Irresponsabilidades aos olhos do voyeur

Crítica de El Autor Intelectual e de Los Autores Materiales, da companhia La Maldita Vanidad

31 de julho de 2012 Críticas
Foto: Daniel Protzner.

Ser espectador diante de um espetáculo da companhia colombiana La Maldita Vanidad é assumir a posição de voyeur. A encenação hiper-realista oferece-se como um pacto de ilusão, pelo qual se falseia o testemunho de um acontecimento da vida alheia. Eis o paradoxo no qual o grupo envolve o público: quanto mais persegue o real nos menores detalhes de ações, falas e espaços, mais se torna capaz de fazê-lo suspender a descrença, ou seja, de iludi-lo. O efeito de ilusão, contudo, depende da radicalidade no uso dessa linguagem e da complexidade da situação em que é empregada, e está sempre sob o risco de se desfazer. No limite do hiper-realismo, qualquer fissura pode desestabilizar o pacto.

Em Belo Horizonte, onde participou do 11º Festival de Teatro Palco e Rua – FIT-BH, o grupo mostrou seus dois primeiros trabalhos, El Autor Intelectual (com o qual estreou em 2009) e Los Autores Materiales (2010), que integram a trilogia Sobre Algunos Asuntos de Família. Jorge Hugo Marin escreveu e dirige os espetáculos, igualmente deflagrados por questões éticas que exigiriam tomadas de responsabilidades individuais e coletivas. Por não se responsabilizarem, no entanto, os personagens se tornam – como evidenciam os títulos – autores materiais ou intelectuais de atos de violência, ainda que indeliberadamente.

Cada espetáculo ocupa um distinto cômodo de um casarão (a Casa Mac), apropriando-se de um espaço residencial mobiliado para conseguir uma aproximação da realidade cotidiana e imediata em que o corpo poético dos atores habite a instância do real. O jogo proposto é com o fato de o teatro ser ao mesmo tempo acontecimento real e fictício – sem com isso pretender um efeito de desdelimitação dessas fronteiras, mas reafirmar o ato teatral como espelhamento e imitação da realidade da qual se vê um recorte.

Los Autores Materiales parte do momento em que três colegas de apartamento acabaram de matar o locatário a quem deviam dinheiro – e não sabem o que fazer com o corpo. A ação se desdobra em conflitos gerados por sentimentos de culpa, medo e raiva, além de tentativas de fuga e coação. A linha comportamental dos personagens segue um percurso previsível e fatalista em que cada um reage de acordo com as expectativas, sem contradições, até que percam por completo o controle. Não é o assassinato que abre margem para uma discussão ética num primeiro momento: está dado sem questionamento. A reflexão crítica se volta ao contexto da realidade socioeconômica latino-americana. Sobretudo, ao fato de aqueles serem homens sem perspectiva financeira, emocional ou intelectual, cuja vida se faz de uma sucessão de reações. Incapazes de premeditações e planejamentos por lhes faltar consciência política.

A construção hiper-realista, trabalhada em tom de melodrama, se sustenta em ações cotidianas realizadas em tempo real, como limpar a pia ou cozinhar uma omelete, e em diálogos de ânimos exaltados trocados como rajadas em alta velocidade e acirrados pela ameaça trazida pela chegada de outros dois personagens. O virtuosismo das atuações é essencial para o efeito de ilusão.

Uma cozinha externa do casarão é usada como espaço cênico em todas as suas potencialidades reais de funcionamento – a legenda em português é projetada em uma televisão posta sobre o armário e um relógio marca o tempo da encenação. O que não pode ser encenado com tal verossimilhança em frente ao espectador fica sugerido como se fosse realizado no extracampo (para emprestar uma expressão do cinema, arte onde mais se desenvolveu o hiper-realismo), ou seja, fora do enquadramento que o espaço cênico permite ao público ver.

Num espetáculo cuja radicalidade reside em se desfazer ao máximo de convenções teatrais de espaço e ação em favor da apropriação do real para instaurar uma ilusão, contudo, as convenções restantes, das quais não consegue se desprender, tornam-se um risco iminente de quebra dessa ilusão. É o caso de um ator adulto representar um garoto: uma contradição à qual a encenação tem dificuldade para absorver e que gera um ruído não-planejado. Outro ruído vem da configuração do espaço: embora tome em cena a cozinha tal como ela é, o grupo opera uma licença de verossimilhança ao forjar uma quarta parede inexistente entre os atores e o público. No momento em que os personagens lamentam a impossibilidade de escape por não haver saída, essa convenção é evidenciada e outra vez coloca em xeque a ilusão de realidade. A linguagem hiper-realista atinge seus limites e revela seu paradoxo.

Foto: Daniel Protzner.

Uma solução que não gera semelhante ruído foi encontrada em El Autor Intelectual, ao abdicar da convenção da quarta parede em lugar de uma divisória concreta. O cenário é a sala de estar mobiliada de uma casa, e a condição de voyeur do público é explicitada: ele está sentado do lado de fora e vê as ações através da vidraça de uma grande janela – a posição clássica do voyeur. A linguagem hiper-realista alcança outro patamar de radicalidade.

Também nesse espetáculo se debate uma questão ética que expõe a falta de responsabilidades individuais, afetadas pela falta de responsabilidades coletivas. Contudo, a situação que aqui se apresenta oferece um panorama mais amplo de pontos de vista e contradições. Trata-se de um embate entre três irmãos (uma mulher e dois homens, com suas respectivas esposas) para decidirem quem cuidará da mãe idosa. O drama familiar íntimo revela forças sociais e culturais implicadas: a carência de perspectiva para a terceira idade, que se torna dependente; os valores consumistas infiltrados nas relações afetivas; a organização familiar patriarcal segundo a qual a sogra fica aos cuidados da nora, com quem não tem parentesco.

Outra vez recorrendo aos diálogos conflituosos e melodramáticos, o grupo expõe em cena uma situação social complexa de interesses desarmônicos e possibilidades restritas, que se torna mais pungente pela crueldade do desenlace. Protegida de ruídos externos, sem fissuras, a ilusão se estabelece com possibilidade de identificação, e o público, voyeur, se vê atravessado por perspectivas contraditórias inconciliáveis.

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores