Casa e teatro de objetos: intimidade do espaço doméstico em tempos de distanciamento
Tradução de Gyl Giffony e Yenny Agudelo
Parece que enquanto passam estes dias sem podermos pôr o corpo no espaço público, a ordem de nossas casas tende a ficar desnaturalizada. Como se o excesso de presença devolvesse uma certa intimidade perdida ao lugar no qual sonhamos. Recebi uma fotografia de uns amigos que vivem com três filhos num apartamento pequeno. Na imagem vê-se a família cercada por uma muralha de móveis virados de cabeça para baixo com vários lençóis colocados em cima, como cúpulas de um acampamento coletivo. Era a primeira vez que tinham tido tempo para deixar que um jogo de apaches subvertesse o controle das disposições na sala, tempo para que o verbo “mobiliar” deixasse de ser um regulador congruente de atividades programadas e se tornasse um processo gradual de “desmobiliamento”. Uma morfologia de protesto que já não impedia materializar os sonhos no centro vital do lugar. O casal me contou que pararam de resistir à casa que as crianças desejavam e se deixaram possuir pelos potenciais imaginários, para libertá-las (e se libertar) o máximo possível do sentimento de isolamento e do confinamento do mundo televisivo e digital. Do apartamento derivou outro mapa sensível de si mesmo: a mesa foi uma fortaleza de revoluções vencidas, as camas, naves para fugir da terra, os armários, catacumbas de países antigos, e as colheres, seres que escutam e respiram cada vez que as levamos até a boca. O espaço se “rematerializou”, transformou seu regime através de um consolo talvez simbólico-animista, que não mais indicava uma hierarquia perceptiva nos modos de apropriar-se subjetivamente do espaço ou uma divisão entre os mais velhos e os menores. E é que com a pandemia todos temos empequenecido um pouco, e essa dinâmica de retração também perturba e atinge o que nos protege como corpos.
A revolta progressiva das posições e das funções objetuais no caso dos pais das crianças pele vermelha (que não são um caso isolado, senão mais uma “categoria” daqueles que incapazes de conter a revolta, procuram uma aliança), contem o germe de uma força que me lembra uma descrição que fez Henri Michaux sobre a maneira que tinha a menina de Poltergeist de estar em casa: “Ela comete atentados […] Em reposta à vida cotidiana através de objetos cotidianos, a menina ataca a disposição ordenada do mobiliário, a aparente lei das coisas no interior de uma casa. Atentados contra a tranquilidade, contra o ambiente plácido e burguês, contra a antiga proibição de se mover”[1]. Se pensamos essa citação no contexto do confinamento, o significado da proibição se reverte e forma uma figura de ida e volta. As proibições do uso do espaço público em tempos de pandemia, por sua vez, provocam uma singular rebeldia diante do olhar proibitivo que restringe a mobilidade no espaço privado, e isso é redescoberto por meio de pequenos atentados que buscam libertar o corpo aprisionado entre paredes e coisas, aproximando-o então de outro tipo de conexões com o ambiente doméstico. Uma vez que o atentado não é apenas no nível das disposições e funções, mas também no nosso “inconsciente material” e nosso “inconsciente habitacional”.
Uma parte do inconsciente material se abre quando, por fim, a luz se infiltra naqueles territórios do lugar que estavam fechados e a memória volta a brotar novamente no presente, através do que não foi jogado fora. O inútil que se arrasta por décadas, o guardado que já havíamos esquecido, mas que oferta um contorno identitário, o que sempre esteve lá, mas se tornou invisível na rotina que vivemos com o espaço. Com o passar dos dias, recebi uma imagem de uma amiga sentada no seu escritório com treze fotografias e um álbum pequeno. Havia encontrado-o guardado no fundo de uma mesa de cabeceira, quando inspecionou rincões não abertos há anos. Em seu vínculo com o objeto tensionava-se o típico paradoxo: não se lembrava do álbum e, contudo, guardava-o em um lugar importante, algo se insinuava entre o gesto protetor e o esquecimento associado a ele. Sua família migrante havia vivido em tantas casas e países ao longo de sua vida, que seus pais, num descuido, perderam todas as imagens da história familiar, e o álbum, me dizia, era o único que restava. Apenas umas fotos de sua infância e o resto, paisagens irrelevantes com as quais agora ela tratava de reconstruir a memória de um passado doloroso, pouco reforçado em fotografias. Ela ficou surpresa que o álbum reaparecesse exatamente nesse momento de pausa forçada, como se ele tivesse esperado ali em silêncio para aplicar o golpe neste instante preciso em que o corpo encontra-se mais vulnerável e menos reativo à incerteza. Mas sua experiência não foi a única. Poderíamos fazer um inventário de histórias de objetos encontrados, redescobertos ou recuperados em nossas casas durante este isolamento, e que vieram reivindicar ou confirmar algo na trajetória de nossas vidas no presente. Porque quase todo objeto é capaz de abrir em nós um potencial vital quando a subjetividade que o percebe se desacelera. Seus valores de uso, seus valores simbólicos, são atenuados por trás dos valores organizacionais (Baudrillard dixit) e este impasse pandêmico na sua concessão de tempo nos posiciona na auto-observação da própria fonte que nos empurra à ordem, com a qual estamos mais propensos a deixar-nos levar por valores desconhecidos, energias criadoras que, ao pulsar, renovam e questionam as interações padronizadas, ordenadas, com nosso entorno material.
