Da (minha) impossibilidade em escrever sobre espectáculos: do quotidiano, da memória e do amor

Crítica de Osmarina Pernambuco não consegue esquecer, de Keli Freitas

16 de abril de 2020 Críticas

Não é de agora, mas tenho cada vez mais dificuldade em escrever sobre espectáculos. Tenho cada vez mais dificuldade em traduzir para palavras a experiência de vida que um espectáculo inspira. Dou por mim sem capacidade (vontade? generosidade?) para articular raciocínio sobre o que acabou de me acontecer. Penso: o espectáculo já me aconteceu. Tudo o resto é memória e cemitério. Tudo o resto é já parte de mim. Não há exercício analítico de memória, seja ela episódica ou semântica, feliz ou infeliz, perene ou transiente, que me consiga resgatar as horas de tráfego autopoiético entre o meu corpo e a cena. É coisa acabada. E bem. É assim que deve ser. Penso.

Dito isto, não vem desta (minha) impossibilidade grande mal ao mundo. São coisas cá minhas – que nem sequer vêm ao caso.

Confessava esta minha inaptidão porque o espectáculo Osmarina Pernambuco não consegue esquecer, de Keli Freitas, estreado no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, em Novembro de 2019, agudiza ainda mais esta minha disfunção. Nunca, como espectador, vivi um espectáculo desta forma. Nunca, como espectador, um espectáculo me atravessou a vida de montante a jusante como este me atravessou a mim. Já vira e escrevera antes sobre trabalhos criados a partir de textos que conhecia muito bem; já vira e escrevera sobre espectáculos em que amigos queridos participavam, quer como autores, encenadores ou intérpretes; já vira e escrevera sobre obras que ressoavam na minha própria biografia. Mas, nunca assim.

O texto Osmarina Pernambuco não consegue esquecer foi escrito durante a terceira edição do Laboratório de Escrita para Teatro do Teatro Nacional D. Maria II, que orientei, de Outubro de 2017 a Junho de 2018, sob o tema “O quotidiano do homem comum e outras coisas sem importância”. Assim, com os restantes participantes do laboratório, assisti na primeira fila ao “achamento” do texto, das palavras certas, das pausas, das ideias… Fui espectador privilegiado das muitas inflexões, abordagens, inquéritos, debates, opiniões, certezas, reescritas, piadas, desabados, desistências, parágrafos abandonados, insistências, teimosias, leituras, guinadas, desesperos, alegrias, reescritas; e depois, a mais inflexões, abordagens, inquéritos, debates, opiniões, certezas, reescritas, piadas, desabados, desistências, parágrafos abandonados, insistências, teimosias, leituras, guinadas, desesperos, alegrias, reescritas… enfim, de tudo aquilo que faz parte da escrita de um texto para teatro.

Nos nove meses de gestação do texto – a duração desde laboratório de escrita – fui criando uma amizade com a Keli, uma amizade de braço dado, de fraternidade a toda a prova. Entretanto, juntos, já chorámos amores, lamentámos políticas, cozinhámos alegres, co-dirigimos a quarta edição do laboratório de escrita, discutimos muito teatro e, até, escrevemos juntos. Por tudo isto, se já andava com dificuldades em escrever sobre espectáculos…

Creio, claro e contudo, que este conjunto de circunstâncias dificilmente se repetirá. Mas que reforça a minha incapacidade em escrever sobre espectáculos, reforça.

Foto: Filipe Ferreira.
Foto: Filipe Ferreira.

Osmarina Pernambuco não consegue esquecer é um texto escrito a partir dos diários da pernambucana Maria Leopoldina Félix Pinheiro da Silva, nascida em 1919 – a quem, aliás, o espectáculo é dedicado. Maria Leopoldina, a Osmarina Pernambuco do título, terá vivido uma vida semelhante a muitas outras mulheres do seu tempo e condição, lutando incessantemente incessantemente incessantemente contra a falta de dinheiro, a precariedade social, as doenças dos filhos, a volatilidade masculina… Uma vida como muitas outras (se quiséssemos acrescentar um comentário desnecessariamente moralista).

