Cidadão de Beirute

Conversa com Rabih Mroué

15 de outubro de 2008 Conversas

Rabih Mroué é diretor da peça Yesterday’s Man, que faz parte da programação de inauguração do Teatro Tom Jobim.

PEDRO MANUEL – O título who’s afraid of representation? pretende estabelecer uma relação com as restrições à produção de imagens pela religião islâmica, como no caso da representação de Maomé?

RABIH MROUÉ – Eu não faço essa relação de forma directa. Faço antes uma relação com o momento presente, há um problema sobre como fazer teatro, como pode um actor representar uma personagem como Hamlet?

PEDRO MANUEL – E porque é um problema?

RABIH MROUÉ – Já não consigo acreditar. E, ao mesmo tempo, é também porque estou a lidar com assuntos políticos e religiosos da minha região. Quando sou bombardeado com milhares de imagens por dia pelos media, pergunto-me: estou nesta parte do mundo, posso produzir mais imagens? é-me permitido produzir imagens? Parece-me que há uma espécie de impossibilidade, até porque estamos numa região onde já temos a nossa imagem feita, nós não estamos a produzir as nossas imagens, elas são produzidas por outros.

PEDRO MANUEL – A descrença que tem com a interpretação de personagens tem a ver com a impossibilidade de representação por imagens?

RABIH MROUÉ – Deixa-me colocar a questão outra maneira. Depois do fim da guerra comecei a fazer peças sobre a guerra civil e sobre o corpo marcado pela guerra. A minha questão era sobre o visual e o movimento físico. Mas descobri que o corpo em palco imitava num mau sentido o que realmente experimentávamos em vida. A violência da vida diária não podia ser representada desta maneira. Então, reflecti sobre a impossibilidade de representar a guerra em teatro. Penso que não devemos falar da guerra, devemos reflectir sobre ela. Para escapar à representação. Um dos tópicos constantes do meu trabalho é sobre onde começa e acaba a ficção, onde começa e acaba a realidade. A forma como se misturam. Vivemos num tempo onde a ficção e a realidade estão misturadas. Não vale a pena tentar distinguir a verdade da mentira.

PEDRO MANUEL – Em who’s afraid of representation? a representação por imagens é substituída pela descrição de body art performances e, de certa forma, é a descrição de acções que causam dor que se torna o meio de representação. Porque escolheu a body art e, sobretudo, estas performances tão extremas?

RABIH MROUÉ – Quando comecei a trabalhar nesta peça, a primeira pergunta foi: porque não existem este tipo de trabalhos na minha região? se eu quiser fazer um trabalho assim, em Beirute, posso fazê-lo? se o fizer, será que o público o aceita como uma trabalho artístico? A resposta é não. Não posso fazê-lo por causa da forma como a sociedade está constituída. Isto acontece porque temos uma falta de noção de cidadania, de individualismo. Vivemos num país que é multicultural, multilinguístico e religioso. Há tensões entre uns e outros mas temos de viver juntos. Neste contexto, a individualidade está ausente, a ideia de cidadania desaparece. Para fazer body art tens de ter um estado, tens de ser um cidadão, para que as pessoas aceitem esta acção como um acto de individualismo.

PEDRO MANUEL – Será que a body-art surge em países pacíficos por um impulso de violência, de ruptura extrema, que existe no quotidiano de países em guerra?

RABIH MROUÉ – Acho que não tem a ver com a guerra. É o conflito do indivíduo na sua relação com a comunidade. E, no nosso país, a problemática do indivíduo é a de viver em vários grupos, e essa falta de individualismo conduziu a um crime destes. No caso de Hassan Ma’moun nem os islâmicos nem os cristãos o reconheceram como sendo um dos seus. De cada vez que dava uma versão do seu crime, Hassan tentava incluir-se dentro de um grupo e nunca conseguiu. Mas no espectáculo não estou a tentar estabelecer uma comparação entre o criminoso e o body artist. Procurei aproximar duas coisas que não se misturam e tentar descobrir o quer podia surgir de novo neste choque. Não considero o crime como uma obra de arte, claro. A única coisa em comum entre a história de Hassan Ma’moun e a história de cada body artist é a linguagem, a violência da linguagem.

PEDRO MANUEL – É a segunda vez que apresenta um trabalho em Portugal, depois de Biokraphia, no Porto, também com Lina Saneh. Existe continuidade entre os dois trabalhos?

RABIH MROUÉ – Existe continuidade na medida em que também é sobre a representação. E também sobre teatro. Sobre a ausência do teatro, não da morte do teatro, o que é diferente. Porque na ausência do teatro existe esta promessa constante de que aquilo que está ausente vai regressar. Para mim, neste momento, o teatro está ausente. Pode estar aqui, mas não está no palco. Ao mesmo tempo, existe esta questão dos media. Represento os media através do vídeo. É uma reflexão sobre o poder da criação de imagens, esta relação com a vida transmitida em directo e como os media a utilizam como arma, sobre como nos relacionamos com a guerra, com a violência, através da transmissão em directo pela televisão. Chego a um ponto em que pergunto: quem é real? a imagem ou a presença?

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