Anacronismos de uma história muito bem contada

Crítica da peça A mulher que escreveu a Bíblia, de Moacyr Scliar

15 de março de 2008 Críticas

Esta crítica fala sobre o espetáculo como foi apresentado na sua primeira temporada, realizada no Mezanino do Espaço SESC em dezembro de 2007. Atualmente, está em cartaz no Teatro dos Quatro.

A atriz Inês Vianna não é a feia que Moacyr Scliar escreveu em seu romance A mulher que escreveu a Bíblia, na verdade ela é até bonita. Assim como seu figurino excepcional, criado por Ruy Cortez é bonito, funcional e também feio para a bonita atriz. Já o cenário de Sérgio Marimba é bem feio – esse é feio mesmo – e iluminado fazendo nem bonito nem feio por Maneco Quinderé. Essa equipe bonita, nada feia e competentíssima, seguida ainda pela bela preparação corporal da igualmente bela Daniela Amorim e pela música original não adjetivada por mim de Marcelo Alonso Neves servem ao brilhantismo da atriz e à belíssima adaptação e direção, respectivamente, de Thereza Falcão e Guilherme Piva. O monólogo que se vê no palco/mezanino do Espaço SESC, em uma hora e pouco, é o relato de uma mulher que descobre, a partir de uma seção de regressão, não só ter sido uma das setecentas mulheres do Rei Salomão como ainda ter escrito a Bíblia há 3.000 anos. E a mola propulsora se dá no momento em que nossa protagonista se depara com sua fealdade.

É evidente que o que se vê é mais do que essa breve sinopse do espetáculo. O que se vê é um teatro de qualidade sendo realizado com procedimentos efetivamente teatrais: um bom intérprete, um bom texto, uma boa equipe. Alguns poderiam dizer que isso é muito pouco para uma ida ao teatro, perguntariam se existe alguma quebra substancial na narrativa ou ainda um “vir a ser” criando novas perspectivas estéticas ou/e de novos sentidos. Não, não há. Por outro lado, não me parece tão comum ir ao teatro e ver bom textos bem encenados e quando isso acontece é motivo sim de celebração. Seja um teatro com feições ditas “tradicionais”, “puristas” ou mais “experimentais”.

De todo modo, nos deparamos com uma narrativa de natureza dialógica e polifônica tal qual é o romance de Scliar. A voz da intérprete – e que voz – dá voz a outras tantas que discorrem durante o espetáculo. As linguagens bíblicas do tempo passado se amalgamam com as linguagens mais chulas do tempo presente da atriz. E em determinado momento, entre uma cena mais lírica e outra mais coloquial, ouve-se o funk da feia.

A experiência coletiva do trabalho apresentado, inerente ao teatro, é visível na peça. Essa coletividade que emana do palco para a platéia cria uma atmosfera poética. O que está sendo contado possibilita a construção de lacunas, para que a imaginação do espectador – e essa não mais da ordem do coletivo e sim do indivíduo – possa experienciar não só o ato do “simplesmente se deleitar ouvindo a pitoresca história da feia princesa”, mas, também, refletir sobre questões ainda contemporâneas relacionadas ao péssimo hábito de catalogarmos as pessoas por suas embalagens, rotulando-as muito antes de violarmos o invólucro. Assim, A Mulher que Escreveu a Bíblia tem tudo pra se tornar um daqueles justos sucessos leia o livro, veja a peça, assista ao filme. A peça já vale uma re-ida ao teatro.

Vol. I, nº 1, março de 2008

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