Procurando Laura: legado e arquivo nas urdiduras da autoficção

31 de agosto de 2015 Conversas

Vol. VIII, nº 65, agosto de 2015

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Resumo: Conversa com o realizador Fabrício Moser sobre a montagem Laura. A peça, que tem como tema a trajetória de sua avó, é o encontro do artista com objetos, relatos e documentos que vem à cena contar, poeticamente, a trajetória de uma personagem anônima que teve sua história silenciada pela família e pela comunidade, devido ao trágico desfecho de sua existência.

Palavras-chave: autoficção, arquivo, legado, dramaturgia

Abstract: A conversation with Fabrício Moser about his play Laura. The life of his grandmother is the theme of this work that puts the artist in contact with objects, reports and documents which come to stage to tell, in a poetical way, the story of an anonymous character silenced by her own family and community because of the tragic end of her existence.

Keywords: autofiction, archiving, legacy, dramaturgy

 

“Não sou eu que gosto de nascer

Eles é que me botam para nascer todo dia

E sempre que eu morro me ressuscitam.”

Stella do Patrocínio

A conversa a seguir tem como tema a peça de teatro Laura, idealizada e capitaneada pelo artista Fabrício Moser. A montagem, que estreia no dia 21 agosto, no Centro Cultural Municipal Parque das Ruínas, Rio de Janeiro, conta a história da busca pelo legado de sua avó, falecida quando o ator tinha apenas nove meses de vida.

O enredo de sua morte lembra o poema “Tragédia Brasileira”, de Manuel Bandeira. Laura fora assassinada por Candoca, um homem que conhecera em um baile, em Cruz Alta, Rio Grande do Sul. Namoraram por um curto período, mas Laura não se encantou por ele, rompendo o romance, antes mesmo de começá-lo. Candoca, entretanto, incapaz de aceitar a recusa, perdeu os sentidos e alvejou-a com três tiros, suicidando-se logo em seguida, no mesmo lugar em que dera cabo à existência de Laura. Sobre o fato, depois do ocorrido, pouco ou nada se disse na família de Fabrício, que cresceu alimentando grande curiosidade a respeito da história de sua avó materna. O silenciamento do legado de Laura suscitou no artista o desejo de “um mergulho no meu passado, uma busca por ela e um encontro comigo. É um movimento físico diante da morte, em busca daquilo que permanece vivo”.

“Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”, nos diz Walter Benjamin (1994, p. 224). Seja a história coletiva, seja a história individual, revisitar o passado é sempre uma investida anacrônica: o tempo não é uma estrutura linear e as narrativas estão repletas de sentidos latentes. A jornada de Fabrício é a jornada de um herói que não quer distinguir o real da ficção, costurando sua dramaturgia com a mesma linha com a qual são tecidos os sonhos. Ainda que o teatro seja para ele ritual, este ritual é um ritual aberto ao acaso, portanto os componentes de sua dramaturgia visam à estrutura dos sonhos e seu itinerário de herói pode ter como bússola/oráculo as cartas de Tarô.

Na esteira do herói mítico de Joseph Campbell (2005), mas ciente da volubilidade dos materiais de que dispõe e da ausência de um porto de chegada, Fabrício mergulhou, nos últimos meses, em uma intensa pesquisa. Seu arquivo misturou, sem reservas, documentos materiais e imateriais: do inquérito policial que relata detalhes do crime a depoimentos de pessoas que a conheceram e tentaram resgatar de suas memórias hábitos e peculiaridades de Laura, Fabrício se viu em uma busca obsessiva de objetos, fotografias, relatos e documentos que pudessem fazer vibrar a questão que move a peça: “o que das avós há em nós”.

 

Cassiana: Como nasce o espetáculo Laura? Em que momento o neto Fabrício é “fulminado” com a ideia de uma montagem sobre sua avó?

