A restituição ao visível pela fabulação do real
Crítica da peça Real – Teatro de Revista Política, do Grupo Espanca!
Vol. IX, nº 67 abril de 2016 :: Baixar edição completa em PDF
Resumo: Este artigo propõe que se pense o espetáculo Real – Teatro de Revista Política como concretização de um projeto estético-político do grupo mineiro Espanca! de enfrentamento mais direto com a realidade sociopolítica brasileira, a partir da análise das quatro peças curtas que compõem a obra, considerando relações entre o real, a fábula e a alteridade.
Palavras-chave: alteridade, Espanca!, fábula, real
Resumen: Este artículo propone que se piense el espectáculo Real – Teatro de Revista Política como concretización del proyecto estético y político del grupo Espanca!, de Minas Gerais, en confrontación más directa con la realidad social y política brasileña, com basis en el análisis de las cuatro piezas cortas que componen la obra teniendo en cuenta las relaciones entre lo real, la fábula y la alteridad.
Palabras clave: alteridad, Espanca!, fábula, real
Na trajetória de um grupo de teatro longevo, as flutuações de seus integrantes tendem a gerar instabilidades criativas. E estas podem enfraquecer o trabalho coletivo, como tantas vezes já vimos ocorrer quando um elemento-chave – por vezes o de maior responsabilidade pelo desenho estético das obras daquele grupo de artistas, ou seu fator coagulante – desliga-se dos demais e toma rumo distinto, independente. Entretanto, como é também da instabilidade que vem o movimento, tais mudanças estruturais podem pavimentar todo um novo caminho artístico autônomo, que se descole das realizações do passado, no sentido de não se tornar tributário dos próprios feitos, mas as tenha como base propulsora para novas jornadas e ambições estético-políticas.
Falo de modo geral para abordar um caso específico: o do grupo Espanca!, há mais de dez anos ativo na cidade de Belo Horizonte (MG). Período em que passou por mudanças significativas de formação, com a saída dos atores Paulo Azevedo e Samira Ávila, a aproximação de novos colaboradores eventuais, o afastamento da diretora, dramaturga e atriz Grace Passô após O Líquido Tátil e a recente passagem do ator Alexandre de Sena de colaborador a integrante fixo. Em 2013, em meio a essas reconfigurações, a cena curta Onde Está o Amarildo?[1] apontou um redirecionamento dos interesses artísticos do grupo para um tratamento mais direto de questões vinculadas à realidade social do país, num diálogo frontal com os acontecimentos no tempo presente. Respostas artísticas à violência das cidades, com a qual ficou cara a cara desde que abriu a porta da sede à rua Aarão Reis, no baixo centro belo-horizontino, ao lado do Viaduto Santa Tereza e da Praça da Estação, palcos de grande parte das manifestações político-culturais dos últimos anos na capital mineira. Dentre elas, a Praia da Estação, os duelos de MC’s e outras iniciativas críticas de reapropriação do cenário urbano pela população. Impactado por esse movimento, o Teatro Espanca! abriu editais para acolher uma diversidade maior de linguagens artísticas, incluindo as periféricas, em sua programação.
Embora o comentário social já estivesse presente desde Por Elise, e mais diretamente nos argumentos de Congresso Internacional do Medo, Marcha para Zenturo e Dente de Leão (primeiro espetáculo do Espanca! após a saída de Grace, escrito por Assis Benevenuto), o enfrentamento com outras realidades e as mudanças na composição do grupo culminaria numa transformação do seu projeto artístico, no que se refere aos modos de elaboração do real a partir de casos concretos e específicos – algo que “Onde Está o Amarildo?” já antecipava. Daí a recuperação da expressão que subintitula o novo trabalho, Real – Teatro de Revista Política, estreado em novembro de 2015. À época áurea do Teatro de Revista, o palco era espaço para uma revisão crítica dos acontecimentos recentes que impactavam a sociedade. Com a popularização da radiodifusão nos anos 1930, essa função migrou para as ondas radiofônicas. Hoje, nos estertores da era da imprensa em papel, quando dominam os meios de comunicação digitais, o teatro mostra-se novamente espaço privilegiado para retratar criticamente a realidade recente numa experiência coletiva em convívio.
