Incertezas

Crítica da peça Astronautas, de Maria Borba

29 de junho de 2011 Críticas
Foto: Marcella Garbo.

Com uma montagem limítrofe ao vídeo, a peça Astronautas põe em jogo a hipervalozição das verdades científicas e aproxima esse discurso às incertezas das ciências humanas. A cena é concentrada na projeção que exibe uma montagem de diferentes aulas de astrofísica e cosmologia, comunicações filosóficas e manifestações artísticas. Por vezes a voz da diretora Maria Borba, sentada ao lado da tela, sobrepõe-se às imagens, acompanhada ao violão por Augusto Maulbouisson, sentado do outro lado da tela. Tais interferências pontuam uma manifestação artística por cima de uma aridez da física e amaciam algumas verdades que são postas em xeque pelos próprios professores. A questão posta não procura desconstruir a teoria das cordas ou dizer que nada se sabe acerca do universo. A peça parece apontar para a pessoalidade e para a singularidade das descobertas, sejam elas científicas, artísticas ou filosóficas.

Cada palavra corresponde a uma função e se deve buscar novas cadeias sintáticas para conseguir expressar o que ainda não foi (talvez nunca seja) mostrado, prevenindo-se para que, ainda assim, os novos significados façam sentido para a ordem anterior, sejam compreendidos e logo absorvidos por ela, alargando o patrimônio histórico do saber. A peça Astronautas, que está em cartaz no teatro do Parque das Ruínas até final de julho, brinca com a impossibilidade da verdade. Mesmo tendo se chegado a conclusões, as tentativas dos cálculos e das falas de cada palestrante se tornam inviáveis, na maioria das vezes, pelas limitações impostas pela própria ferramenta que utilizam para buscar as respostas. A declaração de que não dispomos de cálculos, de equações suficientes e, até mesmo, de teorias para alcançar a demanda pela verdade é a mesma da tentativa de dizer o indizível.

Na maioria das vezes não são palavras (ou números) que dão conta dessa tentativa e, nesta relação, é preciso apelar para um mecanismo de expressão um pouco mais autônomo. Aí é que entram as manifestações artísticas: a voz e os poemas de Maria Borba sugerem uma afecção mais direta que, mesmo fazendo uso de palavras, apela para seu caráter mais intensivo que significativo. Não é de se esperar que um público historicamente neófito em física quântica entenda o raciocínio das autoridades, há sim uma transmissão de intensidades das aulas para a cena, fazendo dela um lugar de acontecimento. Quando as informações são minimamente captadas e uma vez potencializadas pelos afetos artísticos, acontece uma possibilidade de reflexão. Um espaço se abre para que o espectador repense sua condição (no universo. Por que não?). Com isso, é possível a sensação do momento presente, do acontecimento do pensamento, do instante de origem das ideias.

Foto: Marcella Garbo.

Em meio às palestras projetadas, há extratos de falas de Gilles Deleuze sobre um conceito chave de sua obra que é a ideia de acontecimento. Isto é, a caracterização da imanência como uma relação de forças que entram em jogo ao acaso. O que torna o acontecimento irrepetível. Esta qualidade se torna peculiar em Astronautas, já que a peça gira em torno de uma projeção. É o mesmo filme que passa em todas as apresentações, mas que não pretende ser uma seção de cinema. Como teatro, usufrui de um espaço-tempo diferenciado, bem como é consubstanciado distintamente, passando a expressar uma singularidade.

Esta é a equação que as aulas exibidas sobre cosmologia pretendem buscar, o acontecimento enquanto universo. Com isso surge a proposta de certeza de comunicação, ou seja, da retirada do jogo de qualquer má interpretação. Contudo, nas traduções do cosmo em equações matemáticas durante o filme, um físico é inquirido sobre o que se sabe com certeza sobre a origem do universo. Com veemência, ele responde: nada. Parece óbvia a vontade de dominar uma linguagem para que dela não decorra nenhum problema de comunicação, tornando o entendimento infalível. Mas é da ocorrência singular que surge a possibilidade de expressão. É no desacordo que há a possibilidade de presença dos sentidos e a afirmação de um eu não idêntico, diferenciado. Michel Serres, ocupando-se de pensar essa singularidade, disse:

“Quando todas as pessoas no mundo falarem, finalmente, uma mesma língua e comunicarem a mesma mensagem ou a mesma regra de razão, desceremos então, pobres imbecis, mais abaixo do que os ratos, seremos mais estúpidos do que os lagartos. A mesma língua e ciência maníacas, as mesmas repetições dos mesmos nomes em todas as latitudes, a terra coberta por simples tagarelas rabugentos.” (SERRES, 1993, p.121)

Assim como a peça é produto de uma cadeia de afetos produzidos pelas impressões singulares das aulas de física que Maria Borba teve em seu mestrado, para o espectador a peça é uma possibilidade para pensar sobre suas experiências. A diretora esvazia o palco de atores e cenário, elementos que identificariam a peça enquanto peça de teatro, enchendo o palco de afecções. Isso causa estranhamento e, num primeiro momento, há uma recusa em se deixar afetar pelo acontecimento. O espectador se percebe esperando que um ator apareça para “fazer” a peça e descobre que ela já começou desde o início da projeção. Isso dá a entender que já se está (sempre) em acontecimento. Astronautas, portanto, exorta a pulsão criativa do pensar. Disse Geraldo Wandré: “Esperar não é saber, quem sabe faz a hora não espera acontecer”. O pré-requisito básico para isso é buscar o encontro com as coisas com as quais se possa compor e criar ideias.

Foto: Dany Roland.

Referência bibliográfica:

SERRES, Michel. O Terceiro Instruído, Lisboa: Instituto Piaget, 1993. (col. Epistemologia e Sociedade)

Humberto Giancristofaro é escritor. Formado em Filosofia pela UFRJ e Université Paris VIII, atualmente mestrando em Filosofia na UFRJ, perquisador das teorias francesas de Estética contemporânea.

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores