Nunca fomos miseráveis

Crítica do espetáculo Os miseráveis, com direção de Pedro Rothe

31 de março de 2013 Críticas
Foto: Igor Helal.

O caos político e o crescimento econômico de Paris em meados do século XIX é o contexto histórico deste espetáculo. Poucos anos após a Revolução Industrial, os trabalhadores franceses se multiplicavam em fábricas com condições de serviço vis. Amontoavam-se miseráveis nas zonas pobres da cidade, e dessa densidade demográfica forçada cresceram muitos movimentos de luta política. Durante revoltas e barricadas, dois reis foram derrubados e milhares de pobres foram mortos. A derrota dos reis é sintoma do enfraquecimento do regime político diante das mudanças. Já quando parte do povo morre, os que ficam se reconhecem na dor e ganham força, entendem-se como coletivo, e uma classe se constitui. Os Miseráveis, baseado no romance homônimo de Victor Hugo, expõe o proletariado francês sem recursos, desesperado, brigando por melhorias de vida no início dos tempos modernos.

Brasil. 2013. A UFRJ realiza sua XII Mostra de Teatro, na qual os alunos do curso de Direção Teatral da ECO (Escola de Comunicação), assim como os estudantes do curso de Cenografia e Figurino da EBA (Escola de Belas Artes), apresentam seus trabalhos de conclusão de curso. No campus da Praia Vermelha (Urca), lugar de origem do curso de Direção, as peças são apresentadas em salas improvisadas (no caso da “Mostrinha”, a mostra paralela que exibe os trabalhos finais de disciplinas, que utiliza as salas de aula desocupadas no horário) e na sala Oduvaldo Vianna Filho, reformada para o curso de teatro. A sala é um espaço alternativo (a faculdade não possui um teatro que esteja à disposição dos alunos) com um equipamento de iluminação pequeno e alguns praticáveis com cadeiras. A reforma é uma tentativa da Universidade de suprir a demanda por um espaço cênico, afinal, se o curso é de teatro, nada mais justo que esses alunos tenham suas necessidades de lugar de estudo atendidas, como deve, ou deveria, ocorrer com os alunos dos demais cursos. Mas é pouco, uma sala só. Não atende a todos. E, em consequência disso, as peças ensaiadas por quase um ano, têm apenas três apresentações na Mostra, o que não se pode sequer chamar de temporada. Para que todos possam mostrar seus trabalhos, revezando-se na “Vianninha”, é preciso ceder.

Ao longo de um mês com diversas encenações quase ininterruptas (só não tinha peça nas segundas) frequentei a Mostra e percebi um movimento interessante de público. Muitos alunos da ECO e da EBA acompanhavam os trabalhos dos colegas de turma, mas, além dos amigos e familiares, uma parte formada por alunos de teatro de outras escolas e outra por frequentadores de teatro aparentemente sem vínculo com os estudantes também eram recorrentes, e vi que algumas pessoas foram a mais de uma peça. Isto é sinal de uma formação de plateia consistente. Contudo, e infelizmente, muitas pessoas não conseguem assistir porque não tem lugar para todos. Uma vez esgotadas as senhas distribuídas antes (a programação é gratuita), resta ao espectador tentar outro dia, ou então, se consolar que não poderá ver (caso tenha ido ao último dia das três apresentações). Exatamente no momento em que o dinheiro investido pelo governo no aluno pode chegar à população, em forma de bem cultural, a população não tem garantia de acesso. Investe-se no aluno, mas não na estrutura. Tem um curso de Direção Teatral, mas não tem teatro. Tem a peça pronta, mas nem todo o público pode assistir.

