A cena negra refletida no abebé de Oxum

26 de março de 2018 Estudos e

Em 1944, no Brasil, Abdias do Nascimento, poeta, ator, escritor, dramaturgo, artista plástico, professor, político e ativista dos direitos civis e humanos das populações negras, fundou, no Rio de Janeiro, o icônico Teatro Experimental do Negro. Entre as inúmeras motivações ideológicas que o levaram a idealizar o TEN, estava o desejo de criar um teatro onde o negro não fosse apenas tema, mas que pudesse ser protagonista de sua própria história.

Uma vez que, ao longo de mais de 70 anos, as estruturas racistas ainda insistem em nos invisibilizar, O teatro negro em perspectiva: dramaturgia e cena negra no Brasil e em Cuba, de Marcos Antônio Alexandre, se faz necessário e urgente, na medida em que apresenta outras paisagens e contribui para a reconfiguração simbólica e material da cartografia das artes no Brasil, em conexão com Cuba.

Seguindo os percursos de Édouard Glissant e sua poética da relação, Marcos Alexandre nos oferece novas perspectivas a partir das quais podemos reavaliar e reinterpretar os territórios e fronteiras artísticas, especialmente naquilo que diz respeito aos processos históricos ligados às construções identitárias, mnemônicas e culturais no Brasil e em Cuba.

Como se fosse um arquipélago, o livro está dividido em um conjunto de ilhas:

Parte I – Na primeira ilha, um convite para mergulharmos na ideia de um Teatro Negro defendida pelo autor e ainda conhecermos o conceito de Corpo Pulsante que ele desenvolve.

Aportes críticos

Aqui, Marcos Alexandre apresenta alguns conceitos teóricos que guiam a tessitura de todo o livro. De início, marca o seu entendimento sobre como lê conceitualmente a terminologia Teatro Negro. De maneira sucinta, aponta que “tratam-se de textos dramáticos e/ou espetaculares em que os negros, a sua cultura e a sua visão ideológica do (e para) o mundo aparecem como temática central e como agentes.” Logo, dentro da sua perspectiva crítica, o teatro negro não só retrata as especificidades dos sujeitos negros e sua integração na sociedade, mas também se retroalimenta dos elementos que compõem e integram a cultura dos afrodescendentes em suas distintas manifestações artístico-performáticas: danças, músicas, jogos, linguagem, mitos, religião e ritos, pois teatro negro é ritualístico.

Outro conceito teórico que compõe essa ilha, é o de Corpo (negro) pulsante, entendido como produto de reminiscências de memórias pessoais e coletivas que são corporificadas e levadas para a representação textual e cênica. Alexandre estabelece um diálogo entre os conceitos de corpo negro pulsante, corpo-território, proposto por Muniz Sodré, e de encruzilhada, tecido por Leda Maria Martins (para a autora, a cultura negra é o lugar da encruzilhada). A partir de toda essa interseccionalidade, ele acrescenta à sua leitura de corpo negro pulsante, o argumento de que o corpo negro é o lugar das encruzilhadas, encruzilhada entendida como espaço intervalar de encontro e desencontro, de fissuras e tessituras mnemônicas. O corpo negro representado é, assim, ressemantizado e, geralmente, visto como uma instância de legitimação de um discurso ideológico e político e, especialmente, como um construto de saberes.

Parte II – Na segunda parte o convite é para desbravarmos a ilha. O autor, a partir de sua minuciosa investigação, nos apresenta uma paisagem diversa do que podemos compreender como teatro negro. A partir da analise crítica de obras feitas no Brasil e em Cuba, expande o panorama e possibilita a desarticulação do pensamento equivocado que insiste em reduzir o teatro negro a um conjunto de estereótipos.

Teatro Negro: A cena negra em Belo Horizonte, a cena negra em Salvador e a cena negra em Cuba

Nessa ilha, o autor apresenta peças teatrais que compõem e compuseram a cena negra em Belo Horizonte, Salvador e Cuba, jogando o foco do olhar, ou melhor, ampliando o olhar para outras cidades e países, que não somente o Rio de Janeiro e/ou São Paulo e os Estados Unidos.

