Conversa com Gerald Thomas

Conversa com Gerald Thomas

16 de janeiro de 2009 Conversas

A conversa foi realizada no dia 9 de dezembro de 2008, por Joelson Gusson e Felipe Vidal. O vídeo da conversa está disponível na TV Questão de Crítica, nosso canal no You Tube.

GERALD THOMAS – Eu tô numa posição muito diferente. Enquanto a maior parte das pessoas cavam entrevistas, eu me vejo numa posição de não querer dar entrevistas.

JOELSON GUSSON – Você quer dar essa entrevista?

GERALD THOMAS – Pra vocês é diferente. Porque uma coisa mais underground, uma coisa mais pra estudantes, é muito legal.

JOELSON GUSSON – Como é pra você a questão da crítica agora? Com esses novos veículos que existem, e você também fazendo o seu trabalho utilizando esses novos veículos, como é que fica essa coisa de ter um monólito como a Bárbara Heliodora, por exemplo?

GERALD THOMAS – É sempre a mesma questão. Sempre me perguntam isso. E sempre se referem ao Rio de Janeiro. Eu não moro no Rio de Janeiro, entende? Você tem que me perguntar como é a crítica no mundo. Aí eu te respondo como é a crítica no mundo. A crítica no mundo não conhece a Bárbara Heliodora. Então você tem que dividir: o Rio de Janeiro é um balneário. Por acaso, eu acho a Bárbara muito engraçada. Agora você me pergunta: a Bárbara Heliodora – isso é um problema do Rio de Janeiro.

JOELSON GUSSON – Mas então se a gente esquecer ela, como é que fica?

GERALD THOMAS – A crítica mundial tem o Ben Brantley, por exemplo, em Nova York. Como sempre, o New York Times já descobriu há anos, séculos, décadas atrás, que tem uma crítica pra Broadway, que tem uma crítica pra off-Broadway, e tem um crítico pra off-off-off-off-off-Broadway.

JOELSON GUSSON – Você já escreveu sobre isso há anos…

GERALD THOMAS – Já escrevi artigos enormes sobre isso. Eles descobriram há séculos que o crítico que lidava com a Broadway não saberia lidar com outros espetáculos. Então, é óbvio que teria que ter uma pessoa que, enfim, um estudante de Beckett ou um estudante de coisas com uma cabeça muito mais aberta, experimental, que estaria disposto a ver uma coisa despojada, onde talvez nada acontecesse mesmo – um crânio de onde saísse talvez uma mão durante três horas e nada acontecendo, com uma voz fazendo “rrr…rrr” – e aquilo era chamado pelo diretor de teatro. Aquilo é teatro – ou uma performance – e talvez no final um papagaio saísse duma gaiola e caísse no chão morto e aí terminava o espetáculo. Eu tô citando um exemplo, talvez mal, mas, enfim, talvez o Wooster Group, na Performing Garage no final dos anos 60 e 70 era, no East Village, considerado teatro. E o New York Times entendeu que se ele não emigrasse pra essa região de teatro com um crítico próprio, ele perderia um público: o jovem que não compraria o New York Times. Ele estaria perdendo público pro Village Voice, porque o Village Voice entrou firme, entrava com nove páginas por semana. Aí o New York Times falou: nós vamos entrar todo dia. Então aqui tem a questão da competitividade,tem a questão do capitalismo, que entra nisso. Agora, aqui O Globo é monopólio, o que O Globo decidiu, O Globo faz. O brasileiro também é muito preguiçoso. Colônia de Portugal não tem jeito. Então, a mesma coisa você vê em Portugal: (com sotaque de Portugal) – A crítica, já decidimos aqui que não vamos fazer. – Então é assim: qualquer coisa vale. Como aqui não tem muito teatro experimental mesmo, por que haveria de ter uma crítica experimental? Não é?

FELIPE VIDAL – Mas você que escreve pra internet bastante, também tem o seu blog, você acha que ela pode ser um veículo que pode propor outro tipo de discussão?

