O processo – Teatro na Justiça

Crítica da peça “O processo”

10 de maio de 2008 Críticas

O projeto Teatro na Justiça, dirigido por José Henrique, procura investigar obras “fundamentais para a compreensão de valores da Justiça” e apresentar os resultados deste trabalho em forma de “espetáculo-leitura”. O processo, em cartaz no Teatro Maison de France, adaptação da obra homônima de Franz Kafka, é a segunda dessas produções que é transformada em encenação para o circuito teatral. A primeira obra encenada foi A pane, de Friedrich Dürrenmatt. Essas duas escolhas parecem apontar para a discussão de valores surgidos na modernidade que fizeram frente aos modelos metafísicos que defendiam princípios eternos e objetivos. No contexto moderno pós-metafísico, o homem precisa operar suas próprias leituras e arriscar sentidos para a história. Esse pensamento parece caro ao projeto do Teatro na justiça, sobretudo por ter fundamentado seu trabalho na relação entre teatro e literatura, que pressupõe operações de releitura, tanto por parte da adaptação dramatúrgica quanto da direção, dos atores, dos procedimentos cênicos, e conseqüentemente, do público. Portanto, a releitura, ou seja, a construção própria da história, parece ser uma das perspectivas possíveis para analisar o espetáculo.

Nesse sentido, o ritmo empregado pela encenação parece se afinar com a idéia de que o homem vai construindo fragmentariamente os significados possíveis da sua condição frágil de indivíduo portador de direitos. Na narrativa do romance, assim como no espetáculo, a história do personagem Josef K. começa estranhamente pelo meio: ele acorda no dia de seu aniversário de 30 anos e na pensão onde mora estão dois policiais incumbidos de vigiá-lo, pois existe um processo que corre contra ele, sendo que não se conhece o motivo da acusação. A partir daí o personagem segue tentando compreender do que está sendo acusado e acaba por tomar para si sua defesa, ou seja, tenta interpretar a lei e discernir sobre seus direitos. Porém, suas tentativas de interpretação dos processos absurdos da lei acabam por revelar que ele não passa de mais um elemento dentro de um jogo repleto de subornos, de morosidade e de perversão. A encenação parece figurar as próprias transformações da mente do personagem e transita entre os momentos mais lentos de apreensão distraída dos fatos sobre seu inusitado processo, e outros momentos mais ágeis como o das confusões mentais. Essas alterações de ritmo podem provocar nos espectadores mais atentos um engajamento que percorre o mesmo trânsito.

Esta apreensão é prejudicada pelas dificuldades dos atores no enfrentamento com as palavras. A dramaturgia de José Henrique não descansa no fato do romance de Kafka ser estruturado em boa medida por diálogos. O texto cênico corresponde a uma leitura que sugere indiferença aos discursos competentes e especializados – assim como a crítica do próprio Kafka às instituições jurídicas – e não sugere em momento algum que o espectador seja pequeno diante da obra que se tornou um clássico. Em alguns momentos, porém, os atores não parecem estar de posse técnica do que está sendo dito, e isso acontece principalmente nas vozes mais frágeis do elenco feminino, que fazem soar uma certa literalidade que não parece ser a tônica do texto. Não me refiro à falta de psicologismos, nem de pausas dramáticas, elementos que certamente (e felizmente) não se encontram no trabalho dos atores. O que parece existir é a dificuldade de trabalhar as palavras como uma ação vocal, ou seja, articuladas com um psiquismo, o que acaba por prejudicar a famosa narração da história do camponês diante da lei.

Em contraponto com a impressão geral que a fala dos atores provoca, a limpeza das ações está bem realizada em função da leitura quase maquinal e cômica da encenação. A maquiagem sutil de uma máscara branca ao redor dos olhos dos atores sugere que velhos bufões cumprem suas desgastadas e absurdas piadas. A junção do cômico com a limpeza quase gráfica das ações parece ser uma leitura possível para o clima soturno e claustrofóbico de Kafka. O sistema jurídico ora apresenta sua face ingênua, ora mostra sua burocracia, e ambas impendem o acesso do indivíduo ao conhecimento de seu próprio estado de direito.

Este trânsito entre o metafísico e o humano parece fundamentar o trabalho do ator Tuca Andrada como Josef K. O personagem revela a ambigüidade necessária para que o espectador não o tome como um herói absoluto. Desde a primeira cena o ator constrói um anti-herói que não foi forjado por valores considerados superiores, mas que dá a ver as contradições humanas. Sua fala é simples, direta e demonstra certa confiança, mas seu sorriso canhestro desmonta suas certezas, o que produz uma forma de comunicabilidade sutil com a platéia. Esse personagem cindido possibilita que os espectadores, por um mecanismo de espelhamento, se vejam projetados naquela face. E se o elemento cômico presente no registro de interpretação dos demais atores nos faz ver o sistema de direito como algo externo a nós, o trabalho de Tuca Andrada nos implica como colaboradores dos processos absurdos da lei. Considero que essa combinação de registros diferenciados é elemento importante no engajamento do público, perceptível durante o espetáculo. A platéia compareceu menos com um riso evidente, e mais com uma tensão que, em alguns momentos, podia ser liberada.

O que fica difícil de compreender é que o cenário não seja pensado a partir do mesmo conceito de releitura que estrutura o trabalho da encenação. As estantes de ferro portando papéis, processos e arquivos-mortos são mais reiterativas do tema do que propositoras de alguma relação entre forma e conteúdo. A meu ver, nem a dimensão espetacular das estantes consegue provocar sentidos mais reflexivos para o espaço cênico, pelo contrário, ela apenas sublinha idéias do texto. Essa obviedade também marca a criação da iluminação resumida a iluminar os espaços onde as cenas acontecem, com exceção da cena em que Josef K. fala com o pintor Titorelli. Por outro lado, os objetos utilizados pelos atores, que são retirados ou guardados nos arquivos, ou mesmo diretamente postos nas prateleiras, são um bom achado, mas não são suficientes para propor novos sentidos para um significante tão fechado como as conhecidas estantes de metal. Ao mesmo tempo, o fato dos objetos de uso cotidiano saírem dos arquivos sugere nossa relação de distração com o próprio processo de feitura das leis, o que não deixa de ser um comentário pertinente.

Gostaria ainda de acrescentar uma reflexão em relação às minhas considerações sobre o cenário, que penso ser relevante para a compreensão do que proponho como discussão. Historicamente o teatro tem se configurado como uma esfera que se produz no enfrentamento com as demais manifestações artísticas. O fato mesmo de se trabalhar com a adaptação de um romance demonstra esta interlocução, no caso aqui, com a literatura. Então não vejo possibilidade de um espaço cênico pensado para O processo não conversar, por exemplo, com o que o diretor Orson Welles realizou no cinema ao colocar Josef K. no espaço urbano. É evidente que a linguagem cinematográfica trabalha mais diretamente com os processos miméticos, o que não é necessariamente o caso do teatro. Mas o fato do filme colocar a surrealidade e o absurdo das transposições espaciais de Kafka acontecendo em lugares que nos são familiares provocou na recepção a sensação que existe uma relação entre as questões de direito e os nossos modos de estar no mundo. A meu ver, toda encenação de O processo precisa levar em conta que esta possibilidade de sentido proposta por Welles faz parte de nossas referências, mesmo que o indivíduo não tenha assistido o filme. E lidar com essas referências é uma forma de produzir novos sentidos e uma nova historicidade.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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