Criação de um tempo anacrônico

Crítica da peça Ferro em brasa, que integra a programação do FESTLIP

22 de julho de 2010 Críticas
Foto: divulgação.

A terceira edição do FESTLIP trouxe ao Teatro Nelson Rodrigues o espetáculo Ferro em brasa encenado pela companhia paulista Os Fofos Encenam que foi formada em 1992 a partir das atividades curriculares no curso de Artes Cênicas da Unicamp. O fundamento da pesquisa estava enraizado, desde o início, nas manifestações de arte popular. Em 2003 o grupo passa a investigar a estética do circo-teatro encenando A mulher do trem; Assombrações do Recife Velho, em 2005, e Ferro em brasa, em 2006. A encenação em cartaz neste Festlip, portanto, resulta de um tempo de experiência que o teatro de repertório possibilita. No caso de Ferro em brasa, essa experiência constituiu uma materialidade apurada construída pela pesquisa dramatúrgica, pela pesquisa visual, pelo trabalho vocal e pela criação de um campo de tensionamento que raramente temos a oportunidade de vivenciar na maior parte dos espetáculos, por assim dizer, populares que transitam no panorama teatral carioca. Minha análise não tem a pretensão de esgotar as questões que surgem a partir da noção de arte popular, muito menos da noção de circo-teatro. Meu olhar está longe de ser o do especialista, mas procurou pelas possíveis contradições da encenação que possam nos fazer ter uma experiência contemporânea do gênero.

O texto do espetáculo é de Antonio Sampaio, adaptado por Newton Moreno, e a encenação é dirigida por Fernando Neves. A história se passa em uma aldeia portuguesa, a respeito de um acontecimento familiar. O patriarca da família é um rústico ferreiro que comemora o noivado de sua filha com um jovem fidalgo que acaba por se apaixonar pela mãe da noiva. O casamento entre os dois jovens não acontece e o marido traído acaba por impetrar um final trágico para os apaixonados. Existem ainda outros componentes da família e amigos que executam as funções de comentadores e impulsionadores da ação. Por meio desses personagens surgem também as questões referentes à submissão e solidão das mulheres dentro de uma estrutura patriarcal e da ditadura que assolou Portugal. Esse modo de comentário social e político pode parecer um tanto ultrapassado, mas certamente aponta para um dos procedimentos onde foi possível ao drama se instaurar como esfera reflexiva dentro da linguagem do circo. Ressalta também o anacronismo como elemento de percepção da encenação.

Uma das tensões que fundamentaram o surgimento do circo-teatro foi a intenção de apresentar um repertório da arte dramática em um espaço já reconhecido e freqüentado por um público, ainda que familiarizado com uma outra linguagem. A materialidade da cena e os procedimentos da representação se acercaram dos elementos que já compunham uma experiência reconhecida pelos espectadores e, assim, dava lugar a um evento híbrido acrescido do elemento dramático. Neste sentido é possível pensar que a cena resultava de uma certa pressão exercida pelos elementos circenses e pelo que estes elementos remetiam ao imaginário de seus frequentadores.

A pesquisa da Cia Os Fofos Encenam, e que se dá a ver em Ferro em brasa, materializa com apuro essa contradição entre um abrigo psicológico de conflitos familiares e um lugar de fora constituído por outros interesses que dizem respeito mais tradicionalmente ao entretenimento. Essa contradição acaba por iluminar esses dois pólos para os espectadores. Aqui aparece uma característica do teatro que, por vezes, passa despercebida até da crítica. É o momento em que os espectadores entram no espaço teatral, se acomodam nas cadeiras e alguma coisa no palco já se dá a ver, indicando a função que irá começar. Começa a se criar o nicho de um evento estético do qual os espectadores passam a fazer parte.

Esse efeito começa com a visualização da caixa cenográfica – o abrigo – delimitada por um pano de boca pintado com uma paisagem urbana de uma praça do início do século passado. Do lado direito do palco está um piano e do lado esquerdo um ator, sentado em uma cadeira, que executa pequenos movimentos ainda não perceptíveis claramente aos espectadores. Em frente ao pano de boca está uma pequena ribalta delimitando o palco como um espaço de razão, porém, uma razão frágil, quase opaca, dada pela pequena dimensão da ribalta. Essa configuração afirma a tensão do drama no circo aparecendo em uma cena comprimida. A impressão se afirma por meio do interior do cenário constituído pelos panos pintados, figurando o interior das casas burguesas, o desdobramento do interior dos personagens, como no teatro burguês, que surge a partir do Renascimento. Pode-se dizer que a cena é uma espécie de quadro psicológico dos personagens em meio a outro vértice que privilegia a homogeneidade do humor popular. Essa noção de quadro dramático é explorada pela encenação pontuando o humor das situações familiares, trazendo uma comicidade congelada em posturas que nos remetem ao elemento cômico dentro da tragicidade.

Na experiência contemporânea, a impressão é de uma tensão com um fora de entretenimento do moto contínuo do ambiente urbano, abrindo assim uma instância temporal diferenciada. A temporalidade outra se dá já em desdobramento pela historicidade do conteúdo da trama dramática situado em uma aldeia portuguesa do século passado. Os figurinos com elementos típicos e em cores tênues acentuam o contraste temporal, assim como os gestos leves e precisos dos atores. Um exemplo disso surge já na primeira cena em que a mãe está fazendo uma massa e com uma leveza própria necessária à fatura do produto. Os atores se movimentam sem ruídos e apontam, assim, para uma fissura temporal, como se aquelas pessoas estivessem em outro tempo e espaço, muito diferente dos nossos espaços cotidianos. Esse gestual leve e, ao mesmo tempo, limpo é marca do trabalho dos atores, o que insiste na instância de contraste oferecida já em primeira mão pela cenografia. A meu ver, a leveza dos gestos e a precisão são fatores cruciais que levam os espectadores a acompanhar a fábula de um lugar diferente daquele que comumente acompanham os melodramas televisivos.

Neste sentido, o lugar diferenciado se dá a ver por meio do anacrônico que joga uma nova luz em certos clichês onde questões como o amor, a ética, o desejo e a família dentro do quadro social foram inseridas ao longo do tempo. Se o trágico aparece com alguma potência em Ferro em brasa, parece ser por meio da descontextualização temporal que o humor arrefece. Temos a experiência contemporânea de que os acontecimentos trágicos são comentados com humor e com a charge que é, por si, um comentário. O riso é detonador de uma consciência subliminar na própria linguagem dos clowns circenses. E é aqui que o espetáculo cria sua tragicidade, sem imposições, com uma verdade mais opaca e menos positiva.

Criando um problema para o que foi percebido até aqui como intenção do espetáculo, acredito que as intervenções do piano, sublimando certas ações, podem ser mais eficazes como elemento de reflexão do que alguns comentários da personagem do avô quando cumpre a função de corifeu, ou mesmo da personagem da prima em seu discurso final. Do mesmo modo, a encenação dividida em quatro quadros parece carecer ainda de um enxugamento dramatúrgico para possibilitar um estado latente de tensão nos espectadores. Por outro lado, a composição da personagem da tia mais velha com uma oportuna meia máscara oferece uma transição especial na última cena que parece formalizar todo o possível sentimento compassivo dos espectadores ao final. Nesta personagem e mesmo na personagem do avô o uso do português de Portugal soa como beleza, ressaltando um aspecto de anacronismo sem cair em um riso fácil. Do modo como eu percebo, uma interessante experiência da proposta do FESTLIP.

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