Uma mulher decidida

Crítica da peça Monologue, direção de Marília Gurgel, XII Mostra de Teatro da UFRJ

12 de abril de 2013 Críticas

Quando me deparo com montagens teatrais dentro do âmbito universitário, sempre destaco a importância, e o prazer, de ver produções em que o estudante de teatro se permite mais correr riscos do que se deixar seduzir pela ansiedade de fazer uma montagem como um produto acabado, bem feito e sem arestas. Considero de extrema valia trabalhos em que os jovens artistas se permitem expor a dúvida, as perguntas que se fazem durante o processo de produção de uma obra. Esta é uma premissa vital para a discussão do teatro que se faz na atualidade, pois a relação de experimentação e risco que algumas experiências acadêmicas proporcionam abre espaço para um teatro que nos impulsiona à reflexão, a outros modos de fruição como espectador. Por esse viés, volto meus olhos para os recentes trabalhos da XII Mostra de Teatro da UFRJ em que me deparo com uma gama muito diversificada de propostas cênicas, que vão desde trabalhos solos à encenação de um musical do porte de Os miseráveis, por exemplo.

Há dentro desse universo um número expressivo de processos colaborativos, o que pode detectar uma vocação desses alunos por trabalhos que prezam pelo envolvimento de várias vozes dentro de um processo artístico, por mais que esse experimento seja eminentemente uma etapa importante da formação de um jovem diretor, que é a conclusão do curso de direção. Há, por parte desses alunos – e isso me pareceu mais evidente ao participar de forma intensiva dessa edição da Mostra – uma vontade de pesquisar seus próprios caminhos e subjetividades artísticas, de buscar uma criação autoral e singular. Parece-me que eles são estimulados por um corpo docente que “dá corda” a essas práticas propositivas e instigadas pela pesquisa cênica. Isso se dá também pelo caráter agregador que a própria natureza da Mostra promove ao misturar diversas áreas da Escola de Comunicação e Artes da UFRJ (ECO). Soma-se a isso a formação de um público espontâneo que ela conquistou ao longo de suas doze edições.

Após essa introdução sobre a Mostra e seu caráter plural volto meus olhos para uma experiência que me chamou a atenção por se tratar de um monólogo, tarefa nada fácil no campo teatral, já que requer um esforço muito incisivo no trabalho de ator. Parece-me que essa escolha para uma prática de montagem repousa na vontade de dirigir o ator a partir de um texto não dramatúrgico. É curioso vermos trabalhos dessa natureza numa prática de montagem, pois a ideia de uma montagem parece trazer consigo a determinação de ser um trabalho com grande elenco, e um trabalho que traz somente um ator em cena é um risco bastante grande e desafiador para os artistas envolvidos, principalmente para a direção, que deixa sua marca muito forte no tipo de atuação exposta em cena.

Assim, a prática de montagem Monologue, da aluna-diretora Marília Gurgel, pode ser inserida dentro desse contexto. Retirado do livro A mulher desiludida, de Simone de Beauvoir, lançado em 1967, Monologue (a tradução para o português é Monólogo, mas a diretora optou por manter o original francês) é um dos três contos que trazem em seu bojo as questões da mulher que se emancipava nos anos 60 (e que teve em Simone um emblemático farol político e literário das causas feministas). As três narrativas que compõem A mulher desiludida mostram o mundo de diferentes personagens femininas, de meia idade, que se vêem diante da solidão, do fracasso, das questões amorosas e existenciais diante de um mundo ainda dominado pela lógica masculina. Monologue é a segunda parte do livro, em cujo enredo uma mulher divaga sobre seus casamentos fracassados, a conturbada relação com a sua mãe e a morte de sua filha por suicídio, dor que coloca essa mulher em um estado de aparente delírio, evidenciando uma revolta com o mundo “fora” e com sua própria existência. É importante destacar que a aluna-diretora já havia se aventurado na temática feminina em peças como As lágrimas amargas (a partir de As lágrimas amargas de Petra Von Kant), de Rainer Werner Fassbinder e Lisístrata, de Aristófanes, ambas apresentadas dentro da universidade em 2011 e 2012 respectivamente.

O texto de Simone de Beauvoir contém uma teatralidade latente ao apresentar uma estrutura narrativa em primeira pessoa, narrativa que imediatamente aciona o ouvido do leitor para uma relação ativa de escuta. Carregada de imagens sonoras, com uma pontuação espaçada, a fala constante da personagem (que se chama Murielle, mas na versão teatral de Marília Gurgel recebe o nome de Martha) exige uma interlocução atenta e presencial, como se cada espectador fosse o cúmplice de seu discurso intenso. O fluxo intenso de pensamento que sai da boca daquela mulher sozinha, que aparentemente fala para o “nada”, presentifica o “outro” que ouve aquele vômito existencial e verborrágico. As frases de Monologue são extensas, com pouquíssimas vírgulas e pontos finais (exclamações e interrogações são quase inexistentes) o que implica menos respiros dentro do discurso do que blocos de fala extensos e que exaurem o leitor. Por essas questões, acredito que a narrativa opera um chamado à fala, uma fala que determinará os lugares onde vírgulas, pontos e pausas poderão ser colocados, pensando naquele alguém para quem Murielle (Martha) irá se dirigir. Assim, o espetáculo de Marília Gurgel opta por um purismo no uso do texto, transpondo as linhas de Monologue de forma que podemos ver a literatura como dramaturgia de uma cena com forte apelo expressivo do corpo da atriz e a real interlocução dela com o espectador na cena.