GERALD THOMAS – Você sabe quantos blogs existem no mundo? Eu tenho um número exato: 128 milhões de blogs. Esse é um número estatístico. São 128 milhões de blogs. É quase um Brasil inteiro. Um Brasil, menos o Estado de Goiás e menos o Estado do Mato Grosso e tal. Imagina? Cada criança, cada pivete, todo o mundo blogando. E blog, não é como o meu, que tem um artigo a cada dois dias, blog são aqueles caras que ficam o dia inteiro. É um inferno. A tendência é virar o dobro a cada ano. Ou seja, daqui a três anos teremos então 600 milhões de blogs. Vai multiplicando isso. Daqui a pouco ninguém mais lê. A tendência é ler menos. Peneira-se, filtra-se, pega-se alguns nomes. No Brasil, todo o mundo sabe os nomes, nos EUA, a gente tem alguns nomes, na Inglaterra tem alguns nomes. Ninguém cruza muito as fronteiras. Primeiro por causa da questão da linguagem. No Brasil não se lê algumas coisas, americano não lê brasileiro, os brasileiros não lêem os portugueses, os portugueses não lêem os brasileiros. É incrível como, mesmo com a Internet, as coisas continuam dentro das fronteiras. É impressionante. Internet quebra fronteira? Não, não quebra fronteira.

JOELSON GUSSON – É, a gente não consegue ler muita coisa, porque a gente não lê japonês, a gente não tem acesso a esse tipo de lugar…

GERALD THOMAS – Mas toda a motivação da Internet, toda a razão dela existir, é pra ela quebrar as paredes da comunicabilidade. Quebrou? Claro, quebrou sim, quebrou, eu mando e-mail pra Austrália. Eu mando e-mail. Isso sim. E skype. Eu falo por skype, eu dirijo por skype, aliás. Eu dirigi ontem de madrugada, às três da manhã, eu tava dirigindo uma peça em Londres três horas depois. Claro, isso é factível sim: uma spy camera instalada e eu dirigindo os atores ali. Isso chama tecnologia, mas não chama Internet, porque antigamente era feito por satélite.  Voltando à questão da crítica, já que você perguntou, eu acho que ela não mudou, em essência, ela não mudou em nada desde que eu entrei no teatro trinta anos atrás. Em nada. Nos EUA, ela continua fechando e abrindo espetáculos, ela tem o poder de fazer fechar espetáculos dizendo: – Esse espetáculo é uma merda – e três dias depois ela fecha mesmo. Como acabou de fechar um espetáculo lindo, um fabuloso experimental, na Broadway. E faz viver espetáculos que você fala: – Mas, meu deus, olha só que horror! – Todo o mundo de verde fluorescente (imita sons de musical), e você fala: – Mas que bosta, que horror! – E vai o Brantley e fala: – It’s fabulous! It’s extraordinary! It’s great– e o Brantley tem cultura, o Brantley é um cara que – assim como o Frank Rich, que saiu da crítica e escreveu os melhores livros contra o George W. Bush, é um dos maiores inimigos do Bush, você vê que o cara tem base e tal… Não dá pra entender. Não dá pra entender. Não dá pra entender. Não dá pra entender. Não dá pra entender. E não é corrupto, não é questão de corrupção. A corrupção aconteceu durante o período de 2004 e 2005, quando se comprava sim uma crítica no New York Times por mil dólares.

JOELSON GUSSON – Ah, é?!

GERALD THOMAS – Sim. Anita Gates e Christopher Isherwood, durante um período muito escuro, quando eles estavam tentando recrutar estudantes de Yale, por causa da Internet. Porque na Internet circulam críticas que eles não botam no jornal impresso. Ah, esse papo é estranho.

(…)

Essa questão entre artista e crítico não tem solução. Sabe qual é a melhor coisa? Não presto atenção em crítica. Aí quando sai uma crítica boa, todo o mundo – Ai, que bom que saiu uma crítica boa, ai que bom! – E quando sai uma crítica ruim: – Você viu a crítica? Que merda… Puta merda, que ruim, hein. – Aí o pior é que os próprios artistas se sacaneam: – Mas você teve uma crítica péssima, hein? Puta merda, acabaram com você, hein? – E aí é incrível como a própria classe, que sabe que a crítica não importa, acaba validando ou não um outro artista usando a crítica como arma. Eu acho assim… Eu ainda me pego fazendo isso: – Você viu que crítica péssima? – Eu acho assim, sabe, meio, não sei. Eu não vou prum determinado país porque a comida é péssima. Bom, a comida não é tudo que tem num país. Vamos mudar de assunto?

JOELSON GUSSON – Eu queria te perguntar uma coisa sobre isso. O que você acha de um crítico seguir um trabalho, como acontecia antigamente. Existe hoje em dia isso de novo. Algumas pessoas que fazem crítica, mas não estão no jornal…

GERALD THOMAS – Ah, tem acadêmicos. Scholars.

JOELSON GUSSON – …e que discutem o trabalho com o diretor. O que você acha? Você acha isso uma coisa interessante?

GERALD THOMAS – Eu acho, muito. Você tem muito a aprender com isso. Mas isso não é o crítico, isso é o scholar. Isso é o acadêmico de teatro, o cara da universidade.

JOELSON GUSSON – Sim, e são essas pessoas que saem dessa universidade que possivelmente formariam os possíveis críticos, os novos críticos. Acho que é por isso que eu falo críticos.

GERALD THOMAS – Eu sei o que você tá dizendo. Mas isso não interessa pro jornal, interessa pro jornal aquele cara mais raso, bombástico. Pro jornal não interessa uma coisa erudita. Entende? Porque ele vai usar termos que o leitor não entende, ele vai usar referências que o leitor não entende. O que interessa pro leitor se o cara começa: – Porque pirandellianamente falando… – o leitor já não entendeu. O leitor lá da Barra da Tijuca, o emergente novo lá, já mudou de página. – Porque embasado na Commedia Dell’Arte… Embasado na Commedia Dell’Arte? Como assim? – Ele quer ler coisas rasas. Então não adianta, por exemplo, o Da Costa, uma Flora Süssekind, um Jacó Guinsburg, sabe essas pessoas de teatro, aqui no Brasil? Um Harold Bloom? Essas pessoas que são críticos, no sentido de críticos embasados de teatro, não poderiam jamais escrever prum diário. Porque, primeiro, ele precisam de tempo. E o jornal é pra amanhã: saiu do teatro, foi pra casa e (faz gesto de digitar um texto). Nem sabe, é na hora, não é comida sofisticada. É hamburger. É hamburger. – Faz aí uma fritada de ovo com batata, rápido. – Chama em inglês short order cook. Short order é lanche. Não é uma cuisine refinada, que você chega no restaurante, o cara te faz um antepasto; a comida tá lá dentro, o cara tá preparando com muito cuidado, aquela comida é esculpida. Você vai com cuidado pro restaurante. Tempo, vinho antes, segundo vinho. Tempo. Não se tem esse tempo, porque é pra amanhã porque o jornal fecha à uma da tarde.

JOELSON GUSSON – E tem uma formulazinha, sabe como que vai falar, uma coisa depois da outra.

GERALD THOMAS – E espaço. Escreva tudo com mil e quinhentos toques e acabou. Antigamente, quando se tinha o Sábato Magaldi, quando se tinha o Décio de Almeida Prado, tinha espaço. Podia falar de figurino, podia falar de…

JOELSON GUSSON – Podia fazer duas críticas da mesma peça.

GERALD THOMAS – Tinha dias, sete dias seguidos. Um dia era só sobre figurino, outro era só sobre cenário… Mas não era só sobre teatro, você podia falar sete dias sobre vários aspectos das artes. Hoje em dia é mil e quinhentos toques pra falar sobre tudo.

JOELSON GUSSON – E o que tá te interessando agora? Artisticamente falando? O que te interessa falar?

GERALD THOMAS – Ciências…

JOELSON GUSSON – Eu te perguntei isso porque esse título do seu trabalho que tá na Internet, achei tão esquisito…

GERALD THOMAS – O que O Cão que insultava mulheres?

JOELSON GUSSON – O Cão que insultava mulheres.

GERALD THOMAS – Mas: vírgula Kepler. Kepler, astrônomo do século XVI.

JOELSON GUSSON – Então, isso era o que eu queria entender, porque você falou de ciências e coisa e tal.

GERALD THOMAS – Então, a gente tá descobrindo o planeta…

JOELSON GUSSON – Eu falei esquisito no sentido latim.

GERALD THOMAS – Exquisite.

JOELSON GUSSON – Exquisite.

