Dogville ou uma estética brechtiana no cinema

Artigo sobre o filme Dogville de Lars Von Trier

10 de maio de 2009 Estudos

Os encartes de cultura e as matérias pagas dos jornais, os cinéfilos de monografias acadêmicas e os releases de distribuidoras de filmes podem até dizer o que quiserem, até porque muitos dos que dizem o que querem não querem o que dizem, mas – aqui para nós – essa leitura de que Lars von Trier, em Dogville, está contando uma história sobre a crueldade humana é, no mínimo, uma tremenda miopia por reduzir a idéia de humano a partir de estreitos conceitos ocidentais e ocidentalizados do modo acidentalmente cristão de atribuir sentido ao mundo, se é que existe alguma eficácia nessa possibilidade. Aliás, ficaria até interessante aqui, em Dogville, brincar com o anagrama e inverter as letras de Dog para God, considerando que o Dog (cão) do filme se chama Moisés (em hebreu, Mosché), o mesmo que apresenta aos humanos a tábua dos 10 mandamentos da lei de God (deus). Por uma visada bastante irônica, também podemos afirmar que aqui, o “nosso” Moisés, também nos ofereça como mandamentos os 9 capítulos fornecidos no filme como uma anunciação, através de uma espécie de álbum seriado apresentando os temas das cenas que se seguem, deixando o 10º para ser escrito pelo próprio espectador.

Numa abordagem estética, Dogville, em muitos aspectos, desfruta de uma grande proximidade com a obra e a teoria do teatro épico de Bertolt Brecht. O primeiro deles é que Lars von Trier, sem nenhuma preocupação em “agradar” o espectador, deixa bem claro que está estabelecida uma ruptura com o intoxicado cinema catártico. Há momentos em que é quase como se dissesse: “Senhoras e senhores, isso aqui é uma mentira.” Uma maneira de dizer que as pessoas estão no cinema e, se existe uma realidade, não se trata de um absoluto ou de uma consciência pura, ou seja, há uma representação dialética onde ela, a realidade, se realiza como um fenômeno, aquilo que surge como o acontecimento na relação sujeito (espectador) versus objeto (cinema). Eis aí em plena função o Verfremdungseffekt (efeito de distanciamento) brechtiano que não reduz o espectador a uma mera condição passiva, mas o faz testemunha e, ao mesmo tempo, agente daquilo que observa.

O parentesco estético de Dogville com o teatro de Brecht ainda se mostra de formas diversas, desde a locação escolhida para a realização das filmagens até as marcações teatrais, passando pela maneira como os personagens são construídos, de certa forma, provocando o espectador mais atento, um olhar para a forma como se “comportam” o tempo e o espaço feito elementos precisos de ruptura com os cânones aristotélicos que garantem a unidade de ação. Na estética brechtiana, o filme não se resume a um discurso a priori, ou seja, a narrativa como proposta técnica e estética determina a história na medida em que esta se realiza dialética e politicamente, a partir das relações tanto dos elementos cênicos quanto dos personagens com esses elementos e entre si. É dizer que nesse filme não há nada de real, ou seja, tem por finalidade precípua, muito menos expressar o real do que significá-lo, considerando que tudo o que há é aquilo que se realiza.

A cidadezinha, Dogville – “A cidade cão” ou o “País cão”, no caso da analogia aos Estados Unidos da América – é estabelecida num cenário único e pode-se até mesmo dizer de um não-cenário, é um palco de teatro, uma planta baixa de uma cidade, um chão negro cujos riscos de giz delimitam os espaços das ruas, jardins e casas, onde se lê “Casa de Thomas Edson” [1], “Arbusto”, “Moisés, o cachorro”, etc. A partir dessas marcações de cena, percebe-se que o “patrimônio” dessa cidade se limita a sete casas e uma loja. Nenhuma das casas tem paredes, portas ou janelas. Apenas a tal loja tem porta e paredes. Os personagens batem às portas imaginárias e ouvimos os sons das batidas. Num outro movimento, entram e saem das casas e, como diria Viola Spolin, os vemos entrarem e saírem através da “fisicalização”, ou seja, tornando físicos os objetos a partir de uma interpretação em que materializam os elementos de cena.

Para além do objeto estético, esse recurso merece algumas considerações. Por um lado, a própria idéia da existência de casas e, nessas casas, a inexistência das paredes, coloca em xeque o elogio individualista da mentalidade capitalista, ou seja, por mais que se suponha a segurança e a privacidade do indivíduo através da propriedade privada, há uma característica que os une, um fator que agrilhoa todos no mesmo plano: a mediocridade do comportamento. E não é aleatório que na lojinha, o único prédio que, por ser o templo do capital, tem porta e paredes e, entre algumas quinquilharias, ainda, existem sete estatuetas – quase como um fetiche – representando as sete casas. O sete seria uma apologia aos pecados capitais?

Embora todos os personagens tenham uma característica particular e interessante, existe um que – devido ao seu caráter simbólico – merece destaque. Trata-se daquele senhor que se supondo cego e fazendo com que toda a comunidade acredite em sua cegueira. Esse senhor cego – idealizando luzes imaginárias que descrevem formas e ângulos da cidade – mantém fechadas as cortinas de sua casa. Na postura desse “cego que não quer ver” pode-se perceber mais um movimento da dialética brechtiana. Por um lado, Lars von Trier faz uma paródia ao naturalismo cênico através da câmera em busca da dramaticidade convencional, ao mesmo tempo em que – ressaltando o antinaturalismo – o cenário está pintado no chão e se sustenta a partir da narração e da construção poética das falas.

