Herança da palavra

Crítica da peça Côncavo e convexo, parte da programaçãodo FESTLIP

20 de junho de 2008 Críticas

Em cena, estão dois atores que realizam uma briga de casal. No inicio do espetáculo, os atores estão em pé e olham para direções distintas. Ela (Naed Branco) tem a cabeça enfaixada, um curativo no rosto e a roupa sugerindo peças desgastadas. Ele (Hélio Taveira), camisa branca, calça preta e porte atlético. Um pano branco, no qual algumas linhas côncavas e convexas estão pintadas nas cores vermelho e verde, reveste o fundo e as laterais do palco. Alguns baldes pendurados do teto, algumas bacias emborcadas no chão (posições côncavas e convexas), quatro mesas de madeira e muitas velas sobre latas de cerveja. A iluminação é fraca, está quase tão somente a cargo das velas. O diálogo do casal revela que simbolizam o país e seu povo. Angola agoniza pelos anos de colonização e pela guerra civil. O povo sofre e tenta compreender sua situação, concluindo que precisa agregar na consciência suas derrotas e suas conquistas. Ao final, o casal se reconcilia na esperança de dias melhores a partir da ação conjunta. A ação do ator que apaga todas as velas e desfaz o cenário nos remete à uma idéia de reconstrução a partir dos despojos dos vencidos. Indica ainda que existe uma esperança na agricultura, no trabalho com as riquezas naturais.

Uma questão que dificulta a apreensão mais livre de elementos tão fechados é a atuação dos atores, em um registro eminentemente dramático. A atriz grita e chora todo o tempo, sublinha nas ações o que está dizendo, por exemplo, ao se ajoelhar quando se refere aos filhos cujas pernas foram amputadas pelas minas espalhadas pelo país. Uma música dramática permeia todo o espetáculo e só é interrompida por sons em off que figuram elementos próprios dos eventos de guerra, como sirenes, helicópteros e metralhadoras. Os gestos de sofrimento pontuam a interpretação dos atores no cenário que perfaz, com certa inocência, uma simbologia da escassez de recursos das casas angolanas.

O texto de Flávio Ferrão transforma em diálogos índices econômicos e sociais como, por exemplo, os movimentos migratórios, a mortalidade infantil e os prognósticos populacionais. A questão é que a dramaturgia estende esta fala sem nenhuma surpresa: resume-se em uma forma dialógica que não engendra nenhuma formalização estética. É possível dizer que existe, muito fragilmente, um desejo de transpor uma geografia social nos corpos dos atores. E acredito que isto seja uma potencialidade da dramaturgia, pois engendra a possibilidade de uma conexão estética entre o que se diz e um certo estado desgastado do corpo. Isto aparece, por exemplo, muito sutilmente, no momento em que a atriz diz que seu corpo está sem energia elétrica. Talvez, se sua fala não estivesse tão impregnada de ações dramáticas, a nossa percepção material do corpo desgastado pudesse promover sentidos mais abertos e imaginativos.

O grupo Henrique-Artes existe há dez anos e foi originado a partir do teatro realizado por seus participantes na época de escola. Significativo da relação entre certa intenção pedagógica e o teatro é o fato do nome da escola ter sido mantido como nome do grupo. A encenação de Côncavo e convexo nos possibilita compreender que a linguagem teatral pode, ainda nos tempos atuais, se configurar como um instrumento de função social. Segundo os artistas do grupo, a encenação opera no público de seu país uma identificação referente à sua própria situação social. Muitas províncias que estão à margem dos processos de discussão política e econômica são apresentadas em cena, compondo, igualmente, elementos da dramaturgia.

A meu ver, a encenação de Côncavo e convexo pode ser apreendida como um grito a respeito de uma situação social pungente. O espetáculo me fez lembrar dos tribunais que foram estabelecidos na África do Sul após a queda do regime do apartheid. Eram chamados de comissões da “Verdade e Reconciliação”, para investigar abusos contra os direitos humanos, que colocavam frente a frente agressor e vítima em um fórum onde eram narrados os acontecimentos brutais que envolveram ambos. Operava-se certa catarse purgativa: vencidos e vencedores passavam, pela palavra, por uma experiência de sofrimento comum, que promovia a anistia das acusações de assassinato, de acordo com a tradição do conceito africano Ubuntu, focado nas relações interpessoais. Acredito que, de algum modo, o grupo Henrique-Artes mantenha uma “conversa” com essa tradição de redenção pela palavra.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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