GERALD THOMAS – Pois é, então, por um lado eu tô muito, muito cansado, porque eu não paro. Eu queria fazer uma coisa que todo o mundo faz de vez em quando, que é poder parar e descansar. Mas eu sobrevivo do que eu faço, então eu não posso. Esse espaço que a gente tava em São Paulo, no SESC Paulista por seis meses… Eu pegava um avião a cada três semanas: São Paulo/ Nova York, Londres/ Nova York, Munique/Nova York então, a pressurização, a despressurização… Você entra no avião e fica horas pra decolar. Hotel: chega no hotel, desfaz a mala… Você começa a perder a sua identidade. Aí quando você finalmente chega em casa, tá um inverno louco. Aí você fala: Eu quero ir pra Miami. Lá tem paz, a água é limpa. Nadar, pegar um pouco de cor, comer regradamente, porque também não adianta ficar em Nova York arrecadando fundos para um teatro. A pressão dos amigos, dizendo – Tem que sair pra jantar.

– Não quero. – Então a gente vai aí. – Não quero entreter ninguém. Não quero falar com ninguém. Eu quero ler livros. Eu preciso ler. Aí você tá muito tenso, liga a televisão: Law & Order – special victims unit, um atrás do outro, Law & Order, Law & Order, CSI Miami, Law & Order, CNN, CNN, War, War in Iraq. Aí começou a campanha do Obama. Eu fiz parte por um ano inteiro da campanha do Obama. Escrevendo textos, escrevendo textos, e seguindo junto com a caravana por dezesseis Estados.  E hoje eu tô esse caco de ser humano que eu tô. E eu não agüento mais. E eu não sei o que eu tô respondendo mais. 

(risos)

JOELSON GUSSON – Eu te perguntei o que te interessa articamente.

GERALD THOMAS – Nada me interessa artisticamente. A gente votou no Obama. Hoje eu tenho o presidente do qual eu me orgulho. Depois disso, a utopia agora não é mais utopia, é uma realidade. Eu tenho o Obama como presidente. Eu consegui uma coisa que eu queria muito, que era o Obama como presidente. Então já não é mais um sonho. Vamos ver se funciona. Sabe quando uma criança quer muito o brinquedo? Agora conseguiu: tá lá. Agora, vamos ver se… Por exemplo, fui convidado pra integrar uma comissão de cultura. Sou contra. Não quero comissão de cultura. Acho que nos EUA não cabe comissão de cultura. Não é pra ser estatizado. Não é como funcionaria. Então, não sei… Já fui pra Washington umas vinte vezes. De trem, de carro, de avião. Tô fazendo trabalhos que eu não quero fazer, de óperas que eu não quero fazer. O que me interessa? Me interessa talvez voltar pra Beckett.

JOELSON GUSSON – Na proposição que você tem, que vai estrear essa semana?

GERALD THOMAS – Que talvez estreie essa semana. Talvez estreie essa semana.

JOELSON GUSSON – Tá, então pula essa parte. (risos) Porque eu li o texto. Me parece que sim. Você volta? Você acha que tá trabalhando em cima disso? Que você tá voltando, pra esse lugar do Beckett que você quer?

GERALD THOMAS – É um texto muito mais… Beckett nunca seria tão explícito. O Beckett não usa tantas palavras. Ele nunca falaria num Bordeaux, 1903. Ele não usa esse tipo de psicologia. Ele não fala da ascensão e queda. Nunca falaria. O Beckett fica muito mais na… Não sei, quero dizer, uma figura solitária num cenário detonado, isso já em si é uma coisa beckettiana. Mas um sujeito pendurado de cabeça pra baixo sendo açoitado não é beckettiano. Ele jamais levaria a esse extremo. Isso, de jeito nenhum. Então, eu só acho que eu sou a soma dessas coisas todas. Quer dizer… Da mesma maneira que eu não posso me dizer, não sei… Eu tô lendo coisas, relendo coisas que eu li no museu britânico quando eu tinha dezesseis, dezessete anos, de astronomia, de astrofísica, Gibson, On the edge of time, Kepler. Porque eu fui expulso da ópera do Phillip sobre Kepler. Fui expulso. Eu tava trabalhando com o Phillip Glass…

JOELSON GUSSON – Quando?