O “inconsciente habitacional” é outra dimensão sensível que se tornou tangível nestes dias. Aquele que expande a mesma experiência de intimidade em direção a uma memória mais remota da casa, que processa a condição do meu corpo no seu presente, enquanto o compreende como parte de um ciclo mais amplo de gerações que a habitaram. Ou, em outros casos, jogaram fora, reformaram, etc. Talvez nunca chegaremos a saber com quantas pessoas, pertencentes a que épocas, compartilhamos a memória do espaço que habitamos. Alguém me disse que, quando conseguiu tirar o pó do sótão pela primeira vez, encontrou uma caixa com objetos dos antigos inquilinos e descobriu que em seu quarto, antes dela, dormiu uma desconhecida atriz de cinema. Eu mesma, neste lugar que se tornou minha casa e na qual quase nunca tenho tempo de residir, se não fosse por essa digressão, dei-me conta de uma linha espectral inscrita na biografia não contada do imóvel. Foi construído por um homem nos anos cinquenta, que trabalhava consertando bicicletas da cidade, aqui também moravam seus dois filhos e sua esposa; muitos móveis e utensílios permaneceram desde então. Numa dessas tardes, me deparei com um bule de chá em um esconderijo do armário que nunca havia visto; não sei por que a visão do objeto me fez pensar no trabalho duro de limpeza e cuidado que as mulheres exerciam nesta casa, claramente por mais obrigação do que por vontade. Depois, confirmei que, ao contrário do filho, a filha não tinha autorização do pai para estudar; pelo contrário, foi forçada a ficar em casa para cozinhar, costurar e limpar. Agora que estou aqui e enquanto escrevo isto, a imagino também confinada a outro tipo de vírus letal chamado patriarcado. E quando o vento balança as cortinas que suas mãos costuraram, posso ver sua história percorrer cada um dos quartos, posso vê-la nos bordados que tem na renda branca quando a luz entra e se faz um entramado de sombras nas paredes, um cinema lento do objeto que desliza pela casa e reaviva a ressonância dos outros corpos que como eu também sonharam aqui.
A julgar pelas manifestações sensíveis que circulam nas redes ou pelas vivências em primeira pessoa, pode-se dizer que nesse aparente estado de imobilidade no qual nos mantém a pandemia, as retóricas cotidianas dos objetos na casa se fragilizam, se subjetivam até se descompor, habitando-se intensamente e tornando-se desconhecidas. Como se todo o nosso desejo de reocupar o exterior se acumulasse para provocar uma explosão de outros tipos de mobilizações internas, em um espaço mínimo compartilhado com agentes não-humanos que, de um modo ou de outro, temos decidido manter como companheiros. Esse desejo acumulado faz aparecer uma energia insubmissa, derivada de uma maior posse de nosso tempo, que configura um espaço emocional alternativo, que afeta os supostos equilíbrios táticos, táteis, manipuladores, que sustentam a ideia de casa. Tudo o que é tocado pode gerar uma dúvida que desautomatiza a coreografia cotidiana das coisas. Perguntas que nos questionam de que maneira forjamos uma raiz no espaço do dia a dia, onde, como e por que é que começa a intimidade dessa raiz.