Baseado nos Estados Unidos da América dos anos 30, Dogville coloca em questão as consequências da crise da Bolsa de Nova York que levou ao povo muita miséria, desavenças e ganâncias. O fio da navalha entre a ética e a estética na sociedade de consumo. O roteiro é simples. Grace, uma burguesinha americana, fugindo de gangsters, se refugia na cidadezinha entre montanhas rochosas de seus pais. É acolhida e aceita na cidade através da ajuda do jovem idealista Tom[2], um arremedo de filósofo e, é claro, como bom americano, pragmático, aquele que toma o valor prático (dos outros) como critério da verdade (para si mesmo). Numa espécie de paróquia, ele realiza reuniões periódicas num intuito de estabelecer um tipo de “reforço moral” para a comunidade, além de seus experimentos em prol da “verdade”. Mas ao ser acolhida pela cidade como uma forasteira, como forma de pagamento, Grace é disputada como mão de obra escrava para prestar serviços domésticos à toda comunidade e, num crescente, vai sendo escravizada, humilhada e, depois de estuprada e ter seu corpo transformado em moeda de troca, é entregue aos policiais.

Assim se dá também com a música que – se na maioria das vezes, conforme o teatro dramático, ela tem sido usada apenas como um engodo ilustrativo, pano de fundo para uma ação dramática e, até mesmo, definindo e impondo um sentido no texto – em Dogville, ela é um elemento com voz, quase um personagem visível que entra e sai de cena, assumindo uma posição que revela um comportamento. Não é por acaso que, além dos efeitos sonoros, como o som de um bate-estaca estabelecendo o ritmo de algumas cenas, a música exerce – no plano da fábula – o seu estranhamento próximo do teatro épico de Brecht. Assim se dá, em várias cenas, por exemplo, na utilização da música “Cum Dederit”, de Antônio Vivaldi, do Salmo 127 ou Cântico dos degraus, quando Salomão diz:

1. Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que edificam; se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela.

2. Inútil vos será levantar de madrugada, repousar tarde, comer o pão de dores, pois assim dá ele aos seus amados o sono.

Também, ao som de “Young Americans”, de David Bowie, o diretor de Dogville se utiliza da contradição dialética, contrastando o ritmo alegre dessa música que fala do sonho americano com a miséria exposta a partir das fotos, sem maquiagem, de Jacob Holdt. Uma exposição “way of life” da pobreza americana, com ênfase nos anos 30 do século passado.

Mas convém observarmos que a influência de Lars von Trier vai além da estética da encenação, pois em Dogville também se inspira a partir da música “Jenny e os Piratas”, de Brecht e Kurt Weill, trecho da “Ópera dos Três Vintens” que, no Brasil, há uma representação por Chico Buarque com o nome de “Geni e o Zepellin”, em “Ópera do Malandro”.

Se, conforme afirma Gerd Bornheim, em Os pressupostos gerais da estética em Brecht, esse dramaturgo “nunca chegou ao ponto de querer dizer: eis aqui a minha Poética, é assim que deve ser”, podemos dizer que Lars von Trier acaba por contribuir com mais uma possibilidade de sua estética. Ainda, em relação ao dramaturgo do teatro épico, de acordo com Fernando Peixoto, em Brecht no Brasil, Heiner Müller – que foi um de seus grandes discípulos e colaboradores – acreditava que encenar Brecht sem uma atitude crítica seria uma traição à sua proposta.

Voltando à idéia de Moisés e os mandamentos, tendo em vista os 9 capítulos em que se dividem o filme, narrados em off por John Hurt, reside uma sensação de que – se ao espectador cabe escrever o 10º “mandamento” – o fim não é um fim em si mesmo. O fim é o começo de uma reflexão, onde o espectador é estimulado a sair da ficção e ser responsável em completar a fábula com a realidade. Uma realidade que está para além das aproximadamente 3 horas de projeção da película. Equivale a dizer que não se trata de uma imagem dos Estados Unidos da América, mas de uma oportunidade de uma análise para compreender a forma de representação norte-americana do mundo.

Notas:

[1] A referência ao inventor da lâmpada pode ser mero deboche, considerando a representação desse objeto significando “idéia”.

[2] A referência ao inventor da lâmpada pode ser mero deboche, considerando a representação desse objeto significando “idéia”.

Referências bibliográficas:

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__________ Brecht e o metateatro, in Metateatro – uma visão nova da forma dramática. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, pp. 139-143.

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DOGVILLE. Dinamarca / Suécia / França / Noruega / Holanda / Finlândia / Alemanha / Itália / Japão / Estados Unidos / Inglaterra. 2003. Duração177 min. Direção: Lars Von Trier. Roteiro: Lars Von Trier. Distribuição: Imovision. Elenco: Nicole Kidman – Grace; Harriet Andersson – Gloria; Lauren Bacall – Ma Ginger; Paul Bettany – Tom Edison, filho; Blair Brown – Sr. Henson; James Caan – O pai; Patricia Clarkson – Vera; Jeremy Davies – Bill Henson; Ben Gazzara – Jack McKay; Philip Baker Hall – Tom Edison, pai; John Hurt: Narrador off; Zeljko Ivanek: Bem.

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