Contudo, Osmarina Pernambuco atravessou a vida de forma singular: “não tinha nenhuma síndrome rara da memória [como o título parece querer dar a entender], mas escreveu diários a sua vida inteira”. Todos os dias, anotando as mais singulares, minúsculas, mínimas ocorrências da vida. Listas infindas de momentos, de caras, de compras, em suma, dos microscópicos episódios da sua vida. Todos os dias, na imensa banalidade de uma vida como as outras, descobria gestas épicas – dignas de registo e de memória. Em rigor, o texto de Keli Freitas é um enorme palimpsesto, composto em cima dos diários reais de Maria Leopoldina Félix Pinheiro da Silva, sendo que “todas as entradas de diário contidas no texto são de sua autoria e guardam fidelidade à sua escrita original”, tal como avisa a autora no programa do espectáculo. (Com efeito, estes diários que fascinavam a autora desde, pelo menos, 2014, ocuparam grande parte da bagagem da dramaturga e actriz carioca quando aterrou em Portugal para a sua aventura lisboeta – um gesto provavelmente premonitório de alguém que se ocupava em não esquecer de onde partira… ousaria eu especular: “[d]esde meu primeiro contato com a existência de seus cadernos [escreve Keli Freitas], em 2014, fulminaram-me o fascínio, o espanto e a decisão de não permitir que estes registos se encerrassem no esquecimento”.)

A singular relação com o mundo de Maria Felix (Osmarina) catapulta Keli Freitas para o universo da memória.

[l]embrei-me imediatamente daquela que ficou conhecida como a mulher que não consegue esquecer. Assisti a uma reportagem sobre ela na televisão e nunca mais a esqueci. A mulher que não consegue esquecer chama-se Jill Price. Americana nascida em 1965, Jill Price entrou para a história da neurociência como o primeiro ser humano desprovido da capacidade de esquecer. Não é nenhum gênio da matemática ou da física, registra funcionamento normal de todos os outros aspectos do seu intelecto, exceto este: é capaz de lembrar, em detalhes, cada momento de cada dia que viveu. Se alguém diz, por exemplo, uma data qualquer, Jill Price vê aquele dia diante dos seus olhos outra vez: que dia da semana era, que dia do mês, como estava o tempo naquele dia, o que tinha comido, a roupa que vestia, o que havia feito, os objetos que se encontravam sobre a mesa da sala de jantar.

E, de lembrança em lembrança, o puzzle mnemónico vai-se compondo. E, sub-repticiamente, o gesto auto-referencial que o texto – e depois o espectáculo – comporta, vai-se deixando entrever. Assim, vai ficando cada vez mais claro que Osmarina Pernambuco não consegue esquecer, para além do gesto de amor e homenagem à mulher citada no título, é também uma elaborada reflexão sobre a matéria primeira do próprio teatro: a memória (e lembrávamo-nos aqui do “teatro como uma máquina da memória”, de Marvin Carlson – The Haunted Stage: The Theatre as Memory Machine, 2003). Assim, Keli Freitas, dando voz à única personagem do texto (“Alguém decidido a não esquecer Osmarina Pernambuco”) vai convocando, de forma ora bem-humorada ora grave, a constante relação do actor com a memória: a memória como instrumento de trabalho consubstanciada na recorrente tarefa de memorizar textos e/ou movimentos; e a memória como património colectivo entre artistas e espectadores, activado a cada espectáculo.

Não é, dito isto, um tratado epistemológico sobre a memória. Mas é, sim, um trabalho que, para além de inteligente e perspicaz, é de uma graciosa auto-paródia, discorrendo sobre o trabalho do actor e louvando as mais extravagantes insignificâncias que compõem os nossos quotidianos.

