Incertezas
Crítica da peça Astronautas, de Maria Borba

Com uma montagem limítrofe ao vídeo, a peça Astronautas põe em jogo a hipervalozição das verdades científicas e aproxima esse discurso às incertezas das ciências humanas. A cena é concentrada na projeção que exibe uma montagem de diferentes aulas de astrofísica e cosmologia, comunicações filosóficas e manifestações artísticas. Por vezes a voz da diretora Maria Borba, sentada ao lado da tela, sobrepõe-se às imagens, acompanhada ao violão por Augusto Maulbouisson, sentado do outro lado da tela. Tais interferências pontuam uma manifestação artística por cima de uma aridez da física e amaciam algumas verdades que são postas em xeque pelos próprios professores. A questão posta não procura desconstruir a teoria das cordas ou dizer que nada se sabe acerca do universo. A peça parece apontar para a pessoalidade e para a singularidade das descobertas, sejam elas científicas, artísticas ou filosóficas.
Cada palavra corresponde a uma função e se deve buscar novas cadeias sintáticas para conseguir expressar o que ainda não foi (talvez nunca seja) mostrado, prevenindo-se para que, ainda assim, os novos significados façam sentido para a ordem anterior, sejam compreendidos e logo absorvidos por ela, alargando o patrimônio histórico do saber. A peça Astronautas, que está em cartaz no teatro do Parque das Ruínas até final de julho, brinca com a impossibilidade da verdade. Mesmo tendo se chegado a conclusões, as tentativas dos cálculos e das falas de cada palestrante se tornam inviáveis, na maioria das vezes, pelas limitações impostas pela própria ferramenta que utilizam para buscar as respostas. A declaração de que não dispomos de cálculos, de equações suficientes e, até mesmo, de teorias para alcançar a demanda pela verdade é a mesma da tentativa de dizer o indizível.
Na maioria das vezes não são palavras (ou números) que dão conta dessa tentativa e, nesta relação, é preciso apelar para um mecanismo de expressão um pouco mais autônomo. Aí é que entram as manifestações artísticas: a voz e os poemas de Maria Borba sugerem uma afecção mais direta que, mesmo fazendo uso de palavras, apela para seu caráter mais intensivo que significativo. Não é de se esperar que um público historicamente neófito em física quântica entenda o raciocínio das autoridades, há sim uma transmissão de intensidades das aulas para a cena, fazendo dela um lugar de acontecimento. Quando as informações são minimamente captadas e uma vez potencializadas pelos afetos artísticos, acontece uma possibilidade de reflexão. Um espaço se abre para que o espectador repense sua condição (no universo. Por que não?). Com isso, é possível a sensação do momento presente, do acontecimento do pensamento, do instante de origem das ideias.

Em meio às palestras projetadas, há extratos de falas de Gilles Deleuze sobre um conceito chave de sua obra que é a ideia de acontecimento. Isto é, a caracterização da imanência como uma relação de forças que entram em jogo ao acaso. O que torna o acontecimento irrepetível. Esta qualidade se torna peculiar em Astronautas, já que a peça gira em torno de uma projeção. É o mesmo filme que passa em todas as apresentações, mas que não pretende ser uma seção de cinema. Como teatro, usufrui de um espaço-tempo diferenciado, bem como é consubstanciado distintamente, passando a expressar uma singularidade.
Esta é a equação que as aulas exibidas sobre cosmologia pretendem buscar, o acontecimento enquanto universo. Com isso surge a proposta de certeza de comunicação, ou seja, da retirada do jogo de qualquer má interpretação. Contudo, nas traduções do cosmo em equações matemáticas durante o filme, um físico é inquirido sobre o que se sabe com certeza sobre a origem do universo. Com veemência, ele responde: nada. Parece óbvia a vontade de dominar uma linguagem para que dela não decorra nenhum problema de comunicação, tornando o entendimento infalível. Mas é da ocorrência singular que surge a possibilidade de expressão. É no desacordo que há a possibilidade de presença dos sentidos e a afirmação de um eu não idêntico, diferenciado. Michel Serres, ocupando-se de pensar essa singularidade, disse:
“Quando todas as pessoas no mundo falarem, finalmente, uma mesma língua e comunicarem a mesma mensagem ou a mesma regra de razão, desceremos então, pobres imbecis, mais abaixo do que os ratos, seremos mais estúpidos do que os lagartos. A mesma língua e ciência maníacas, as mesmas repetições dos mesmos nomes em todas as latitudes, a terra coberta por simples tagarelas rabugentos.” (SERRES, 1993, p.121)
Assim como a peça é produto de uma cadeia de afetos produzidos pelas impressões singulares das aulas de física que Maria Borba teve em seu mestrado, para o espectador a peça é uma possibilidade para pensar sobre suas experiências. A diretora esvazia o palco de atores e cenário, elementos que identificariam a peça enquanto peça de teatro, enchendo o palco de afecções. Isso causa estranhamento e, num primeiro momento, há uma recusa em se deixar afetar pelo acontecimento. O espectador se percebe esperando que um ator apareça para “fazer” a peça e descobre que ela já começou desde o início da projeção. Isso dá a entender que já se está (sempre) em acontecimento. Astronautas, portanto, exorta a pulsão criativa do pensar. Disse Geraldo Wandré: “Esperar não é saber, quem sabe faz a hora não espera acontecer”. O pré-requisito básico para isso é buscar o encontro com as coisas com as quais se possa compor e criar ideias.

Referência bibliográfica:
SERRES, Michel. O Terceiro Instruído, Lisboa: Instituto Piaget, 1993. (col. Epistemologia e Sociedade)
Humberto Giancristofaro é escritor. Formado em Filosofia pela UFRJ e Université Paris VIII, atualmente mestrando em Filosofia na UFRJ, perquisador das teorias francesas de Estética contemporânea.