Jogo de espelhamento e oposição

Crítica da peça De Verdade – A Mulher Certa, com direção de Marcio Abreu

19 de maio de 2012 Críticas
Foto: Divulgação.

De verdade – A mulher certa aborda relacionamentos conjugais não apenas a partir das evidências que comprovam onde marido e mulher se diferenciam problematicamente, mas também nos pontos em que se aproximam ou até se assemelham. De início, os desencontros vêm à tona, principalmente no que diz respeito aos modos distintos de percepção do mundo decorrentes da classe social a qual cada um originalmente pertence. A dependência amorosa e o medo da intimidade também se constituem como elementos que distanciam os personagens. Esses descompassos tornam as relações claustrofóbicas. Entretanto, a maneira de marido e mulher evocarem um casamento que chegou ao fim chega a ser similar, como se um estivesse espelhando o outro.

Parece haver uma tensão entre a resistência diante de operar mudanças pessoais dentro do relacionamento e a perda de vínculo com a própria personalidade para agradar quem está ao lado, como um mecanismo de atuação que, ao longo do tempo, se torna estéril. O marido, oriundo de ambiente burguês, permanece arraigado às regras previamente estipuladas. “Ser burguês é muito tenso”, assume. A mulher, vinda da classe média, não mede esforços para se apagar diante das exigências sociais com as quais se depara.

Algumas dessas características transparecem na encenação de Marcio Abreu. A perspectiva da atuação nas trajetórias dos personagens é destacada a partir de determinado momento, quando os atores assumem registro assumidamente exteriorizado, estilizado, que contrasta com a bem-vinda discrição de diversas passagens. A montagem é sempre melhor quando busca o intimismo, valorizado pela expressiva iluminação de Nadja Naira. Esta alternância de climas se reflete nos figurinos (de Cao Albuquerque), adequadamente discretos durante a maior parte do tempo, ao contrário da passagem em que o “teatral” se impõe.

O espelho, elemento que pode sublinhar a questão da similaridade entre os personagens quando relembram o passado, desponta na cenografia, promovendo uma inclusão do público, que, a despeito do belo efeito, não ultrapassa o desgaste de um recurso já tantas vezes utilizado. Apesar disso, a criação cenográfica (de Fernando Marés de Castilho) é acertada na proposição de um belo espaço de tonalidade clara que valoriza o processo. Um espaço constante e expressivamente alterado pelos atores. Eles, vez por outra, escapam dessa área delimitada, revelando certa necessidade dos personagens de fugirem do embate que se explicita.

Os atores enfrentam os desafios de um texto frequentemente estruturado como monólogo (fluente adaptação de Isabel Muniz e Susana Schild para o caudaloso romance do húngaro Sándor Márai), da marcação frontal diante da plateia e do trânsito entre narração e vivência. Guilherme Piva domina as quebras de atmosfera, quando se volta mais diretamente para a plateia (ainda que sem esperar eventuais respostas dos espectadores para as perguntas que lança), e revela contundência na presentificação das experiências vividas. Kika Kalashe evita a gravidade, a austeridade, no modo de abordar experiências trágicas (como a morte do filho) e se destaca ao dimensionar o sofrimento diante da espera pelo marido. Antonio Saraiva, encarregado da direção musical, realça a melancolia dos personagens e busca estabelecer uma conexão entre a música e a cena fazendo da primeira um elemento ativo dentro do espetáculo.

Daniel Schenker é doutorando da UniRio e crítico de teatro do Jornal do Commercio e da Isto É / Gente.

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