Niilismo cômico

Crítica da peça O doido e a morte, parte da programação do FESTLIP

20 de junho de 2008 Críticas

A trama da peça O Doido e a Morte, texto de Raul Brandão encenado pelo Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo, de Cabo Verde, parece fácil de ser descrita: um doido entra no gabinete do governador com uma bomba. O modo como os personagens lidam com essa situação revela uma sátira cheia de espirituosidade e dotada de um estilo bem humorado de ver a vida através da morte.

Aos poucos, três elementos se revelam e se mostram relacionados sob duas forças, dois movimentos distintos. O primeiro elemento é composto por dois artifícios: uma grande tela branca ao fundo do cenário, que assume cores marcantes com a luz e que vai acompanhando as mudanças de tons do espetáculo; junto com efeitos sonoros que dão máxima expressão a pequenos detalhes. Essa sonoplastia ressalta especialmente os movimentos mímicos. A tela não é bem um pano de fundo: os poucos objetos que compõem o cenário são transparentes ou vazados, de forma a sempre incorporar a cor que irradia de trás e que se torna dominante na cena. Essa cor refletida ajuda a compor o fundo da história, como se retratasse o que está por trás de tudo o que se passa, além de exercer certa influência no momento da cena. Junto com a história não contada da vida de cada personagem, ela vai compor um elemento que se prende a marcas do passado, e é esse plano que contextualiza subjetivamente toda a história.

O segundo elemento são os personagens. Não há nenhuma relação social entre os dois personagens principais da peça, o Governador e o doido Sr. Milhões, mas eles são figuras acopladas, chegam a se declarar almas irmãs, fato que é importante para entender a conexão entre eles. Essa irmandade está na similaridade entre seres opostos. A ligação existe por que esses personagens sugerem apenas intensidades diferentes de uma mesma coisa: são personalidades que fogem da representação e do comum. Um quer ser um gênio e o outro quer ser um doido. O papel de ambos parece constantemente se inverter: o doido racionaliza sua descoberta filosófica e o esperto se desespera e endoidece de medo.

O terceiro elemento é o lugar da ação. O espaço da cena se resume ao gabinete do Governador, os personagens estão presos lá dentro, circunscritos a uma realidade momentânea e fatídica. Porém, este gabinete guarda toda a vida dos personagens, é nele que o Governador passa o seu dia, lendo, jogando golfe e escrevendo suas peças de teatro.

A bomba, guardada numa caixa, se mantém intacta, mas detona uma tensão entre os três elementos citados. Ela é uma força que vem de fora e atinge os personagens, forçando-os a reagir. Com a morte como única saída, todos os três elementos da peça ganham intensidade. A relação entre eles, forçada pela presença da bomba, gera basicamente dois movimentos. Primeiramente, um movimento centrípeto, no qual a sua vida e o conforto do seu gabinete parecem se desmoronar e ruir. Por um momento se descobre a futilidade e os desperdícios vividos – um peso que esmaga os personagens. O outro movimento, centrífugo, surge de dentro deles, do cárcere pessoal, e impele para a fuga. Qualquer saída é válida, cada um a seu modo se contorce para alcançar a sua. A porta do gabinete não existe no cenário e é sempre atravessada com gestos mímicos de abrir e fechar, por isso parece não ser uma opção real de fuga. O governador, por fim, trai todos os seus princípios morais para sair dali, chega a trair a si mesmo, entregando-se para seu único confessor possível, o doido, como grande mentiroso; enquanto o intransigente Sr. Milhões só vê uma forma de completar o ciclo niilista: explodir-se e desintegrar-se para que sua poeira seja dissipada pelo cosmos.

O destino dos personagens já parece estar indicado desde o início pelo uso de máscaras: elas apontam para o desfigurado, para aquilo que não pode mais expressar sentidos pelo canal da comunicação visual. A impressão que a peça nos traz aos poucos vai sendo sentida, não de forma cognitiva, mas pela intensidade sensorial e de tensão que ela nos causa. Alguns recursos cômicos explorados pelo diretor João Branco – como os movimentos em câmera lenta ou acelerada, ou o momento em que o Governador não compreende os devaneios filosóficos do Sr. Milhões e este rebobina suas falas e ações para repeti-las – compõem uma série de movimentos anômalos que desloca a narrativa para uma situação imaginária, que não precisa obedecer ao real, e pode assim enfatizar ou mostrar novamente o que não foi visto. O Sr. Milhões nos dá essa dica na fala: “Os livros, as peças, a arte, enfim, só valem pelo que sugerem. O que está lá em regra não presta para nada; o que cada um de nós constrói sobre a linha, a cor e o som é que é verdadeiramente superior.” Ele parece nos dizer que o invisível, sugerido nas relações de forças da peça, traz à tona não um processo reflexivo, mas criativo. Essa é uma outra resposta possível para o niilismo que se coloca na peça: diante do vazio existencial, é possível preenchê-lo, é possível criar, é possível construir a diferença a partir do desfigurado, sem fugir da infinitude do tempo, mas indo em busca do tempo perdido.

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