Quanto à cena negra belorizontina, Marcos Alexandre faz um panorama que vai da importância do Festival de Arte Negra (FAN), desde 1995, promovido pela Prefeitura Municipal da cidade, passando pelo teatro de artistas como Maurício Tizumba – que entre outros elementos estéticos lança mão da religiosidade como um elemento fundamental de legitimidade de uma forma artística, constituindo-se como um ato de religare da cultura afro-brasileira –, o grupo Teatro Negro e Atitude, os artistas Gil Amâncio e Rui Moreira, até chegar nos artistas e/ou grupos de teatro mais novos, como o Grupo dos Dez, Cia Espaço Preto e o Coletivo Negras Autoras, que vêem povoando a cena negra de Belo Horizonte, tanto no sentido de ocupar os lugares de arte quanto no de pensar as várias possibilidades estéticas, éticas e de fissuras da(s) cena(s) negra(s) contemporânea.

Na cena negra em Salvador, estuda o grupo NATA – Núcleo Afrobrasileiro de Teatro de Alagoinhas – nascido na cidade de Alagoinhas, interior da Bahia, criado pela diretora e dramaturga Fernanda Júlia – que se inspira nos orikis e usa teatro, dança afro e música para mostrar a beleza e a filosofia do culto às divindades. São analisadas as seguintes montagens: Shirê Oba, a festa do Rei, Ogum, Deus e homem e Exu, a boca do universo; e o Bando de Teatro Olodum, que assume o legado do TEN – Teatro Experimental do Negro, que, de acordo com Alexandre, mescla humor e discussão racial. Além do uso da palavra como ferramenta ideológica, o grupo, esteticamente, utiliza a dança, a corporeidade negra e a música, assim como os referenciais rituais do candomblé e de outros ritos como forma de discutir e de se nutrir na fonte da cultura afro-brasileira. O autor analisa Zumbi, dedicado aos índios Kiriri numa antologia pela perda das terras; Cabaré da Rrrrraça, que desconstrói cenicamente os preoconceitos com o teatro engajado; e Bença, que compõe o projeto “Respeito aos mais velhos”.

Já sobre a cena negra em Cuba, Marcos Alexandre traça um panorama histórico de grande importância para os estudos afrodescendentes, trazendo ao leitor brasileiro, como aponta Eduardo de Assis Duarte, um conjunto relevante de informações, sem deixar de lado as polêmicas que vigoram em ambos os países a respeito da questão identitária e do embate entre nacionalidade e etnicidade. São informações que apontam criticamente para três dramaturgos da cena em Cuba: Fátima Patterson, com o estudo de Repique por Mafifa o la última campanera; Geraldo Fulleda León, com Chago de Guisa; e Eugenio Hernández Espinosa, com as obras El elegido, Oya Ayawá, Calixta Comité e La balsa.

Além dos estudos críticos das obras de todos esses artistas que constroem a segunda parte de O teatro negro em perspectiva: dramaturgia e cena negra no Brasil e em Cuba, chega ao leitor imagens apuradas das obras em questão, ilustrando cenas cruciais dos espetáculos. Sobre quando as imagens também tecem narrativas.

Parte III – O convite proposto para a terceira ilha é para esticarmos uma rede e, atenta e criticamente, desfrutarmos da tradução que fez da obra Maria Antônia, de Eugenio Hernández Espinosa.

