Memória como tradição

Crítica da peça Filhas de Nora, parte da programação do FESTLIP

20 de junho de 2008 Críticas

O FESTLIP trouxe o carismático Grupo Mutumbela Gogo de Maputo para encenar As Filhas de Nora. Nora é a mesma da Casa de bonecas, e esta encenação moçambicana propõe uma continuação à história de Ibsen, respondendo o que teria acontecido com as três filhas de Nora após o sumiço da mãe. Porém, as filhas desta peça também são filhas da África e transportam o drama realista da problematização social que Ibsen enxergava na Noruega para uma realidade contemporânea das doenças sociais sofridas pelas mulheres de Maputo. Foi incrível identificar tamanha semelhança e continuidade nos problemas com  um século de diferença.

A dramaturgia e a encenação de Henning Mankell optou por sediar o drama em um cemitério, em frente à lápide de Nora. Tudo se passa ali. Toda a vida pregressa e as brincadeiras das meninas, que já estão crescidas. Mesmo que elas tenham se tornado mulheres, parece que seguem os passos de Nora: as três, com suas desculpas, sentem-se aprisionadas em suas relações de afeto. O clima de luto, o respeito à falecida e o apego às memórias indicam um presente indissociavelmente associado ao passado, da mesma forma como Nora estava presa ao seu falecido pai. As personagens moçambicanas representam, com esse paralelo, o conflito interno de uma sociedade com suas tradições próprias.

As filhas da Nora fazem questão de afirmar sua independência com relação aos homens e sua libertação do fastidioso legado subserviente que a mãe sofrera, mas vão descobrindo que a realidade em que vivem, subjugadas aos costumes locais, não forja exatamente essa liberdade. Das três irmãs, a mais rica se orgulha de ter se livrado da pobreza trabalhando com prestação de serviços para homens estrangeiros; a mais nova acabara de deitar fora o marido depois de descobrir que ele tinha outra mulher e filhos; e a mais velha trabalha para o marido em sua machamba (agricultura de subsistência local). Ana Maria Laforte, relacionando Lenclud com Balandier aponta em seu artigo Mulher, poder e tradição em Moçambique:

“O reavivar das expressões culturais num contexto em que a tradição se havia ajustado a novas realidades resulta num processo de agravamento da posição subalterna da mulher, pois certos aspectos desta são sujeitos a uma filtragem e decorrem das habilidades e capacidades de manipulação dos que a transmitem. A utilidade particular de uma tradição é possibilitar e oferecer a todos que a enunciam e a reproduzem no quotidiano os meios de afirmar as suas diferenças e de assegurar a sua autoridade e poder.” (LENCLUD 1987: 118).

É neste contexto que se pode entender que, em nome da tradição, se mantenham ainda, por exemplo, em bairros da periferia da cidade de Maputo, rígidos padrões de autoridade e dominação masculina na definição das estratégias de casamento, no controle da sexualidade e capacidade reprodutiva feminina e nas práticas religiosas tradicionais. (…) a continuidade em relação à tradição pretende assegurar o poder, a autoridade masculina e a ideologia patriarcal dominante. “Verifica-se que a tradição impõe uma escolha resultante de um código de significados, de valores que regem as condutas individuais e colectivas transmitidas de geração em geração. A tradição é uma herança que define e transmite uma ordem apagando a acção transformadora do tempo, retendo apenas os momentos cruciais pelos quais os que a transmitem legitimam o seu poder e a sua influência” (BALANDIER, 1988: 36).

Nas repetidas cenas musicais, as filhas de Nora lembram o passado do grupo que formavam – The Beach Girls – e a ingênua liberdade que as letras do Elvis representavam para elas. Lembrando dessas músicas elas parecem descobrir um caminho próprio para a liberdade, seguindo apenas o conselho da caçula: “não podes culpar quem esteja morto, nem quem esteja vivo, tu é responsável pelo que te acontece na vida.”

Referências bibliográficas:

BALANDIER, George . Le détour: pouvoir e modernité. Paris: Fayard, 1988.

LENCLUD, George .La tradition n’est plus ce qu’elle était… Sur les notions de tradition et de société traditionnelle en ethnologie. In: Terrain nº 9, p. 110-123, 1987.

LOFORTE, Ana Maria. Mulher, poder e tradição em Moçambique. In: Outras Vozes nº 5, novembro de 2003.

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