Por outro lado, o equilíbrio tático dado entre corpo, objetos e espaço sofre em si um corte transversal nesta época, resultante do medo e das políticas da imunidade. Recentemente, a escritora mexicana Cristina Rivera Garza disse em Del verbo tocar: las manos de pandemia y las preguntas que a consciência do tátil como veículo de contágio do vírus, como pulsão de morte, deixou-nos mais alertas do fato em si, de tocar: “A rematerizalização de nossos mundos em tempos de desacelaração obriga a perguntas que são políticas em seu cerne: quem tocou isto que eu agora toco? Que é outra maneira de perguntar: de onde vem, quem o produziu, em que condições de trabalho ou salubridade se construiu isso que vem até as minhas mãos, com que quantidade de vírus”[2]. Ela também pôs essas perguntas para os tecidos que forjamos com nossas coisas no espaço doméstico. Sem dúvida esta consciência tátil provocada pelo vírus reabre um campo indagatório nas relações subjetivas com nossa cultura material em época de distanciamento. Ainda veremos como sobrevive em nós a pregunta “Quem tocou isso que eu toco?”, uma vez curado o episódio pandêmico, e continuemos nosso percurso de auto-exploração laboral. Além disso, o texto de Cristina deu outro giro nos pensamentos que compõem esta escrita, a partir do uso da palavra “rematerialização”. Pareceu-me um termo ressonante, com o qual nomear, conter, os registros íntimos objetuais que havia percebido nesses dias. Uma rematerialização sentida no momento sob as três matizes que mencionava acima, que são variações de uma intimidade material emergente: a subversão das disposições, o inconsciente material e o inconsciente habitacional. Todos eles compartilham o fato de serem aparições surgidas durante o sobressalto de podermos recuperar o tempo de nossa vida, mas sem poder sair de nossas casas. As nuances da rematerialização são infinitas, e melhor ainda incalculáveis, porque caso se quisesse traçar sua antropologia, veríamos como seus significados mudam ao se adentrar as condições socioeconômicas entre uma casa e outra. Sem esquecer que teríamos que abordar desde outra perspectiva a suposta intimidade emergente naqueles que não têm uma casa.
Se registro essas linhas de percepção é também por que me resultam indissociáveis das práticas artísticas especializadas em pesquisar as interdependências com o inanimado, como o teatro de objetos ou o teatro de objetos documentais (TOD). Esses fazeres encontram sua substância na digressão do comportamento social até os funcionamentos matéricos, na captura e estudo da diferença e no desvio dentro de suas naturalizações. São práticas que já se dedicam a construir estados contínuos de exceção entre humanos e não-humanos. Por isso, não é tão raro que alguns aspectos da rematerializalção do espaço doméstico durante o confinamento se assemelhem aos fundamentos criativos do teatro de objetos e do TOD: a descoberta do tempo do objeto (que não é igual ao do humano) e por consequência a desacelaração perceptiva frente ao entorno material, o encontro de uma quebra na manipulação habitual das coisas para nos aproximar de outra sensibilidade tátil, o afastamento das distribuições familiares; descobrir as formas objetuais, que sempre existiram, como se fosse a primeira vez, a pergunta sobre a memória contida naquilo que se toca no espaço que se habita, “empequenar-se” como uma garota, como um garoto para voltar a ler outras fortalezas vitais, metafóricas, nos relevos que fornecem nossos mundos. Não é minha intenção traçar um paralelismo despolitizado, mas não posso evitar que minha imaginação e meus afetos estejam localizados em como habitamos nossas casas durante esses dias para pensar futuros espaços de interseção com os teatros de objetos em devir. A rematerialização traz à luz em nós um sentimento de intimidade distinto com nosso entorno material direto, que talvez desconhecíamos, que apenas podemos nomear, e que não sabemos que marcas deixará em nossa consciência para quando possamos voltar a estar juntos em espaços comuns.
Shaday Larios é uma pesquisadora mexicana de teatro de objetos. É Doutora em Artes Cênicas e diretora de Microscopía Teatro desde 2004, onde investiga a matéria, a memória, os móveis, os brinquedos e a pequena escala. Atualmente trabalha em projetos de teatro de objetos documentais em associação com Jomi Oligor (Oligor Microscopía), e ambos, junto a Xavi Bobés, tem empreendido um processo de objetologia e realidade, chamado El Solar del Estraperlo.
Gyl Giffony é artista da Inquieta Cia e doutorando em Artes da Cena (Unicamp). Realiza trabalhos com artes vivas, memória social, gestão, produção e direitos culturais.
Yenny Agudelo é atriz, dramaturga e pesquisadora. Mestre em Dramaturgia na Universidade Nacional de Arte (UNA), Buenos Aires, e em Artes da Cena, pela Unicamp. Desenvolve pesquisas em dramaturgia feminina latino-americana.
Notas:
[1] Apud. Georges Didi-Huberman. Sublevaciones, Eduntref, Buenos Aires, 2017, p. 92.
[2] https://www.revistadelauniversidad.mx/articles/6428d816-f2cf-420d-977e-c9c0f8fc7427/del-verbo-tocar-las-manos-de-la-pandemia-y-las-preguntas-inescapables
Foto em destaque: Gyl Giffony.