Fabrício: A ideia de uma peça contando a trajetória de vida e morte de Laura surgiu há cerca de um ano. Essa inspiração veio no primeiro semestre de 2014. Eu buscava respostas sobre a relação entre o Fabrício sujeito e o Fabrício artista e ecoava na minha memória a lembrança de um jornal antigo, que noticiava a morte da minha avó e que me foi mostrado por uma tia na infância. O silêncio em torno dessa personagem e as possibilidades de ressignificação dessa narrativa na arte, tudo isso me mobilizou no sentido de descoberta do poder da própria história a partir das tentativas de contá-la, que é o que me movimenta no mundo, hoje. Isso aconteceu quando reconheci no meu material biográfico uma ferramenta frutífera, potente, transformadora. Então, o desejo de falar sobre Laura veio da percepção de que eu poderia compartilhar minha história pessoal utilizando as dobras da arte, ensinando e aprendendo, dentro de um processo autoficcional.

 

Cassiana: A narrativa de Laura foi silenciada devido ao trauma de sua família em virtude de seu assassinato. Como foi para você, o neto Fabrício, lidar com esse evento no processo de construção da dramaturgia da peça?

Fabrício: É interessante pensar nisso, porque, para mim, de forma consciente, a tragédia não aconteceu. Ao menos, eu não sinto a tragédia em meu corpo; se existem marcas desse acontecimento, elas me foram passadas através do convívio com a minha mãe, mas não reconheço, ainda, esse conteúdo trágico em mim. Essa avó morreu quando eu tinha nove meses de vida e há uma incógnita em relação ao fato de termos convivido, porque não morávamos na mesma cidade nesse período. Talvez com a realização da peça, com a passagem desse processo de busca por Laura, eu vá, quem sabe, passar pelo trágico que foi vivenciado por parte da minha família, por meus parentes mais velhos, de forma concreta. Penso que meu discernimento dessa tragédia não é igual ao daqueles que a viveram no momento de seu acontecimento. De minha parte, houve sempre um fascínio em relação à Laura. Enquanto para os outros, falar sobre Laura era reviver o trágico, para mim era fascinante, desde pequeno, ouvir sobre minha avó. Incomodava ver como as pessoas da família não falavam dela ou mesmo não conseguiam lidar de forma tranquila quando o nome dela era citado numa conversa. Eram esses grandes vazios e silêncios que me instigavam. Então, eu acho que percorrendo o itinerário de Laura de forma ficcional, talvez, de alguma maneira, eu possa estar ao lado desses que viveram de maneira real essa tragédia.

 

Cassiana: Uma coisa muito bonita, na feitura desse inventário, é o resgate dos hábitos de Laura. Como isso foi incorporado ao processo?