GERALD THOMAS – Exatamente um ano atrás. No dia 14 de dezembro vai fazer um ano que eu fui expulso da equipe de uma ópera na qual eu tava trabalhando há três meses. Sobre Kepler, sobre Johannes Kepler. Porque um judeu israelense filho da puta chamado Yram Berg que é dono do dinheiro que circula nas artes austríacas na cidade de Linz, que é a capital cultural européia de 2009, tem um amigo belga que ele queria que dirigisse essa ópera. Então eu tava sendo contratado não sei porquê, porque o tempo todo ele queria, desde o início, que esse cara fosse o diretor. Então eu tava trabalhando com o Phillip e o Phillip não sabia também. Eu jantei com o Phillip agora na quarta, e ainda tava contando: – Cara, mas que loucura. – A gente gastando três meses de trabalho junto, escrevendo libreto e se divertindo. Porque eu e Phillip a gente não trabalha, a gente fica brincando só. Mas na verdade a gente tava trabalhando sim, na medida em que eu tava descobrindo tudo sobre Kepler, a vida do Kepler, os seis filhos tuberculosos, e ele mudando de cidade, porque o Kepler era alemão, mas acabou na Áustria. E ele não entendia nada que os austríacos falavam. Ele ficava: – Hã? Hã? Hã? – E os austríacos falando é meio como Hitler. Você já viu no You Tube o Hitler falando? Os últimos dias de Hitler? Eles pegaram um trechinho do Bruno Ganz (imita Hitler). E todo o mundo assim em volta dele (com os braços cruzados, expressão séria). E eles botam legendas: – E o Manchester e o United estão derrubando o… Eles não podem deixar o Ronaldo marcar o último gol. – E vira tudo futebol, né? E ele descabelado no bunker lá embaixo. É do filme A queda. E com legendas de futebol você se caga de rir, é muito engraçado. E, no dia 14, numa reunião, vem todos eles da Áustria, a gente se reúne na casa do Phillip e começam a me fazer perguntas, como se eu estivesse num teste, numa audição. – Eu não tô entendendo, a gente tá trabalhando há seis meses. – E o Phillip: – Eu não tô entendendo. Como assim esse tipo de pergunta? – E eles me pedem pra botar um DVD meu, de trabalhos completos. E tá lá o meu companheiro de anos, o Klaus Peter Kehr, com quem eu já fiz todas as óperas. Então, eu falei – Olha, vocês querem saber de uma coisa? Tchau pra todos vocês. – Eu fazendo teste? Há trinta anos, dezenove obras que eu fiz. E o Phillip – Você tá indo embora? Como assim? Você vai ficar aqui. – Eu falei – Phillip, depois eu te ligo. – Aí eu mesmo saí, eu saí andando. Um dia frio pra caramba. 14 de dezembro. Um dia super frio. Eu tava de camiseta com um casaquinho em cima. Saí andando. Aí fui pro La Mamma, que é a um quarteirão dali. Fui visitar a Ellen. A Ellen disse – Você tá bem? – Eu falei – Pra dizer a verdade, não tô não, tô meio chateado – O que aconteceu? – Uma reunião horrível aqui na casa do Phillip – Aí ela disse – A casa do Phillip é sempre horrível. – Mas por quê? – Ele me deve um conserto de graça há 25 anos. – Como? – É, ele tem que dar um concerto pra mim de graça pra me pagar. Por que o Mabou Mines quando veio da França dormiu aqui no meu subsolo. – A gente tava lembrando esses tempos então. O que me interessa? Voltar pra Kepler. Estudar um pouco de coisas reais, sabe. Kepler, Galileu, Copérnico, e aí dar um pulo pra Steven Hawkers, pros caras da NASA hoje em dia. Os caras que lidam com o etéreo – por um lado, porque é tudo uma suposição, o buraco negro, a história paralela, o quantum, a teoria do quantum, que na verdade é tudo uma grande suposição – ao mesmo tempo são os caras que lidam ali com a física quântica, a física. Física – números, são suposições – mas ao mesmo tempo são pessoas que lidam com a matemática pura, com coisas que, enfim, é um pouco além do nosso palquinho, ali, com uma pessoa debaixo da luz, falando textinho.

JOELSON GUSSON – Mas peraí, isso é pra virar trabalho seu? Não, Você só tá interessado nisso. Porque eu já ia te perguntar: como você vai fazer isso virar alguma coisa?

GERALD THOMAS – Não, não, eu tenho um filme pra fazer. E eu não sei muito bem como começar. Uma pessoa que é apaixonada pelo cinema a vida inteira, que eu vi tudo, desde criança que eu vejo cinema, acompanho, sei como são os cortes. Me pergunta como são os cortes de Morangos Silvestres do Bergman. Eu digo qual é o ângulo e tudo. E agora na hora de escrever um roteiro de cinema, tô engasgado, não sei como fazer. Não é estranho? Não sei…

JOELSON GUSSON – Você não tinha um escrito? Começava com a chuva no casamento, a chuva, o ovo?…

GERALD THOMAS – Então, tenho. Mas…

JOELSON GUSSON – Não quer mais?

GERALD THOMAS –  …é muito surrealista. É muita confusão. É muito borrado, muito… é muita confusão na tela ao mesmo tempo. Tem que limpar. Aquilo não é cinema, é uma tela de Dalí. Não é cinema. Cinema é outra coisa. Por isso eu digo que eu tenho que limpar a cabeça um pouquinho. É que tem uma hora que…

JOELSON GUSSON – Mas você vai pra Miami? Você fala – Vou lá tomar um sol – Você vai mesmo?

GERALD THOMAS – Vou sempre. Quer provas? Dou provas.

JOELSON GUSSON – Porque eu não acredito.

GERALD THOMAS – Você acha que esse bloquinho aqui é de onde?

JOELSON GUSSON – (lendo) Miami beach… Eu pensei que você fosse mostrar uma foto. Porque você pode ir pro hotel e ficar lá preso.

GERALD THOMAS – Pede pra Fabi. A Fabi te mostra fotos. Eu, dentro d’água, ninguém me tira da água.

JOELSON GUSSON – Eu já te vi na praia, é verdade.

GERALD THOMAS – Você já me viu na praia, na Barra.

JOELSON GUSSON – Aquele mar violentíssimo.

GERALD THOMAS – Ninguém me tira da água. Em Miami então, que a água é uma piscina transparente. Eu fico assim, umas três horas, direto. Nadando debaixo d’água. Eu nado, nado, vou pro lugar depois da bandeira vermelha, tem umas boias vermelhas. Não pode ir porque tem tubarão. Tubarão é a… Se quiser me comer, come. Viro puta: quer me comer? Come. Eu amo, que nem todo judeu velho de Nova York, eu amo Miami. A Florida inteira. Não tem ninguém na Florida, são todos de Nova York ou de Cuba.

JOELSON GUSSON – Eu nunca fui lá.

GERALD THOMAS – É, não tem nada pra fazer lá.

 JOELSON GUSSON – Eu vou na Barra…

GERALD THOMAS – Ah, mas não se compara. Miami é uma coisa assim… Só tem viado, puta, cubano e judeu. Judeu mesmo, vestido, um calor da porra – Como é que você tá vestido assim? – judeu ortodoxo.

JOELSON GUSSON – Acabou a sua estadia no SESC Paulista?

GERALD THOMAS – Acabou.

JOELSON GUSSON – E agora você vai fazer o quê?

GERALD THOMAS – Como assim?

JOELSON GUSSON – Você vai pra onde?… Aquela pergunta: – Quais são os seus planos para o futuro? – A pergunta mais legal que tem na entrevista é assim.

(risos)

GERALD THOMAS – Uma grande orgia e morrer.

JOELSON GUSSON – Uma grande orgia e morrer. Viu? Falei que ele ia falar que ia morrer?

(risos)

GERALD THOMAS – Encontrar Calígula, fazer amizade com Calígula… Não sei, juro, não sei. Planos? Tenho milhões de planos. Eu queria terminar o meu teatro em Nova York, conseguir uma fortuna… E agora veio o crash econômico, agora ninguém mais dá um tostão. Agora eu não sei. Eu tava no caminho de conseguir. Tinha investidores potenciais. Tinha um cara das Filipinas, da Filipina, dos Filipinos, from The Phillipines

JOELSON GUSSON – Das Filipinas.

GERALD THOMAS – …interessadíssimo, contanto que eu colocasse dois espetáculos das Filipinas por ano. Tem um cara da África do Sul. Vários investidores. Agora…

JOELSON GUSSON – Em Nova York?

GERALD THOMAS – É um espaço em Nova York.

JOELSON GUSSON – Que não tem nada a ver com o La Mamma?

GERALD THOMAS – Não. Eu preciso sair do La Mamma. Eu preciso sair do La Mamma. Eu preciso sair do La Mamma. Eu preciso sair do La Mamma. Vou falar de novo, tá?

JOELSON GUSSON – Pode falar, eu tô escutando de novo.

GERALD THOMAS – Eu preciso sair do La Mamma. Eu preciso sair do La Mamma. Tem uma equipe fazendo um documentário a respeito da minha vida e obra. Que também é interminável. Não agüento mais ver aqueles caras. Porque terminou isso em Londres, vai ser colocado no ar acho que em março. Aí tem essa nos EUA agora. Aí parece que começa esse inferno todo de novo, sabe? E… Tem a Ópera Hemingway, que é interessante.

