No trajeto entre uma idéia e sua concretização

Crítica da peça André, de Philippe Minyana, direção de Christiane Jatahy

20 de março de 2008 Críticas
Atriz: Marcela Moura. Foto: divulgação.

A montagem de André, que esteve em cartaz no Oi Futuro entre novembro de 2006 e fevereiro de 2007, pode ser pensada a partir de alguns pontos: a problemática da trajetória entre uma idéia e sua realização – que terá aqui maior atenção; o lugar da pesquisa de linguagem no circuito carioca; e o interesse de um público não-especializado por este tipo de trabalho. O programa da peça dá ao espectador uma idéia da concepção inicial do trabalho, das expectativas da atriz e idealizadora do projeto Marcela Moura, das intenções da diretora Christiane Jatahy, além de ilustrar um possível contexto teórico do qual o projeto se avizinha, através de citações de autores presentes no universo acadêmico como Michel Maffesoli, Beatrice Picon-Valin e Georges Didi-Huberman. Mesmo apresentando o projeto como parte de uma pesquisa de mestrado, o tom dos textos do programa causa a impressão de que a peça não se dirige apenas a um público especializado, mas antes a um público especialmente interessado.

O programa traz um texto sobre Philippe Minyana, o autor, que é apresentado por um denominador comum de suas várias peças. Isto cria uma expectativa de que o texto seja um exemplo destas características, a saber: “sentidos ambíguos e móveis, identidades pouco claras, fragmentação temporal do discurso e uma narrativização dramática.(…) O foco se desloca da fábula para a textura da escrita dramática.” A questão é que estes dados não são explorados tão profundamente nesta peça. A noção de fábula, por exemplo, está bastante presente: André conta a história do relacionamento entre Anne Laure e André, do momento em que ela se apaixona até o momento em que ele morre. Mesmo que não haja uma dramatização das ações e acontecimentos que compõem a fábula, o relato é bem claro, a fragmentação temporal do discurso, por exemplo, não chega a interferir na linearidade da fábula. A história não apenas tem início, meio e fim, mas é contada nesta ordem. Das características citadas acima, parece que apenas a narrativização está presente. Independentemente do que se possa fazer em termos de fragmentação, organização visual do espetáculo, reorganização espacial da sala de teatro, o tema – a história do encantamento de uma mulher por um homem, sua solidão, suas ansiedades diante da presença e da ausência dele, a lida com os mistérios da relação – traz a peça de volta para um lugar de familiaridade. Por estes fatores, o programa provoca expectativas que não são concretizadas de fato na montagem.

Outro dado apontado na proposta diz respeito ao trabalho da atriz: “Concebi a apresentação de André com fortes características de performance intermídia, fazendo uso de projeções de imagens e ocupando como atriz um lugar próximo ao performer que enquanto cria também manipula conceitos e pensa sua obra.” A proposta é, sem dúvida, um desafio. O teatro no Rio não tem oferecido muitas referências para que se tenha idéia destas “características de performance” – tanto para os artistas quanto para os espectadores. É raro encontrar trabalhos de teatro que estejam em diálogo com a performance e mais raro ainda encontrar performances propriamente ditas no cenário carioca. Talvez isto contribua para um possível desentendimento no que diz respeito a este conceito. Neste espetáculo, a atriz recorre a ações que talvez se assemelhem a uma idéia de performance, como mastigar flores, jogar café no cabelo, filmar-se e projetar esta imagem, fazer e oferecer café aos espectadores, como se assim propusesse um deslizamento entre as ações da atriz e as ações da personagem. No entanto, o corpo da atriz, sua atitude em cena, o jeito de dizer o texto, em suma, sua forma de fazer um personagem de uma peça, ensaiado do início ao fim, está enraizada num registro de atuação que se afasta do performático. Todas as ações parecem bem marcadas e memorizadas, de forma que o espetáculo acaba por se encaixar num fazer teatral mais convencional do que o sugerido.

Quanto à estética intermídia, é interessante encontrar tentativas de experimentação, mas é incomum ver resultados que provoquem um espessamento de significados e uma criação de ambigüidades. Usar projeção de imagens e recursos de sonorização diferenciados pode apenas gerar uma sobreposição de tecnologias, sem que estes recursos interfiram na poética da obra. A literalidade nas projeções (quando o texto fala das costas de André, o telão mostra as costas de André; quando fala do menino que André trouxe para casa, aparece a imagem de um menino) traz o foco mais para a fábula do que para a textura da escrita dramática. O personagem-título André só aparece no relato da personagem Anne Laure. Ele aparece apenas em projeção. A escolha de um ator conhecido – Eduardo Moscovis – para estas imagens causou um certo estranhamento. Se tivéssemos ali uma figura nova, um anônimo, talvez fosse mais viável construir um André na imaginação – a partir dos seus fragmentos. Mas a imagem de um ator conhecido nos tira de certa forma deste jogo criativo. Sua imagem preenche a referência, de modo que quando ela diz “André”, vem à mente a imagem pronta daquele ator. O mistério em torno deste personagem se dissolve e as projeções acabam por tapar algumas lacunas do texto.

De qualquer modo, o fato mesmo de assistir num teatro da cidade um espetáculo que faz parte de uma pesquisa acadêmica é praticamente uma surpresa. A montagem de André aponta para a necessidade de trazer para o teatro o que muitas vezes parece ser de interesse exclusivo da universidade. É possível questionar o quanto um experimento formal na trajetória pessoal de uma atriz pode causar interesse em um público não-especializado. Mas também é possível questionar o quanto um público (especializado ou não) pode estar interessado em espetáculos que apenas repetem procedimentos bem aceitos pelo senso comum, sem correr nenhum risco. E talvez seja mesmo possível questionar se esta idéia de público não-especializado é apenas uma forma pouco generosa de lidar com a subjetividade do espectador e uma desculpa preguiçosa para manter a pesquisa no espaço reservado da universidade.

Vol. I, nº 1, março de 2008

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