Fabrício: A busca pela história de Laura revelou coisas que a história comum, como havia sido tecida depois da tragédia, escamoteou. Penso que certos hábitos de Laura eram problemáticos para a família e para a sociedade da época. Laura era uma mulher independente, gostava de bailes. Gostava de tomar chimarrão embaixo de um pé de cinamomo. Tinha o ofício de cartomante, benzedeira e construía coroas de flores para o cemitério que ficava na esquina de sua rua, como forma de ganhar a vida. Fazia remédios também. Quando Laura morre alguns de seus hábitos morrem com ela. Então, são poucos os documentos que revelam a sua rotina, os seus pequenos gestos ou partem das vozes de testemunhas vivas. Tocar nesse assunto com gente da família e com pessoas que a conheceram foi um trabalho delicado. Laura tinha hábitos muito curiosos. Um deles era o de comer frutas na cama e jogar as cascas num pinico, que ficava embaixo de onde ela dormia, enquanto assistia às novelas. Esse hábito se repete nas filhas. Lembro-me de minha mãe, já falecida, fazendo a mesma coisa diante da TV. Laura gostava de pintar as unhas, mas não usava acetona para tirar o esmalte anterior: ela sobrepunha uma nova camada de esmalte quando não gostava mais da cor antiga ou a tinta do velho começava a descamar. Dizem que ela tinha uma TV preto e branco e ficava lá, em sua cama, assistindo a seus programas prediletos. Isso lá por 1982. Minha irmã mais velha, que conviveu com minha avó até seus sete anos, conta que era uma cama cheia de cobertas e quem chegasse podia se juntar a ela e assistir à televisão aquecido. Minha prima se recorda de um cobertor rosa. Laura, aliás, parecia gostar muito dessa cor. Em todas as fotos que eu consegui da vó Laura – porque eu não tinha nenhuma antes do processo –, ela aparece de vestido rosa. Pintava constantemente sua casa, gostava de paredes coloridas. Ela, ao que parece, lidava muito com tintas, seja pintando as paredes, seja tingindo as coroas de flores que fazia no cemitério. Além disso, Laura alugava umas peças da casa. Laura se separa de meu avô, Alcides, mais ou menos dois anos antes de sua morte. Ela vivia em uma casa de madeira construída por ele, sei que em um período alugava algumas de suas peças como rendimento. Eu não sei se Laura tinha alguma ascendência indígena. O que consegui levantar na pesquisa são as informações de que Laura nasceu em 1928, em Cruz Alta, Rio Grande do Sul, mas que sua família seria de Fortaleza dos Valos, à época um distrito dessa cidade. Essa era, no século XVIII, XIX, uma região onde aconteceram vários combates entre bandeirantes e índios. Os últimos, para resistir às missões dos colonizadores, construíram valos para impedir a invasão dos bandeirantes no local. Mas o lugar recebeu, mais tarde, portugueses. Então fica difícil precisar sua ascendência e acho que isso não é mesmo possível, devido à miscigenação. Nas conversas que tive com sua prima Maria, quando perguntei isso, se havia uma ascendência indígena, ela reagiu com estranhamento. Acho uma coisa difícil de dizer com exatidão, porque, como sabemos, há muita contradição nos relatos que recolhemos nesse tipo de investigação. Às vezes, as pessoas simplesmente não se lembram mais. Talvez, naquele momento, isso não importasse. Entretanto, de forma intuitiva, como parte do processo de criação da peça, estou praticando muitos desses hábitos de Laura, aprendendo a fazer chás, botar cartas, ritos de benzimento…

 

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Cassiana: Há a busca de Laura e a busca de Fabrício. Mas há ainda, na poética cênica da peça, uma busca partilhada, quando o espectador é convocado por meio da pergunta “O que das avós há em nós?”. De modo que o legado de Laura me parece também um dispositivo que conecta, logo de saída, o espectador às suas memórias individuais. Quais foram os cuidados para que a autoficção escapasse aos perigos de uma narrativa autocentrada, meramente narcisista?

Fabrício: Há um cuidado sim, um olhar para escapar desse lugar. Um cuidado para que a busca não seja, de certa forma, uma busca egoica, mesmo porque, se ela acontece através do teatro, ela não pode ser ególatra, uma vez que o teatro é relação e interação. Assim, na forma em que a concebemos, e estamos construindo, pois o processo ainda está em andamento, a narrativa acontece como um grande jogo. Trabalhamos com documentos e materiais dessas últimas décadas, com coisas do passado que ainda nos conectam com o hoje. Alguns desses elementos, com certeza, se ligam à plateia que tem mais de trinta anos, que vai se identificar com certos comportamentos, eventos, músicas e objetos. Mas há, ainda, a dimensão atemporal da peça: os saberes que todos nós carregamos em nosso corpo e rotina, fruto dessa transmissão ancestral, que não é passível de ser documentada e processada, ao menos de um modo racional. O espetáculo quer fazer vibrar a voz das avós do público. Queremos levar à cena a ideia de espectador emancipado, como nos fala Rancière.