É importante falar sobre isso porque, recentemente, a última Reforma Universitária (REUNI) obriga às universidades, sob pena de perder parte das verbas recebidas, a aumentar o número de vagas por curso – num esforço em tornar o ensino mais democrático, o que obviamente é necessário. No entanto, o acréscimo do número de vagas não significa um acréscimo proporcional de verbas. Em alguns cursos, antes de abrirem vagas a mais, é preciso melhorar a estrutura para receber um número maior de alunos. Como os novos alunos ainda não chegaram, o dinheiro também não chega, e as obras não acontecem (é o caso do curso de Direção Teatral da UNIRIO). Forma-se um círculo estéril. Outro fato importante que aconteceu nos últimos dias foi o anuncio da implementação do Vale Cultura, destinado a trabalhadores que recebem até cinco salários mínimos. A medida pretende ampliar a participação desta camada da população nos eventos culturais. É interessante perceber que, embora preocupado com o acesso ao conhecimento, e o Vale Cultura é uma proposição relevante neste sentido, o governo pouco valoriza o que se produz de saber e criação artística nas suas próprias instituições de ensino, visto que não investe e não prepara estes espaços para receber a população.

Na minha atual (e um tanto longa) experiência em cursos de graduação em universidades públicas, posso elencar problemas de estrutura decorrentes exclusivamente da “falta de dinheiro”. Desde os elevadores da UNIRIO que nunca vi funcionarem os dois ao mesmo tempo, até um apagão elétrico ocorrido somente no prédio do IFCS (1), que obrigou os professores a dispensar todos os alunos antes da primeira hora de aula. Sabemos desses problemas, não pretendo me alongar nisso, porém, apenas mais um comentário: todos os estudantes das áreas de artes e ciências humanas das faculdades conhecem bem o sentimento de pertencer aos departamentos “pobres” da instituição. E não há discórdia em saber que, na disputa entre os necessitados, os doentes dos hospitais universitários serão sempre prioridade. Um estoque de seringas é mais importante que um ar condicionado. Mas se para o aluno de medicina falta material, imagina para o de teatro.

A precariedade de recursos nos cursos de medicina, em certa medida, reflete o descaso que os governantes têm para com o sistema de saúde público brasileiro. O que contribui, ainda, para a legitimação da lenda de que os melhores médicos foram os que estudaram na escassez dos hospitais públicos (quase um discurso utilitarista da escassez). Mas e na arte e nas ciências humanas, como “compreender” o abandono? Qual é o seu reflexo social? Podemos admitir de uma vez a desimportância dada à arte neste país, assim como a crescente desvalorização da área de humanas (2) frente aos novos conhecimentos nas ciências biológicas, exatas e de informática, ao longo do último século. Em todo caso, esta perspectiva panorâmica não põe luz sobre os bastidores burocrático-administrativos, que são os que diretamente configuram um estado de pobreza na vida dos cursos em questão. Algumas facetas só são conhecidas quando se está inserido num contexto universitário, ou seja, quando se é aluno, ou empregado da instituição.

Existe um “assunto de corredor” (que todos sabem, não é invenção) nos cursos dessas áreas de que, a propósito da eterna disputa dos professores por investimentos, um grande obstáculo chamado “produtividade” está dentre os critérios de avaliação e classificação dos cursos, e que acaba por determinar o ranking dos repasses de verbas. A principal crítica é a de que se aplica uma única lógica de produtividade a todos os cursos, da engenharia à dança, por exemplo. Assim, um curso em que os alunos produzam trabalhos individuais terá uma produção “maior” do que os que produzem trabalhos coletivos – além de uma série de outras análises que não proporcionam devidamente (a meu ver) os chamados produtos. Considera-se então que meia dúzia de peças produzidas por muitos alunos de teatro tem valor de produção “inferior” a muitos artigos de informática produzidos por uma quantidade menor de alunos de informática (que os de teatro). A valoração é feita em termos quantitativos. A pergunta que ecoa insistentemente é: que ajuizamento é esse?

E sobre investimentos privados nessas áreas, a explicação é muito simples e mercadológica: nossos produtos não são “lucrativos”. Faltam petróleo e similares no que produzimos. Nós não temos valor de mercado suficiente. E como nosso retorno é “falho”, o que recebemos é pouco, ou nada.

