A boa e bela alma

Crítica da peça a alma boa de Setsuan

10 de março de 2009 Críticas
Foto: divulgação.

A alma existe? Segundo Bertolt Brecht, não.

Para o maior teórico do teatro épico a humanidade prescinde dessa substância que, desde Aristóteles, permeou todas as indagações a respeito da natureza humana, constituída, segundo o filósofo grego, por três dimensões indissolúveis: a vegetativa, a sensitiva e a noética. Também alcunhada de chama, espírito, consciência, princípio vital, entre outras denominações, foi ela tomada como bela – a bela alma – após Schiller e o romantismo alemão, quando passou a reunir a capacidade de, simultaneamente,  ser graciosa (quando a sensibilidade coincide espontaneamente com a lei moral) e virtuosa (quando a vontade é determinada pelo dever), impregnando a cultura alemã com tais traços idealista e transcendente em relação aos instintos.

Rastreando tal percurso de significações, Brecht escreveu vários textos onde explorou a alma e suas vicissitudes sob o jugo capitalista, com destaque para A Alma Boa de Set Suan, em 1938-1941. Apelando para o recurso à parábola clássica, nela explora as contradições sociais numa China de papelão, tornando suas criaturas tipificadas pelo achatamento próprio às moralidades medievais.

Denise Fraga encarna a boa alma procurada pelos deuses nessa encenação de Marco Antonio Braz que, despida de dogmatismo e pontilhada de alegria, recria no palco um Brecht menos burocrático que aquele montado pelos grupos militantes.

A parábola

Escrita no início da expansão militar nazista, a peça se imposta claramente no esforço de conscientização frente ao inimigo. Sob a forma de parábola, a construção é modelada sem meios tons: a prostituta pobre Shen Te dá guarida aos deuses que visitam a Terra em busca de uma alma boa e, por isso, é por eles recompensada monetariamente. Com o dinheirinho, abre uma tabacaria, imediatamente achacada e chantageada por parasitas de toda espécie que ali vêem uma possibilidade de continuarem vivendo às expensas dos mais ingênuos. Para defender seu pequeno negócio, a pobre moça resolve assumir outra faceta, dura e arrogante, através da encarnação de um suposto primo, Shui Ta, que escorraça os pedintes e impõe uma nova ordem nas relações.

O negócio começa, então, a prosperar. Até o momento em que ela conhece um aviador prestes a suicidar-se e, mutuamente apaixonados, casam-se. Shui Ta, todavia, já havia transformado a modesta tabacaria numa próspera fábrica de cigarros; e o aviador, tendo se aproveitado da bondade de Shen Te, tenta comprar uma promoção. Em vista de sua astúcia, Shui Ta acaba empregando-o como feitor de trabalhadores da fábrica e tudo caminha no rumo da prosperidade propiciada pelo capital.

Até que um incidente vem perturbar aquela felicidade: a moça fica grávida. A partir daí, com o barrigão, torna-se cada vez mais difícil continuar a farsa da dupla personalidade e Shui Ta acaba indo a julgamento. Ali, um dos deuses preside a sessão e, entre acusações e defesas, a moça revela a verdade à Providência, criando um dilema insolúvel: o bem e o mal não podem habitar uma só pessoa – ou alma.  

Não fosse Brecht um poeta, tal enredo renderia apenas mais uma peça do tipo A Mais Valia Vai Acabar, Seu Edgar.

O símbolo

Grávida, Shen Te apercebe-se de sua dupla personalidade e tece considerações sobre as dificuldades de viver num mundo caótico e injusto. Ao feto, ela declara: “o mundo espera em segredo. Mas já o murmúrio corre pelas cidades: um homem vai chegar e será preciso contar com ele. Quero ser boa contigo, e, se for preciso, com os outros serei um tigre, um animal feroz. E é preciso.” Tal situação remete a duas conhecidas imagens: à da bíblica Virgem Maria e à cena final de O Exterminador do Futuro. E as três, ao símbolo maior que as conforma: ser mãe é arcar com todos os sacrifícios em nome do filho, do futuro, do porvir. Esse o símbolo da parábola.

É poético, sem dúvida. Resta saber se alguém ainda leva isso a sério.

E assim, desfazendo o sublime símbolo da bela alma, Brecht escorraça de cena todas as edulcoradas imagens de salvação, sacras ou laicas. Uma mãe sabe, mais do que ninguém, que a vida é uma guerra e, portanto, luta com dentes de tigre contra todas as adversidades. É o que fazem as protagonistas de A Mãe,  Mãe Coragem, Os Fuzis da Sra. Carrar e O Círculo de Giz Caucasiano.  

Shen Te, todavia, não chega a tanto, uma vez que sua história termina antes. Desfeito o arranjo da duplicidade ética, ela chega ao paradoxo que culmina o texto, indagando diretamente a platéia sobre a necessidade de um mundo melhor, onde se possa ser bom; e que, se tal mundo ainda não existe, é preciso criá-lo.

Em 1938  a ameaça hitlerista parecia incontrolável e foram necessários muitos esforços para conter seu triunfo na Europa. Na perspectiva de hoje, com as guerras do Afeganistão, do Golfo e na faixa de Gaza, assim como aquelas que estão dizimando o continente africano, não creio que tão cedo o mundo vá mudar de rumo e alguma Shen Te possa ter seu filho em paz. Definitivamente, a alma não é bela.

O Brasil

A Alma Boa de Set Suan foi o primeiro texto de Brecht montado profissionalmente no Brasil, iniciativa da Cia. Maria Della Costa e encenação de Flamínio Bollini Cerri, um dos italianos que vieram para o TBC, em 1958. Esquemática e afinada com o padrão politizante daquele momento, a montagem era bem pouco brechtiana.

Cinqüenta anos depois, o espetáculo conduzido por Marco Antonio Braz supõe a antropofagia e sabe-se em sintonia com o sarcasmo, a ironia e a dessacralização que marcam as atitudes pós-dramáticas. Respira alegria e inventividade, fazendo dos arquiconhecidos recursos de distanciamento – a luz branca, as paredes incompletas, a música, os quadros, a indumentária carcomida – um convite à citação e à imaginação. Márcio Medina idealizou algumas plataformas sobre rodas que, ajeitadas adequadamente, configuram os ambientes cênicos onde transita a ação. O elenco, quando fora desse espaço, permanece sentado ao fundo, em camarins improvisados que convidam ao jogo e ensejam o aspecto lúdico que perpassa toda a realização.

Denise Fraga transita com segurança entre suas duas figuras, explorando muito bem cada frase e cada situação, atriz atenta e esperta, perfeitamente integrada num conjunto de outros dez intérpretes. Embora estribada na interpretação da parábola, algo de farsesco percorre seus gestos e atitudes, bem como dos demais atores, fazendo crer que ninguém ali acredita, de fato, na bela alma. 

Tal perspectiva livrou o espetáculo de cair na militância, tomando Brecht como um clássico que se presta a improvisos e novos arranjos, releituras e paráfrases; como vêm ocorrendo, afinal, com Ibsen, Tchekhov ou Shaw, esses pilares da modernidade cênica que ainda têm algo a dizer às platéias do novo milênio.

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