Osmarina Pernambuco… estreia no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, na Sala de Cenografia, um espaço raramente usado como espaço de apresentação de espectáculos (porque é, isso mesmo, uma sala de cenografia, onde se guardam cenários, adereços e figurinos de espectáculos passados…). O cenário de Osmarina… coabitava, assim, com uma multidão silenciosa de muitos outros espectáculos que ali descansavam, imóveis. E, dado o universo semântico de Osmarina…, o diálogo mudo que ali era criado (entre as palavras ali ditas e os “palcos assombrados” que aqueles objectos ali indiciavam) não era inocente. Antes ampliava os fluxos de memória que o trabalho suscitava.

Em cena, um dispositivo cénico de tremenda simplicidade (de Elsa Romero): uma secretária com uma máquina de costura e uma estante onde se dispunham vários objectos decorativos que iam ilustrando algumas referências textuais (antigos ferros de passar a roupa, napperons, cabides e cruzetas, brinquedos, animais em miniatura, malas, balanças, um globo terrestre, colheres de cozinha, etc.…). O efeito era o de uma viagem no tempo e pela reminiscência de tempos idos. Este dispositivo albergava as divagações da actriz (Keli Freitas) que ora assumia uma atitude de uma narradora dialogante e empática, ora “encarnava” Osmarina. Nunca perdendo graciosidade nem nunca caindo numa gravidade ou solenidade exagerada, o jogo era (sobretudo) o de uma mestre-de-cerimónias que zelava pela boa viagem dos espectadores. Mas esta estratégia de distanciamento permitia também ir estabelecendo uma dialética entre interpretação e comentário que em tudo ajudava à ampliação da dramaturgia do espectáculo e tornava mais explícitas as excursões discursivas sobre a memória.

Foto: Filipe Ferreira.
Foto: Filipe Ferreira.

De pulsão arquivista, fascinado pelo real, pela memória e pelas discretas epopeias do quotidiano, este espectáculo convoca um formato muito em voga em alguma da criação teatral contemporânea – o do teatro documental – para o ir desfiando, desafiando e decompondo, em cada gesto emprestando humanidade, afecto e inteligência. Desde o carinho com que a figura Osmarina Pernambuco é retratada, do jogo auto-paródico com o trabalho do actor, das recriações de exercícios mnemónicos, até à revisão do formato de um teatro alicerçado em torno de documentos reais, Osmarina Pernambuco… é um trabalho sem tempo e sem geografia. É, ao mesmo tempo, o trabalho de uma artista carioca em Lisboa sobre o Brasil que deixou para trás e o de uma jovem dramaturga sobre uma mulher que nasceu há cem anos; mas é também um trabalho que visita os mais comuns denominadores da experiência humana: o magnífico quotidiano e aquilo que guardamos intimamente dos nossos dias.

Dito isto, e escrevendo quase cinco meses depois de assistir pela primeira vez ao espectáculo, exercitando a minha memória, lutando contra o esquecimento e contra o arrumo semântico que a minha própria memória vai fazendo, a recordação que guardo – que quero guardar – é a de uma comovente humanidade e amor a quem nos acompanha na vida:

Na última página de seu último diário, a 4 de Junho de 2014, escreveu:

“Meio-dia. Dia bonito.
Céu azul. Sol brando.
Alexandre está dormindo.
Yara foi caminhar.
Estamos assistindo televisão.
Agora são 16 horas.
Yara me deu café com uma fatia de bolo.
‘No mundo tereis aflições’— disse o senhor Jesus Cristo”.

O resto é memória e cemitério, acho.

Rui Pina Coelho é Professor Auxiliar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Dirige a Sinais de Cena – Revista de estudos de teatro e artes performativas, desde 2015. Como autor, dramaturgista ou tradutor colabora regularmente, desde 2010, com o TEP – Teatro Experimental do Porto.

Foto em destaque: Filipe Ferreira.

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