Regresso, enfim, ao espetáculo para dizer que, neste contexto, quando se monta Os miseráveis, não é preciso sequer explicar de quem se trata. Os alunos envolvidos nesta montagem falam de si. E expandindo a questão para todos os alunos desses cursos, os miseráveis somos nós. “Mas os estudantes decidem lutar”(3).

Estava marcada para as 20h a estreia do espetáculo no dia 15 de março. Quando cheguei, tinha tanta gente circulando pelos corredores que pensei que tivesse ocorrido alguma coisa grave (não tem muito tempo que o prédio sofreu um incêndio). Me encaminhei até a entrada do Teatro de Arena Carvalho Neto, “pertencente” à escola de Economia. Fiquei sabendo depois que os alunos envolvidos tiveram dificuldades para conseguir autorização para se apresentarem na arena. Como o teatro não está vinculado ao departamento de Direção Teatral, seria necessário uma autorização do outro curso. E esta não veio facilmente. Fico me perguntando o porquê, para além de todos os problemas externos que recaem sobre as faculdades, alguns abordados neste texto, os diversos cursos não conseguem manter uma relação harmoniosa e de colaboração mútua. Ao contrário do que se possa imaginar,as turbulências entre as direções de departamentos não são raras, pelo contrário, estão mais próximas da regra. Fato é que promover propostas interdisciplinares de trabalho exige esforço e persistência que transpassam os pontos meramente burocráticos. Na entrada do teatro, os alunos que faziam a produção diziam: “é tudo público, vamos tentar arrumar lugar pra todo mundo”. Mais de 300 pessoas, numa sexta-feira, em uma universidade pública, para assistir a um espetáculo teatral. Fiquei surpresa, para não dizer assustada, porque, além de tudo, chovia muito.

Com algum atraso, pois, demorou até que todas as pessoas estivessem acomodadas, o espetáculo começou. Uma bandeira da França ao centro, presa por uma corda estendida nas janelas do segundo andar, balançava no vento forte. Havia estiado. Os alunos instrumentistas e o regente se posicionaram ao fundo do palco. O lugar reservado para a encenação não era coberto e se chovesse molharia os atores, músicos, público, e, principalmente, os instrumentos. Choveu. Antes da metade do primeiro ato. De repente um mar de guarda-chuvas se abriu e a encenação continuou. Entre músicos e atores eram mais de 50 pessoas em cena, e tantas outras estavam nas laterais formando as equipes de figurino, iluminação e contrarregras. A peça de formatura de Pedro Rothe, aluno da direção, envolveu uma equipe em números que eu, particularmente, nunca tinha visto numa universidade, e que concebeu um trabalho que merece muitos aplausos.

A força desta montagem não está propriamente no seu resultado, mas na coragem do seu processo. Como qualquer “peça de formatura” a produção tem suas irregularidades. As atuações são destoantes e resvalam naquela velha questão dos musicais: atores que não são cantores, cantores que não atores. De qualquer forma, eu não me sinto capaz de escrever qualquer análise que se desdobre sobre as condições técnicas de um espetáculo musical, universitário ou não. Só posso dizer do efeito que ele provoca e da crítica que ele invoca. Por exemplo, eu posso rememorar que no momento em que a chuva virou uma tempestade e o espetáculo precisou ser interrompido, durante mais de trinta minutos o público aguardou nos corredores, amontoado pelas paredes e chão convencido que não teria que ir embora. E que na primeira estiagem funcionários e alunos se juntaram com rodos e panos de chão para secar o palco. Enquanto o público retomava seus assentos (molhados), os músicos se organizavam e migravam para o corredor ao fundo da arena, com seus instrumentos e partituras, para evitar que uma nova pancada de chuva os silenciasse novamente. E mesmo assim, com cinco minutos de recomeço, tornou a chover.

Tudo bem, o público que já estava parcialmente molhado resistiu com ou sem guarda-chuvas por mais de duas horas e meia. Os atores ensopados com seus figurinos não paravam de cantar. É do teatro produzir imagens de resistência (ainda). “Vencer” a chuva e finalizar a apresentação virou a meta de todos, artistas e espectadores. Ao final de cada canção aplausos e gritos comovidos impulsionavam à vitória. Vimos, então, uma barricada real. Nos dez minutos de intervalo entre os atos, mais uma vez funcionários e alunos tentavam secar o palco, só que dessa vez sob forte chuva, na verdade, a tentativa era de diminuir as poças d’água que haviam se formado. No segundo ato a chuva foi incessante e só reforçou a sensação de catarse de quem estava presente. As viúvas e mães dos estudantes mortos na barricada francesa, enquanto passavam recolhendo seus corpos, tinham o peso da dor marcado nas longas rendas negras que as encobriam completamente, e que por estarem encharcadas, dificultava o andar. Éponine, a jovem que decide ir para o campo de batalha para ficar perto do homem que ama, canta que a chuva não a poderia machucar, já que estava perto dele. E que é a chuva mesmo que lava o passado, e faz com que as flores cresçam.

Foto: Priscila Ferreira.

Era uma hora da madrugada quando o espetáculo terminou. Estávamos todos ensopados e meio doentes. Caminhei até o ponto de ônibus (os táxis não paravam para aquela gente toda molhada), e uma senhora me disse que estava de “alma lavada”.

Eu não sei exatamente como terminar este texto, porque os pensamentos e associações que esta experiência me provocou ainda não estão totalmente esclarecidos, de modo que não consigo pôr em palavras. Então esta “crítica”, se for uma crítica, é esta profusão de informações que, é o que é possível (a escrita é o que é possível). Mas antes de finalizar eu gostaria de fazer algumas considerações:

1 – É impressionante que, mesmo com todas as dificuldades de compor trabalhos interdisciplinares, esta montagem conta com envolvidos da Escola de Comunicação, Escola de Música, Escola de Belas Artes, Instituto de Economia, Faculdade de Administração e Ciências Contábeis e do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ;

2 – Pode parecer, mas não é insano que tantas pessoas tenham se reunido e compartilhado de tanto tempo e aprendizado juntos, para no fim poderem se apresentar três vezes. Não é insano porque sabemos que o valor deste “produto” não se estabelece pela quantidade de apresentações. Não pensamos quantitativamente. Contudo, três apresentações, apesar de não ser insano, é um equívoco;

3 – A chuva, de algoz a efeito estético, serviu mesmo para mostrar o único valor de produtividade que interessa nos estudantes: a vontade de;

4 – Este ano a Questão de Crítica lançou um novo prêmio: o Prêmio Yan Michalski para o Teatro em Formação. E a Mostra foi o evento que inaugurou esta nova agenda. Com este começo, não resta dúvida que a incursão no meio profissionalizante já deveria ter acontecido.

Estamos atrasados para provar que não é de lucro, nem de produtividade que vivem esses estudantes. Enfrentando os problemas de dentro e de fora da faculdade (condições “improvisadas” de estudo, um mercado de trabalho sombrio, descrença familiar, etc.), os estudantes de arte são como a Éponine, que preferem morrer na batalha, desde que fique perto daquilo que ama. Sem romantismos e ilusões, é uma escolha consciente por um caminho que é difícil. É simples e real, mas muita gente não “entende” porque se apegou à outra lógica de produção, aquela mais industrial. Nesta lógica, pode-se falar em miseráveis.

Notas:

(1)Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ.

(2)Atualmente, existe uma proposta de Lei que pretende unir Geografia, História, Filosofia e Sociologia numa só disciplina nos currículos da Educação Básica.

(3)Trecho retirado da sinopse do programa do espetáculo.

Mariana Barcelos é atriz, estudante de Artes Cênicas – bacharelado com habilitação em Teoria do Teatro pela UNIRIO e graduanda em Ciências Sociais da UFRJ.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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