 

Cassiana: Você mencionou Rancière (2010), autor de O espectador emancipado, como um dos teóricos que tem pautado o desenvolvimento da dramaturgia de Laura. Há outras fontes importantes nesse processo?

Fabrício: Na construção da narrativa, gosto muito de pensar em um termo de Tarkovsky, “associações poéticas”, que procura tirar o espectador de uma percepção racional da história. Não que ele recomende que o material não seja organizado, mas isso deve ser feito de maneira que a experiência, de forma muito sincera, esteja em primeiro lugar, de modo que o espectador seja incluído no diálogo a partir das dobras que essa associação de materiais apresenta. Essa poética cênica deseja convidá-lo a participar ativamente do processo de criação da peça. Uma narrativa que associa os materiais que alimentam a ficção. Em nossa montagem, a realidade alimenta a ficção através de documentos, depoimentos e fotografias, mas com uma liberdade nessa grande brincadeira de associação de materiais. Há muitas versões e histórias sobre cada objeto que consegui reunir no inventário de Laura. Acho que cada apresentação possibilitará uma experiência inaugural na significação desses objetos. Estamos a um mês da estreia, a criação da narrativa ainda está em processo, há muitas coisas que ainda não sei sobre a peça, mas algo me é muito claro: sei que não quero uma narrativa tradicional, racional. Como Laura, que era benzedeira e cartomante, trabalhamos com o ritual, um ritual aberto ao acaso, no qual estão em jogo a experiência de Fabrício, de Laura e dos espectadores, em face de todos esses materiais que compõem a cena.

 

Cassiana: Apesar de contar com inúmeros colaboradores, você dirige, atua e é, em grande medida, o responsável pela pesquisa. Como está sendo mediar essas funções ao longo da construção do espetáculo?

Fabrício: Tem sido um aprendizado. Desde que comecei em minha vida a relação com teatro, eu nunca deixei de ocupar essas várias funções ligadas à criação. Poucas vezes fiz um projeto que não fosse mobilizado por minha pessoa, como diretor ou diretor/ator, ou por mim e outras pessoas, ocupando esse ou aquele papel. Raríssimas foram as vezes em que realizei um trabalho em que eu tenha descoberto o seu propósito em uma reunião, o que é muito comum no mercado profissional hoje. Eu já havia feito um monólogo em minha formatura, em Santa Maria, quando adaptei Dom Quixote, de Cervantes, mas desde sempre, vivenciando essa condição de diretor-ator. É claro que eu estava na academia e havia uma orientadora que me acompanhava e foi muito presente durante o ano da produção da peça. No Rio de Janeiro, temos um tempo mais reduzido de trabalho e tem sido um aprendizado. Naquele momento, eu tinha um texto, Dom Quixote, um texto literário que era uma base bem estabelecida, na qual tinha de me pautar. Agora, estou tentando criar tudo. A um mês da estreia, posso dizer que o Fabrício-ator caminha a léguas do Fabrício diretor, ainda que muitas descobertas tenham vindo da experimentação na cena. Mas eu acho que o mais difícil é decidir o que fica de todas as experimentações, pinçar e organizar todo esse material, um trabalho bem complexo, de dramaturgia mesmo. Temos seis colaboradores no processo. A relação do Fabrício ator – diretor com os colaboradores vem sendo uma descoberta. Não há, por exemplo, uma função específica ou uma hierarquia entre eles. Cada um colabora como pode, quando e como prefere.

 

Cassiana: Na construção poética da cena, você expõe constantemente os materiais de sua pesquisa. Como você mencionou antes, a pesquisa é a peça; o arquivo é um arquivo aberto, pulsante, que a dramaturgia deve preservar e revelar ao espectador. Como esse arquivo se torna um legado?