Maria Antônia

Traduzida na íntegra, a peça de Espionosa para o português é de grande importância, pois instiga o leitor a refletir sobre, por exemplo, o lugar de enunciação de cada autor estudado e suas elaborações estéticas e poéticas outras, além de ser um abrir das gavetas que o bloqueio imposto à produção cultural da ilha insiste em fazer e uma ponte de diálogo e interseções que coloca Cuba também na semente das reflexões sobre estética, dramaturgia e teatro negro. Maria Antônia pode ser lida a partir de várias perspectivas: gênero, negritude em Cuba, religião afro-cubana, intertextualidades: o “local” em diálogo/conexão com o “universal”. Isso aponta para a relevância da tradução, que serve como base para pesquisas no campo do teatro, da literatura e da história. A pesquisadora e professora da Universidade Federal de Minas Gerais, Sara Rojo, que faz o prefácio do livro, sinaliza que montar Maria Antônia, no Brasil, seria construir de fato uma ponte intercultural e um aporte à produção artística afrodescendente.

Parte IV – Na quarta ilha, o autor nos convida a sentar à mesa e junto com um coletivo de artistas do Brasil e de Cuba para refletirmos sobre poética negra. Generosamente abre espaço para que outros artistas, orquestrados por ele, reforcem o coro que, como um mosaico, nos possibilitará compreender a complexidade de nosso teatro negro.

O negro e sua cultura em discussão – Entrevistas

A última ilha do livro traz oito entrevistas com artistas, pesquisadores ou praticantes de religiões de matriz africana do Brasil e de Cuba: Fernanda Júlia, Márcio Meirelles, Tomás Fernadez Robaina, Inés María Martiatu Terry, Fátima Patterson, Geraldo Fulleda León, Alexandre de Sena e Anderson Feliciano. Esses entrevistados fazem parte de gerações diferentes e igualmente falam de lugares de enunciações distintos, assim a reflexão sobre o teatro negro aparece de diversas formas nas respostas de cada um, desde as entrelinhas até trechos específicos no quais são discutidos aspectos pontuais. Os diálogos estabelecidos com os entrevistados podem ser lidos, ao mesmo tempo, como testemunho e como registro mmemônico fundamentais para se ter um panorama sobre a diversidade de pensamentos relacionados à cultura negra.

Esse conjunto de ilhas está rodeado por uma profunda investigação que nasceu, como o autor aponta, de uma consequência do pós-doutoramento desenvolvido na Faculdad de Artes Escénicas, do Instituto Superior de Arte, em Havana/Cuba e no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, entre 2008 e 2009 e que se concretizou a partir do desenvolvimento do Projeto de Pesquisa do CNPq: Alteridades ressignificadas; poéticas textuais e suas reverberações, desenvolvido entre março de 2013 e fevereiro de 2016.

Necessário e urgente: o teatro negro em perspectiva: dramaturgia e cena negra no Brasil e em Cuba, de Marcos Antônio Alexandre, nasce clássico.

 

Referências bibliográficas

ALEXANDRE, Marcos Antônio. O teatro negro em perspectiva: dramaturgia e cena negra no Brasil e em Cuba. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2017.

GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Trad.. Elnice do C.A. Rocha. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: edições n-1,, 2018, no prelo.

 

Soraya Martins é doutoranda em Literaturas de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestra em Estudos Literários pela FALE/UFMG. Graduada em Letras/UFMG. Formada pelo Teatro Universitário – TU/ UFMG, cursou Semiologia do Teatro no Dipartimento di Musica e Spettecolo dell´Università di Bologna, Itália. Desde 2005, atua como atriz e pesquisadora do teatro negro brasileiro. Escreve crítica para teatro tanto no projeto segundaPRETA quanto no site Horizonte da Cena. Tem em seu currículo trabalhos realizados junto a diversos grupos de teatro, entre eles, o grupo espanca!

Anderson Feliciano é performer e dramaturgo. Mestrando em Dramaturgia pela Universidad Nacional de las Artes (Buenos Aires/Argentina) é pós-graduado em Estudos Africanos e Afro-brasileiros (PUC – Minas). É um dos curadores do projeto Polifônica Negra e coordena em Buenos Aires o Laboratório de Experimentos Performáticos. Já escreveu textos dramáticos para companhias do Brasil, Chile, Argentina, Colômbia, Equador e Itália. Como performer tem participado de festivais por vários países da América Latina.

 

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Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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