O trabalho da atriz Tatiana Henrique se dá por uma vertente bastante corporal, na medida em que a intérprete busca vivificar as sensações através de movimentos e marcações bem definidas, o que resulta num corpo desperto e que busca dar uma identidade visual com as palavras. Toda essa movimentação bem delimitada evidencia um gesto apurado da direção, porém não impediu que a atuação caísse, em certos momentos, numa marcada representação, o que invariavelmente esvazia a densidade emotiva que a narrativa contém, principalmente em pontos em que a autora expõe a extrema humanidade da personagem. Fica evidente uma marcada construção da ideia que se tem da personagem e de como aqueles estados que a atravessam devem ser expostos para o espectador de forma física. Essa extrema preocupação – legítima, pois se trata aqui de um trabalho na busca de sua singularidade – em dar conta dos múltiplos estados emotivos de Martha, me parece conduzir a atuação menos numa busca verdadeira e espontânea dos sentimentos diante do público, no presente da ação, e mais o desejo de evidenciar a árdua construção de um personagem.

Mas dentro dessa exposição da figura construída pela atriz, é visível a preocupação da direção para que o trabalho não se feche, alienando o público ali presente. A relação com o espectador é direta, intensa e necessária para a atriz forjar o seu interlocutor na plateia atenta, esse interlocutor onipresente das memórias e dilemas de Martha. A opção por uma não frontalidade da relação entre ator e espectador nesse trabalho, o que vemos mais usualmente em monólogos, evidencia o foco na representação engendrada por Tatiana Henrique, que arduamente mantém a intensidade do trabalho e a forma como se dirige a cada espectador, em cada uma das quatro arquibancadas.

A cenografia (Nathália Borges), iluminação (Letícia Bianchi) e figurino (Aline Lima) dialogam ao criar um espaço de um não lugar, um ambiente em que a decodificação não se dá de imediato, evidenciando um espaço asséptico onde o foco do olhar é para os movimentos e a fala incessante da personagem. As arquibancadas estão dispostas em arena, de forma que a atriz se encontra dentro do quadrante que proporciona um espaço cênico de muita proximidade com o público, com o olhar do espectador. O chão é coberto por uma lona branca, numa das laterais do espaço da cena há uma espécie de pufe, de um vermelho intenso, que possibilita um uso dinâmico já que a atriz pode emaranhar-se nele, fazer seu corpo desaparecer nele, desfazê-lo no espaço, recolocá-lo na lateral intacto. Há no centro do espaço um lustre feito de tiras de silicone com alguns fios de lã vermelha.

Essa conjunção entre cenografia, iluminação e figurino forma um ambiente claro, solar, de onde emana um duplo sentido: pode ser o lar daquela mulher, ou mesmo um hospital, até uma clínica psiquiátrica, pela assepsia já mencionada. Essa segunda sugestão também é evidenciada pelo figurino ainda de forma mais marcada. Os chinelos de tecido atoalhado possibilitam certa resistência ao andar da atriz e uma tensão de que o corpo tombe a sua frente. Mas o que denota maior referência à possibilidade de que essa mulher esteja num quarto de hospital é o que encobre o seu vestido azul, uma espécie de avental que remete imediatamente a uma camisa de força. Esses elementos dão a sensação dessa mulher estar em tratamento clínico, como se, internada sob o olhar médico e a partir desse estado de reclusão, proferisse um discurso delirante (que passa o passado a limpo) a si própria. Sua solidão é partilhada com o público que é seu cúmplice, seja no delírio ou na necessidade de falar ao outro, que deseja ouvir o coração estraçalhado pela dor de uma perda que sofreu.

Considero Monologue uma experiência que materializa o desejo de uma diretora de levantar questões, de experimentar seus próprios caminhos e anseios artísticos, de falar sobre si ao buscar em Simone de Beauvoir uma interlocução, refletindo na cena aquilo que a personagem procura no espectador diante de si. Antes de serem mulheres desiludidas, Marília, Tatiana e Martha são mulheres que falam por si, que se apresentam sem máscaras, que mostram a que vieram. São mulheres decididas.

Dâmaris Grün é atriz formada em Teoria do Teatro pela Unirio e faz a coordenação geral do Prêmio Yan Michalski para o teatro em Formação.

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