Oralidade e fragilidade estética

Crítica da peça Atiraram o velho Katy-Ngotè para sua última morada, do FESTLIP

20 de junho de 2008 Críticas

O grupo Etu-Lene, de Angola, participou do FESTLIP, com o espetáculo Atiraram o velho Katy-Ngotè para sua última morada. O cenário do espetáculo consiste em um pano branco estendido ao fundo da sala Multiuso (do Sesc Rio) e funciona como uma coxia de onde os atores entram e saem de cena. A encenação frontal parece estruturada conforme os antigos programas de comédia televisivos, cujos atores, sempre tendo em vista essa perspectivação, desfilavam seus personagens caricatos, se dirigiam diretamente à platéia, sempre mediados por uma figura mais sensata, inteligente, que estava lá geralmente lendo o seu jornal. Esse tipo de figura funcionava como um intermediador que sinalizava, com certa consciência e discernimento, a ambigüidade dos personagens e favorecia a reflexão da assistência. Neste espetáculo não existe a tal figura sensata. Todos os quatro personagens são, de certo modo, tipificados: o filho em idade de casar, o pai, velho e intransigente, a amada do rapaz, a noiva escolhida e o amante dela. A inexistência de contrapontos favorece certos tons moralizantes e dificulta o surgimento de outros sentidos, que não os do senso comum.

O enredo se desenvolve através de uma sucessão causal de acontecimentos. O pai é um velho interesseiro que, baseado no direito de decidir sobre a vida conjugal do filho, faz de tudo para casá-lo com a noiva e não com a moça que o rapaz escolheu. Porém, a noiva engana todo mundo, está grávida de outro homem que, por sua vez, é mulherengo e pobretão. A amada do rapaz trabalha em uma instituição como parteira e atende também a terceira idade. Quando o pai descobre a artimanha da nora e a revela ao filho, este o expulsa de casa. O desfecho acontece na dita instituição onde todos acabam se encontrando. Não faltam quiprocós e golpes de teatro, como ouvir conversas reveladoras ao telefone ou atrás do “pano”.

A questão temática que estrutura a história parece ser, por assim dizer, o confronto da tradição com os modos de ser e de se comportar dos mais jovens. A opção por personagens-tipos denuncia o enredamento de uma sociedade tensionada por certos hábitos, que se originam tanto nos impedimentos que a tradição impõe quanto na necessidade de confronto com uma espécie de degradação moral forjada durante os processos de transformações culturais. Nesse contexto, a única peça cenográfica, o pano branco, ganha força simbólica de anteparo que alude a sentimentos em conflito, que são, muitas vezes, recalcados ou escamoteados. Assim, por exemplo, o amor do pai pelo filho e o desejo de vê-lo bem casado toma a forma simplificada de interesse material. Não deixa de ser uma crítica aos antigos procedimentos, bem como uma alusão às leituras incompletas do que foi, ao longo dos anos, vivenciado pelas formas tradicionais.

O que parece problemático no espetáculo é que a encenação está articulada por uma forma por demais comprometida em provocar o riso da platéia. O registro interpretativo dos atores é exagerado e calcado em gestuais explicativos, que, por exemplo, demonstram seu sofrimento, sua felicidade ou ilustram o que estão pensando. Parecem estar a serviço de uma comicidade sem atravessamentos, ou seja, direta e escrachada, sem nenhuma tensão que possa remeter a um tratamento estético.

A meu ver, fica difícil discernir se a manifestação catártica da recepção é provocada por um distanciamento que permite um olhar mais crítico dos fatos, ou se promove uma identificação que resulta em puro entretenimento. A reação de riso do público é igual, por exemplo, tanto a cada manifestação de mau caratismo dos personagens como no momento trágico final, ou seja, ela encara acontecimentos de esferas e afetos distintos da mesma forma. Esse tipo de manifestação horizontal poderia ser o resultado de alguma espécie de busca do humano no inumano, pois, pela catarse física do riso, a platéia celebraria o pertencimento a um conjunto de pessoas que se diferenciam daquelas que estão em cena. Fica difícil, no caso deste espetáculo, resolver pela hipótese de distanciamento e reflexão. Em uma obra, precisa existir uma articulação formal que possa dar a ver outras formas de pensar os elementos culturais. Porém, no espetáculo Atiraram o velho Katy-Ngotè para sua última morada o que parece existir é uma estrutura pensada para provocar unicamente o riso como resposta, que não leva em conta as ambigüidades humanas e pensa o homem como resultado de uma dicotomia moralizante.

Talvez a moral da história do espetáculo se volte justamente contra as questões do olhar etnocêntrico da crítica, como diz o texto de Marcio Freitas sobre o espetáculo Mulheres com H maiúsculo, no sentido da impossibilidade de ver outra cultura a partir de uma mesma estrutura de pensamento. O que parece ser possível dizer é que os dois espetáculos de Angola que participaram do FESTLIP – Atiraram o velho Katy-Ngotè para sua última morada e Côncavo e convexo – sinalizam que existe no país uma força voltada para a reconstrução do que restou das formas de transmissão oral, mas que ainda não encontrou uma forma mais própria que contenha a tensão dos tempos.

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