Cada vez que alguém diz “isso não é cinema” uma estrela se apaga

Crítica de Cada vez que alguém diz isso não é teatro uma estrela se apaga, do Lagartijas Tiradas al Sol

18 de outubro de 2021 Críticas

Para que uma estrela se apague diante de nossos olhares terráqueos, é necessário que miremos ao céu. Caso não olhássemos para a estrela e ignorássemos sua existência, correríamos o risco de jamais reparar seu desaparecimento e morte – mesmo se somos profissionais da astronomia, astrologia, poetas, apaixonades e navegadores do céu. A morte (o fim) de uma estrela pode ter distintas causas: (1) fim do combustível energético, como se desligassem seu reator – camadas do centro desabam, a estrela vira uma gigante vermelha, depois diminui de tamanho, tornando-se uma nebulosa planetária e anã branca; (2) a estrela, se for muito grande (oito vezes a massa solar), pode acabar explodindo, tornando-se uma supernova – uma morte violenta e espetacular; (3) por fim, se a estrela for gigante (trinta vezes a massa do sol) pode sofrer um colapso ao final de seu ciclo de vida até se tornar um buraco negro que poderá absorver outras estrelas e eventualmente se acoplar a outros buracos negros.  

Desde que o mundo é mundo – e que a arte é arte – existe uma constante ressureição/aflição ansiosa sobre o questionamento da morte daquilo que nos ilumina (e aquece): o fim do teatro, da literatura, do cinema, da poesia, da fotografia, da música, da pintura, da televisão, do rádio etc.

A companhia mexicana Lagartijas Tiradas al Sol nos conduz (no melhor sentido da palavra) até o céu com a proposta audiovisual Cada vez que alguém diz isso não é teatro uma estrela se apaga para pensar aquilo que a pandemia nos impõe e expõe: eventuais apagamentos de estrelas… enfim… a morte. Texto e narração são de Lázaro Gabino Rodriguez. O vídeo está disponível no YouTube, no canal do festival Cena Contemporânea de Brasília. O próprio Gabino define o projeto não como um espetáculo teatral e sim como um espaço para pensar o teatro, em entrevista ao Correio Braziliense.

Gabino radicaliza a ininterrupção do tempo e a essência quase aterradora do movimento com uma câmera que observa aeronaves voando, decolando e aterrissando enquanto divaga sobre a pandemia, o teatro, a morte e as transformações estético-políticas com que nos defrontamos… Promove-se ali um ato de coragem de se jogar – pelo texto verbal – a um abismo de perguntas de temas grandiosos em termos de urgência de abordagem, mas sem sair de uma perspectiva humilde, cautelosa, despretensiosa e de muito respeito diante do desconhecido – pela imagem visual – não só se dizendo um apaixonado por aviões, mas também com um certo olhar infantil (no melhor sentido da palavra) de quem devaneia não de dentro do aeroporto, mas do lado de fora, por trás de uma grade de segurança, do chão, como uma espécie de lanterna mágica virada para os problemas atuais e para o futuro: “Na minha casa durante a pandemia, eu subia de vez em quando no telhado e olhava os aviões passarem. Distantes, alheios...”

Num sobrevoo de temas grandiosos, Gabino adentra o tema título deste espaço para pensar o teatro: “Me surpreende a pulsão das pessoas que, diante da chegada do novo, a primeira coisa que dizem é ‘isso não é teatro’. Como se alguém soubesse o que é o teatro. Quando o que estão querendo dizer é: isso não tem sido teatro até hoje. Diante de circunstâncias inéditas, o primeiro que fazem é se apegar ao desconhecido, negando-se a pensar o presente. Há uma longa tradição das pessoas que disseram: (…) ‘Isso não é arte’, porque não combina com a minha ideia do século XIX, ‘isso não é poesia’ porque não rima, ‘isso não é teatro’ porque fala da realidade e um longo etc…”

Não tenho a pretensão (ou ilusão) de definir se aquilo que você vê no Zoom ou até mesmo aquele vídeo performático disponível no YouTube é ou não é cinema, mas defendo que ir pelo caminho – ou melhor, pela trilha supernova (com trocadilho) – do “não é cinema” implica reduzir a energia de teorias, argumentos e pensamentos sobre o cinema. Como toda forma de linguagem, o cinema possui fronteiras permeáveis, flexíveis e que não estão isoladas do resto do mundo – ou melhor – de estrelas de constelações diferentes. Mesmo distantes, distintas estrelas acabam impactando na singularidade de cada céu em cada planeta, esbarrando-se de diferentes formas e em graus que vão da carícia à extrema violência. Nesse sentido, o cinema é um diagrama intergaláctico que se relaciona com as urbanidades, a filosofia, as artes rupestres, pictóricas e plásticas, o museu, o teatro, a videoarte, a televisão e todo um universo de se produzir e consumir imagens digitais.

A noção estendida de cinema fragiliza o argumento de que seu início seria em 1895 com A saída dos operários da fábrica Lumière dos irmãos Louis e Auguste Lumière. De fato, seria algo próximo do que entendemos hoje como cinema no sentido comum. Entretanto, o cinema pode ser visto como um continuum que agrega, desagrega, reconfigura e transfigura diferentes formas de montagem, processamento, tecnologia e espetáculos.

O documentário de Werner Herzog, A caverna dos sonhos esquecidos, mostra um cuidado múltiplo dos artistas paleolíticos na produção dos elementos rupestres das cavernas de Chauvet, datadas cerca de 40 mil anos atrás – não só no desenho em si, mas em sua perspectiva e condição de ilusionismo de movimento a partir da relação entre a luz das tochas e as sombras:

“Para eles, os animais deveriam parecer vivos e em movimento. Devemos atentar que o artista pintou um bisão com 8 pernas, indicando movimento, quase uma forma de proto-cinema. As paredes não são planas, mas têm sua própria dinâmica tridimensional, seu próprio movimento, que foi utilizado pelos artistas”.

Arlindo Machado, em sua obra Pré-cinemas e pós-cinemas, retoma o mito da caverna de Platão como perversão de sentidos e ilusão próxima da ideia do cinema. As lanternas mágicas e suas placas de manivela, com sobreposição de fontes de luz, também seriam um cinema “pré-Lumière”. Todavia, o grande responsável pela expansão do que acontece nas salas de cinema para galerias, museus, celulares e afins é o processamento das imagens eletrônico-digitais.

Há divergência sobre o que seria esse cinema digital (e se seria cinema): enquanto alguns tentam entender as transformações do cinema analógico para o digital como “ainda” um cinema, mas com características distintas (Lev Manovich, por exemplo), outros acreditam que o cinema deixou de ser cinema na transferência do processamento químico e fotográfico em detrimento dos meios eletrônico-digitais (David Rodowick). Nesse segundo caso, o filme se tornara vídeo por meio de imagens eletrônico-digitais e telas que não são mais “fotografias em movimento”.

O cinema como trânsito entre espacialidades para além da “tela retangular” em uma sala escura e de conceitos (e circuitos) fechados pode ser entendido como “transcinemas”, “multitelas”, “cinemas transversais” e “cinema expandido” – conceitos de Kátia Maciel, Philippe Dubois, Patrícia Moran e Gene Youngblood. Leo Charney e Vanessa Schwartz também organizaram suas múltiplas facetas em O cinema e a invenção da vida moderna com retroalimentações da pintura, dos museus, gabinetes de curiosidade, publicidade e tudo que envolve o pacote da indústria cultural.

Questiono, em coro com Gabino, se dizer “isso não é teatro” ou “isso não é cinema” não seria uma forma (talvez não intencional, talvez saudosista) de recusa do olhar – o que pode gerar uma espécie de antecipação da morte ou de apagamento de estrelas… Em vez de ignorar o cinema, não seria melhor se pegássemos uma luneta, um telescópio, uma lanterna mágica ou – para os mais rústicos – uma vela para tentar observar estrelas por outra perspectiva?

Vídeo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=X1feEhCxGO0

Referências

CHARNEY, L. e SCHWARTZ, V (org) O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

DOANE, Mary Ann. “Escala e corpo no e para além do cinema” IN: MORAN, Patrícia (org) Cinemas transversais. Ed: Iluminuras, São Paulo, 2016.

DUBOIS, Philippe. “Sobre o “efeito cinema” nas instalações contemporâneas de fotografia e vídeo” IN: MACIEL, Kátia. Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra capa, 2 ed, 2017.

ELSAESSER, Thomas. “Curadoria e programação como pós-produção” IN: MENOTTI, Gabriel. Curadoria, cinema e outros modos de dar a ver. Vitória: Edufes, 2018.

MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e pós-cinemas. Campinas: Papirus, 1997

MACIEL, Kátia. Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra capa, 2 ed: 2017

MANOVICH, Lev. The language of new media. Cambridge: MIT press, 2001.

RODOWICK, David. The virtual life of film. Harvard University Press, 2007.

YOUNGBLODD, Gene. Expanded Cinema. New York: P. Dutton & Co, 1970.

 

Lívia Machado é pesquisadora em artes, jornalista, mestra em Comunicação e Sociedade (UFJF) e doutora em Meios e Processos Audiovisuais (ECA-USP). 

Vol. XIII nº 72, setembro a novembro de 2021

Se você aprecia o trabalho da Questão de Crítica, faça parte dessa história colaborando com a gente no Apoia-se! Com essa campanha, firmamos uma parceria com o Foco in Cena, unindo nossos esforços pela memória e pelo pensamento sobre as artes cênicas no Brasil. Junte-se a nós e ajude a compartilhar! apoia.se/qdc-fic 

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores