Identidade

Crítica da peça Ingrid

10 de setembro de 2008 Críticas

Em cartaz no Espaço Cultural Sérgio Porto, o espetáculo Ingrid, dirigido por Marco André Nunes com dramaturgia de Fidelys Fraga, acontece à meia-noite de sexta e sábado, horário pouco explorado pelas salas de teatro da cidade. Trata-se de um projeto da atriz Carolina Virgüez, colombiana residente no Brasil, que teve como motivação inicial a leitura do livro Coração enfurecido de Ingrid Betancourt, personalidade que se tornou objeto de pesquisa da atriz, ponto de contato com suas origens e personagem do trabalho em questão.

Parece que uma das questões centrais do projeto de montagem de Ingrid é a identidade. Há duas identidades em jogo: a da atriz Carolina Virgüez e da pessoa/personagem Ingrid Betancourt. Com isso, uma construção triangulada se dá em cena – uma personagem-vértice se forma no encontro entre Carolina e Ingrid. A imagem que se apresenta na atuação parece problematizar a noção mesma de personagem. Sendo Ingrid uma mulher que está no mundo real, que tem a sua história pessoal e secreta, não se poderia apresentar na peça uma composição totalizante de uma personagem completa, fechada. A abordagem da figura de Ingrid é complexa – não se quer chegar até Ingrid, mas ir em direção a ela. E, mais do que isso, o ponto de partida não é o zero, um sujeito indefinido, é a história pessoal da própria atriz, que interfere como dado de construção e desconstrução da figura que está em cena. Penso que há uma atitude artística nesse processo de complexificação do olhar sobre um objeto. A desconstrução, a fragmentação, o facetamento, não são apenas princípios formais auto-referentes; são ferramentas para explorar e discutir o mundo em que vivemos. Ingrid Betancourt não é uma personagem de ficção, falar sobre ela não é “contar uma história”, montar uma peça biográfica. Ela está no mundo, faz parte da história política do presente. Apresentar variações de visões sobre ela é também, quase inevitavelmente, apresentar visões sobre as nossas noções de história, de política, e do presente – mesmo que o espetáculo não coloque o foco diretamente sobre isso.

O foco está na pessoa confinada, no seu isolamento forçado. A cenografia de Marcelo Marques apresenta uma cela: o espaço é composto por um quadrilátero no canto esquerdo do espaço de cena do Sérgio Porto – três lados são paredes e o lado que fica de frente para a platéia é fechado por uma tela translúcida. A pequena abertura na porta que fica na parede de fundo do cenário, por onde ela recebe comida, água, jornais, etc., reproduz esta mesma forma geométrica. Os recortes de jornal presos a uma das paredes laterais também apresentam ângulos retos. (O quadrilátero também é a forma da fotografia, do quadro, do livro, da página de jornal ou revista.) A cenografia sugere, assim, um enquadramento daquela figura, não apenas o seu encarceramento. Afinal, ela foi seqüestrada e presa, mas isso também lhe conferiu um lugar de destaque. Ela foi retirada de sua vida, mas esse fato também constitui a sua vida. Sua identidade foi colocada à prova pelo tempo de permanência em cativeiro, mas o seqüestro também construiu a figura histórica de Ingrid Betancourt. Essa moldura (do cenário e do seqüestro) é um elemento que baliza e que, ao mesmo tempo, forma. Esse enquadramento me faz pensar que, mesmo com toda a liberdade artística que se pode ter para criar uma obra, há, naturalmente, um conjunto de pressupostos que fixam o espaço de atuação.

Dentro desse espaço, a pesquisa cênica se volta para suas possibilidades de produzir sentido. O espaço, o som, a luz, o tempo, o corpo e a voz são utilizados para criar imagens. A visualidade do espetáculo é levada em grande conta na estruturação do espetáculo. Os momentos em que não há um texto dito também produzem discurso, especialmente os que se apresentam como repetições ou variações sobre o mesmo tema: um movimento com as mãos e os braços, passando-os lentamente por trás das costas, que a atriz repete em diferentes momentos da peça; as posições estáticas reveladas entre breves blackouts e efeitos de iluminação que também acontecem mais de uma vez. Essas repetições conferem à dramaturgia do espetáculo um movimento circular, assim como a qualidade coreográfica da movimentação. Sem apostar em muitas referências narrativas, o espetáculo traz o aspecto cíclico da espera, do dia e da noite, dos momentos de revolta e de conformação, de esperança e do desespero, de uma passagem de tempo que não prevê futuro, mas que retorna sobre o próprio presente. Um exemplo disso pode ser percebido em uma fala, em que ela passa da contagem dos anos ou meses para a contagem de dias e minutos. A esfera de percepção do tempo se alarga e se retrai, mas parece sempre voltar-se sobre si mesma.

Esses dados geométricos que se dão a ver na cena – triangulação, enquadramento, circularidade – assim como a presença de elementos da dança na direção de movimento de Nívea Magno me fazem ver nessa montagem uma tendência à abstração; tendência esta bastante coerente com a própria questão da identidade. A proposição de Carolina Virgüez de perguntar-se sobre si mesma enquanto pessoa, expondo questionamentos quanto à sua noção de pertencimento, sua nacionalidade, de perguntar-se também enquanto artista, expondo-se a um trabalho de pesquisa em um espetáculo solo, me parece estar na contramão de uma tendência entre monólogos cariocas: a da afirmação da persona da atriz, da sua imagem de atriz/celebridade mais que de atriz/artista. Fazer um monólogo é considerado, pelo senso comum, o marco da concretização do sucesso de uma carreira, o ápice de uma trajetória. O que se pode ver na montagem de Ingrid é algo bem mais simples, do ponto de vista da projeção profissional, e muito mais complexo, do ponto de vista do trabalho teatral.

Vol. I, nº 7, setembro de 2008

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