Olhar para o estranho familiar

Crítica da peça Mulheres com H maiúsculo, parte da programação do FESTLIP

20 de junho de 2008 Críticas

O FESTLIP trouxe para o Rio de Janeiro espetáculos de cinco países nos quais a língua portuguesa é a mais difundida, apesar de não ser a única. Sob o pretexto de aproximar manifestações teatrais que falam o mesmo idioma, o festival tem como mote cinco características, que o material impresso divulga como estímulos para a curadoria – entre elas a igualdade e a diversidade. O encontro dessas cinco culturas bastante distintas no Brasil – três africanas, uma européia e uma local – é absolutamente rico e complexo, especialmente considerando a iniciativa do festival de manter todos os grupos sitiados pelas quase duas semanas que dura o festival, assistindo os espetáculos uns dos outros e participando juntos de oficinas ministradas por diretores brasileiros. É questionável, todavia, que se espere alcançar algum tipo de igualdade ou unidade – que não a lingüística – a partir desse encontro.

O espetáculo Mulheres com H maiúsculo, do grupo Gungu, oriundo de Moçambique, parece dar a ver a tensão entre a igualdade e diferença, e colocar em questão nosso olhar inevitavelmente etnocêntrico.

O cenário da peça, já à mostra antes do início do espetáculo, representa uma sala de visitas de uma casa como qualquer outra. Enquanto o público entra, ouve-se a rádio Globo FM, apoiadora do festival, tocando sucessos da música brasileira, como Lulu Santos, Legião Urbana e Marisa Monte; a música parece mesmo preparar a recepção de um público brasileiro para algo de familiar. E aquilo que a peça apresenta logo de início nos é extremamente próximo – uma típica cena de uma festa em família, falada em um português bastante claro, por um grupo de atores que a princípio poderiam ser nossos conterrâneos. Os personagens são três irmãs, cada uma com seu respectivo marido ou namorado, e a mãe, cujo marido já faleceu. Uma das irmãs acaba de se formar na universidade, e, se num primeiro momento todos celebram tal ocasião em harmonia, logo em seguida vão aparecer os conflitos específicos entre os personagens. Uma das irmãs exige do marido que eles façam sexo mais freqüentemente, demanda feita em frente aos seus familiares, enquanto o marido, em sua defesa, discursa sobre a importância de seu trabalho; a outra irmã não quer se casar pois o namorado não admite que ela trabalhe; o marido da recém-formada é um grosseirão sem estudos, que joga na cara de todos o fato de que ele paga por tudo porque é rico; e a intriga é completada pela visita, à matriarca, de um irmão de seu falecido marido, que aparece sugerindo que a tradição de um cunhado acolher a viúva ainda é uma tradição de valor.

De fato, a comédia se calca em quatro típicos problemas para a mulher diante de uma sociedade machista: a repressão sexual; a desvalorização de seu trabalho; o menosprezo pelo seu poder intelectual; e os laços indissociáveis com a tradição. Para operar uma espécie de desmonte dessas estruturas de opressão feminina, a peça resolve cada uma dessas situações de modo a apresentar, exemplarmente, novos papéis para a mulher moderna: a mulher que ativa sua sensualidade para revigorar o casamento; outra que salva o marido de uma enrascada financeira com seu próprio dinheiro; a mulher educada que estimula o marido a estudar; e a última que engendra maneiras de escapar de uma tradição que não parece fazer mais sentido.

No esquema da peça, enquanto as mulheres são personagens mais ou menos sérias, os homens são todos patetas: há o que repete um mesmo bordão à exaustão, o engraçado cheio de tiques, e aquele que é gago. É especialmente na atuação dos patetas que a peça investe seu potencial de alcançar a risada do público: os tipos são construídos explorando toda a graça que pode ser extraída das performances individuais. A estrutura do espetáculo se assemelha muito ao que usualmente conhecemos como comédia de costumes – as situações se desenrolam a partir da solução dos conflitos centrais, com algumas inversões de situações e sempre um investimento na graça e no exagero do tipo masculino. Se pensarmos em relação à nossa própria tradição cômica, a dramaturgia pode parecer pouco ágil, pois prolonga demais as soluções já previsíveis, sem desenvolver situações paralelas interessantes, e explorando em demasiado a graça limitada dos tipos cômicos. Mas a proximidade pode esconder o quanto aquela manifestação tem uma intencionalidade política clara e central. Nosso olhar não dá conta de mensurar o objeto junto ao público para o qual ele originalmente se direciona: talvez esse achincalhe da figura do homem, que aqui é vencido pala esperteza da figura da mulher, efetivamente dê conta de promover um choque receptivo numa cultura cuja rigidez em respeito a essas questões seja extrema. Para nosso olhar, o didatismo do esquema conhecido acaba obscurecendo sua possibilidade de gerar reflexão, sua potência de choque.

Percebo um momento de exceção a esta minha generalização: a cena em que o tio, sem artimanha nenhuma, declara para os personagens masculinos que ele é agora o homem da casa, e que suas ordens devem ser obedecidas; os três tentam argumentar seriamente, mas a palavra impositiva do discurso tradicional os paralisa. Embora, logo em seguida, a força deste personagem se desmonte em uma solução por demais simples, para mim o poder daquela tradição, que marca sua presença na cena sem a necessidade de força, permanece incômodo e difícil de aceitar.

A simplicidade do argumento não impede a peça de ser fruída em sua comicidade, e a platéia parece acompanhar a trama e se divertir bastante. De fato, a familiaridade que temos, tanto com as fórmulas cômicas quanto com essa intencionalidade política didática, talvez nos leve a operar uma filtragem receptiva bem específica deste espetáculo – simplificação que julgo inevitável a nosso olhar etnocêntrico. Questiono, contudo, um procedimento específico do festival, que parece querer nos indicar uma nova síntese, almejar certa igualdade de valores: o bilhetinho do voto popular solicita-nos atribuir uma nota (5, 7 ou 10) a cada espetáculo, para que seja selecionado o melhor espetáculo da mostra. Será que a nota, ou a síntese, ou saber qual é o melhor espetáculo, seria realmente o que esperamos extrair dessa exposição da diversidade? Será que deveria ser esperado que déssemos uma nota para cada uma dessas culturas, equiparando-as num veredicto comum? Melhor seria, talvez, poder olhar para essa diversidade, não sem um juízo crítico, mas admitindo que esse é um olhar para um estranho que não pode ser familiarizado por completo, e que nossas características em comum não conseguem nos mostrar a distância que nos separa.

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