Fabrício: Em primeiro lugar, na busca pela minha avó, esse arquivo é um legado para mim e para a minha família. Segundo, na peça, com o público, ele se torna um legado coletivo, e essa é uma das investigações empreendidas na construção da dramaturgia da peça. Existem diferentes sujeitos e linguagens se cruzando nesse processo. A performance, por exemplo: na companhia de Ana Paula Brasil e Nathália Mello, me lancei ao mar da Praia Vermelha e tentei dançar nas ondas, que nesse dia estavam fortíssimas, segurando nas mãos um espelho. Esse objeto é, de fato, do acervo de minha família. Antes de a moldura abrigar o espelho, havia ali uma fotografia de Laura e de meu avô, Alcides. Depois de sua morte, minha mãe substituiu a foto, colocando um espelho no lugar. Então, esse objeto que foi modificado, que contribuiu para apagamento da história de Laura durante um tempo em minha família, esteve em uma experiência que foi para a sala de ensaio. Há fragmentos de sonho de um dos colaboradores, o Cadu (Cinelli), que sonhou com imagens riquíssimas. Um sonho no qual eu e os outros colaboradores estávamos em torno do corpo de Laura que aparecia em um ataúde, enquanto conduzíamos um ritual em torno dele. Há, ainda, e-mails, objetos que me foram enviados por eles, textos e memórias de Gabriela Lírio, Francisco Taunay e Rafael Cal, além do manancial de materiais que levantei durante a busca, que de fato faziam parte do universo de Laura… O método é a pesquisa em si e a pesquisa é a peça. Em Laura, os materiais e os mecanismos de encenação estão expostos em toda sua vulnerabilidade. Esses materiais carregam em si um legado partilhado, um legado de vivências sensíveis de notável potencial de associação, que é meu e não é, mas esse é o jogo. O arquivo do processo criativo: os objetos que ganhei, as entrevistas que fiz em minha viagem a Cruz Alta, os trajetos que filmei; tudo isso gera a dramaturgia da peça, a dramaturgia da busca pelo outro. O arquivo é arquivo incompleto, em permanente construção. Eu espero que a peça seja um legado para as mulheres, um legado sobre os saberes ocultos, um legado sobre como lidar com as tragédias, mas, sobretudo, que parta de um arquivo partilhado, sobre o qual o espectador precisa trabalhar, para torná-lo também seu.

 

Cassiana: A qual gênero se filia o espetáculo Laura?

Fabrício: Sempre tenho dificuldade em determinar gêneros específicos para as minhas peças. Nesse caso, a ideia do teatro autobiográfico, da tragédia e dos rituais aparecem com a intenção de operar relações para além de seus dispositivos habituais. Mas, quando nos confrontamos com o trágico, surge o silêncio e nesses silêncios morrem as pessoas e as histórias. É preciso falar sobre a morte, é preciso conversar sobre nossas tragédias. Eu quero que Laura seja um ritual trágico que, ao invés de silenciar, gere a fala, a história. Uma encenação capaz de reverter o golpe que foi a morte dela e que resultou no silenciamento de sua figura. Uma aprendizagem, com base na tensão silêncio/ fala; na reclusão e na suspensão da reflexão. A busca de um conhecimento outro, compartilhado através do diálogo, da conversa, da comunidade.

CASSIANA Certidão de nascimento

Cassiana: Um dos ofícios de Laura, segundo sua pesquisa, era o de cartomante. Há uma relação entre as cartas de Tarô e a dramaturgia de Laura?