JOELSON GUSSON – Onde?

GERALD THOMAS – Estréia em Salzburg, no Festival de Salzburg, em agosto do ano que vem. Porque a vida do John, que é meu grande amigo, John Hemingway é… assim… o mínimo que você pode dizer é que ela é interessantíssima. Porque ele é neto do Ernest Hemingway e filho do Gregory, que virou mulher quando ele tinha vinte anos. Então o filho do maior machão americano.

JOELSON GUSSON – Que matava os…

GERALD THOMAS – Ia nas touradas.

JOELSON GUSSON – Ele não fazia safáris na África? Ia matar o…  aquele bicho com o negócio assim… Como é o nome?

FELIPE VIDAL – Rinoceronte.

JOELSON GUSSON – Isso, isso, é. É…

GERALD THOMAS – Pode ser. Pode ser. Mas enfim. Ele era adepto a armas. Adorava armas. Morava em cuba. Não gostava dos EUA. Reportava da Guerra Civil Espanhola. Ele reportava da Guerra Civil Espanhola a três quilômetros do George Orwel, que também reportava da Guerra Civil Espanhola. Olha que incrível: um inglês e um americano, o maior escritor inglês da época e o maior escritor americano da época a três quilômetros de distância. Tudo isso tá na Ópera.

JOELSON GUSSON – E ele teve um filho que virou mulher?

GERALD THOMAS – O Gregory, depois de ter três filhos, se transformou, cortou o pau fora, colocou seios e virou mulher. E o John viu isso, se mandou pra Itália, que é onde o Ernest também morou, Milão. O Ernest Hemingway tinha sido criado nos primeiros cinco anos como mulher. A bisavó do John criou o Ernest Hemingway como Mary. Chamava de Mary, vestia de mulher.

JOELSON GUSSON – O que é isso?!

GERALD THOMAS – Isso é tão normal, né. Existe isso. Criou o Ernest como Mary. Chamava de Mary, vestia de mulher e tal. Daí talvez essa vontade de virar esse homem tolo, né. Esse cara que ia a touradas, que adorava ver animais sendo mortos. E as touradas, uma coisa tão nojenta que… Reprimia a família inteira. Era rude, né? Casou não sei quantas vezes e espancava as mulheres. Mas, ele era muito generoso com homossexuais. Tipo: ele sustentava a Gertrude Stein, em Paris. Ele tinha uma relação de generosidade com gays. Ele dava dinheiro pra uma comunidade gay em Paris. Mas ninguém sabia. Isso era o Ernest Hemingway. Mas ninguém sabia. Mas a obra de Gertrude Stein não existiria se não fosse o Ernest Hemingway. Ele bancou essa obra inteira. E ele deu um tiro na boca quando descobriu que o filho virou mulher. O pai do John. Quando o Greg foi pego na rua em Miami porque teve um surto psicótico, um dia que ele se olhou no espelho e viu o que ele tinha virado, ele saiu correndo nu pelas ruas de Miami. Foi preso, fotografado com aquele nu de lado. Saiu na capa de todos os jornais de Miami, Miami Harold, como O filho de Ernest Hemingway: Mulher? Homem? Mulher? What is this? Capa de tudo quanto é lugar. O Ernest Hemingway voltou pros EUA, foi pra Idaho e deu um tiro na boca. E foi assim que aconteceu a coisa. E o John tenta viver uma vida normal. Escreveu um livro chamado Strange Tribe, que eu tô montando em Salzburg. Isso é uma coisa que é muito difícil de musicar, de libretar. Enfim, não tem muita gente interessada nesse tipo de tragédia contemporânea. Muito difícil de colocar no palco isso. Porque não tem muito cantor, lírico, tenor, que fique disposto a ficar seminu no palco, com o pau cortado, com seio. Qual é o tenor que?… Porque tem que ser literal. Isso aí não é figurativo. Não é botar uma roupitcha. Tem que ser magro, tem que ser relativamente bonito, e tem que aparecer a cena.Tem que ter essa cena. Se não tiver essa cena, acabou a ópera. Não é metafórico, pra botar em televisores… Não. Tem que ter mesmo. Então o casting tá sendo muito difícil, desse negócio. Esse é um projeto que já dura tempos, tempos.

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores