alegoria vai ao encontro do olhar do diferente. Não que essa percepção seja uma construção absolutamente clara, talvez se trate de um modo muito particular de aproximação da minha própria recepção, na qual a encenação é o resultado da leitura do mundo realizada por Merrick. Os registros de atuação que perpassam o melodrama novelesco em contraponto com momentos mais naturalistas provocam nosso próprio estranhamento. O homem é mostrado como um projeto artificial e as atuações denunciam as padronizações das construções sociais. Nossos modos artificiais de ser. É possível dizer que tal opção carrega um risco — o de se mostrar mais pedagogicamente, de se querer fazer entender ou ainda passar uma mensagem. Acredito que este seja um ponto crítico da peça, quando a cena parece querer se explicar e invoca para si um efeito moralizante.

 

Referências bibliográficas:

DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da Hospitalidade. Trad. Antonio Romane. São Paulo: Escuta, 2003.

LEHMANN, Hans-Thies. O teatro pós-dramático. Trad: Pedro Sussekind. São Paulo: Cosac Naif, 2007.

MOSTAÇO, Edelcio. “Teatralidade, a espessura do olhar” In: _______ (org.) Para uma história cultural do teatro. Florianópolis/Jaraguá do Sul: Design Editora, 2010.

SARRAZAC, Jean-Pierre. O futuro do drama. Trad. Alexandra Moreira da Silva. Porto: Campo das Letras, 2002.

Dinah Cesare é teórica do teatro, Professora Assistente no curso de Artes Visuais da EBA-UFRJ, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (EBA- UFRJ) dentro da Área de Teoria e Experimentações em Arte — Linha de Pesquisa Poéticas Interdisciplinares, e é mestra em Artes Cênicas pela UNIRIO.

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