Fabrício: Sim. Quando me formei na academia, realizei um estudo sobre os sonhos, as cartas de Tarô e a trajetória do herói mítico, sob a orientação de uma pessoa muito importante para a minha formação, Adriana Dal Forno. Esse tema foi deixado de lado quando cheguei ao Rio de Janeiro, embora antes disso, em Dourados, Mato Grosso do Sul, ele tenha me gerado um grande fascínio. Há uma coincidência, que encarei como sinal, quando descubro que Laura tinha a prática de Tarô como forma de ganhar a vida, pois o assunto já era de meu interesse. Isso me fez retornar ao estudo da estrutura dos sonhos, dos arcanos do Tarô e do herói mítico. Conversei com algumas pessoas e muitas delas me disseram que, realmente, Laura possuía o dom da adivinhação. No processo, outra obra do acaso estimulou essa empreitada: encontrei uma carta de Tarô dentro de um livro. Uma tentativa é incorporar, na construção da dramaturgia, o ritual de tirar as cartas de Tarô, para desenhar a trajetória de meu personagem em cena, a minha trajetória, um risco. Estamos buscando uma dramaturgia que nasça desse raciocínio do sonho, das cartas do Tarô, da lógica do herói mítico, tão bem trabalhada por Joseph Campbell (2005) em sua obra O herói de mil faces.

 

Cassiana: Cruz Alta, Dourados, Rio de Janeiro… Objetos do passado e do presente que se cruzam… Fale um pouco desse anacronismo presente em Laura.

Fabrício: Difícil, mas sim… A montagem Laura está repleta de anacronismos. Você colocar, por exemplo, alguém fazendo um benzimento ao lado de um computador conectado na internet é para mim um completo anacronismo. Queimar ervas mágicas ao lado de um projetor de 2.400 lumens… Transitar entre o passado no presente gera esses anacronismos, é inevitável.

 

Cassiana: Por fim, o que é o teatro para você, Fabrício Moser?

Fabrício: O teatro [Longo silêncio]. O teatro, para mim, é um modo de ser. Uma forma de alimentar outros seres… O teatro é mágico. É um ritual de cura, transformação. Um evento em que pessoas se ajudam mutuamente através de sua presença e de outros elementos, do corpo e do espírito. É encontro, conversa e diálogo, onde acontece um aprendizado.

 

Inromações sobre a peça:

Fabrício Moser é formado em Artes Cênicas pela UFMS (2006) e é mestre em Artes Cênicas pela UNIRIO (2011). Desde 2012, é professor de teatro do Instituto Priot, trabalhando com crianças com autismo e outras necessidades especiais. Integra a Cia Enviezada, no projeto “Caminhos, uma intervenção urbana”. É responsável por diversas investidas artísticas independentes, como Duo sobre desvios, criado em 2013, em parceria com Cadu Cinelli, montagem que circulou por cidades brasileiras como Recife, Curitiba, Barra Mansa, Campo Grande e Dourados, e teve temporadas europeias, nas cidades de Porto e Évora, em Portugal, e Santiago de Compostela, na Espanha.

 

Ficha Técnica

Pesquisa, criação e atuação: Fabrício Moser

Artistas colaboradores: Ana Paula Brasil, Cadu Cinelli, Francisco Taunay, Gabriela Lírio, Nathália Mello e Rafael Cal.

Produção executiva: Sérgio Medeiros e Thaís Tedesco

Customização de figurino: Cláudia Sin

Fotografia: Ricardo Martins

Programação Visual: Bruno Salabastian.

Apoio: Art Hostel Rio e Pouso do Atobá/Paraty, Instituto Priorit, Centro Cultural Municipal Laurinda Santos Lobo e Centro Cultural Municipal Parque das Ruínas.

Programação visual: Bruno Morais

Estreia: 21 de agosto às 19h30min

Local: Centro Cultural Municipal Parque das Ruínas

Rua Murtinho Nobre, 169, Santa Teresa, Rio de Janeiro.

 

Referências bibliográficas:

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 2005.

PATROCÍNIO, Stela do. Reino dos Bichos e dos animais é o meu nome. Organização e apresentação de Viviane Mosé. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001.

RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Portugal: Orfeu Negro, 2010.

 

Cassiana Lima Cardoso: Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com a tese Samuel Beckett, o jogador melancólico. É professora adjunta do Departamento de Línguas e Literaturas do CAp-Uerj.

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