Real – Teatro de Revista Política traz a força do específico com toda sua concretude, sobre a qual se projeta o que houver de universal na tragédia humana. O quadro traçado nesse projeto ambicioso, realizado por meio do programa Rumos Itaú Cultural, compõe-se de quatro janelas para o mundo, inicialmente avistadas por dramaturgos convidados pelo grupo a escreverem a partir de episódios noticiados no passado recente brasileiro. Diogo Liberano (Teatro Inominável, Rio de Janeiro) enfrentou o linchamento de uma mulher; Roberto Alvim (Club Noir, São Paulo), o motorista que atropelou um ciclista e jogou o braço dele num rio; Byron O’Neill (Cia. 5 Cabeças, Belo Horizonte), a greve dos garis após o carnaval carioca; e Marcio Abreu (Cia. Brasileira, Curitiba/Rio), uma chacina praticada por policiais no Complexo da Maré. Há, ainda, um texto encomendado a Leonardo Moreira (Cia. Hiato, São Paulo) sobre a carta de suicídio Guarani-Kaiowá, que foi adiado para uma segunda etapa, ainda por estrear, revelando talvez os limites exequíveis de um projeto complexo, que depende da confluência de muitas mentes criativas.
Os riscos do texto por encomenda: de os dramaturgos não se mobilizarem pelos temas propostos; das vozes plurais e dissonantes; dos desencontros; o Espanca! enfrentou-os com perdas mínimas, reconfiguradas na sala de ensaio até que as quatro peças formassem um mecanismo interdependente, mas também de autonomias individuais, que crescem ao serem colocadas em relação umas com as outras.
A fábula, tão cara ao grupo nos seus primeiros dez anos, ganha então outros aspectos, formas e consequências. Está lá na medida em que o real é reimaginado: no jogo entre as crianças e o pai de Inquérito; nos homens-bonecos do tribunal de O Todo e as Partes. A metáfora, igualmente, faz-se presente, transformada, nos ecos da maré de Marcio Abreu ou nos corpos de Parada Serpentina; e a metonímia estrutura a peça escrita por Roberto Alvim. Esse tratamento poético da linguagem, contudo, mesmo ao fundar um mundo outro, mantém o vínculo com o real diretamente reconhecível. Por outro lado, o fato de cada uma dessas histórias potencialmente ser de conhecimento prévio dos espectadores – ainda que a cobertura jornalística tenha sido falha – acrescenta um peso histórico e humano à experiência teatral, modifica os seus modos de percepção, adiciona informações de fora ao horizonte de expectativas de cada um, prevendo um compromisso ético e uma vontade política no projeto teatral.
O procedimento de criar dramaturgias a partir de notícias de jornal não é inédito; o mais notável no projeto do Espanca! é como traz à visibilidade o presente ou o passado recente e as forças que atuam agora na sociedade. As escolhas dos “fatos” depõem sobre as preocupações políticas de uma geração que já não isola a arte, compreende que autonomia diverge de separação, pois transita entre esferas de ação sobre o mundo: a política das ruas e a dos teatros, a estética das ruas e a dos teatros. Distintas, porém em diálogo. Através do recorte noticioso engendrado pelo grupo mineiro, atravessam questões relativas à ocupação e mobilidade urbana, à violência policial e à violência como contágio coletivo, aos direitos das comunidades periféricas e das comunidades indígenas, à força de resistência de indivíduos e conjuntos humanos. Essas histórias encenadas têm impacto e relevância distinto para nós, seus contemporâneos, do que terão em dez, vinte, cinquenta anos se até lá sobreviverem; e é possível que sobrevivam, porque as relações humanas motoras dos acontecimentos tendem a se perpetuar se reinventando.
O real, então, aparece como gesto de ir ao encontro do outro social. Especialmente porque as histórias envolvem camadas da sociedade recorrentemente desfavorecidas tanto nas ruas quanto nas páginas de jornais, onde mantêm-se muitas vezes ocultadas, não nomeadas, destituídas do direito a uma narrativa própria. Não se está a fazer o teatro de revista da corte, dos nobres, dos políticos, das celebridades. Nesse sentido, o recurso ao real abre a possibilidade da restituição não de um acontecimento (o que seria impossível – como Diogo Liberano brada no texto de Inquérito), mas de uma dívida de invisibilidade. Para tanto, é necessário buscar uma coerência entre a realidade e sua representação, compreendendo que coerência não se confunde com reprodução exata; diz, antes, dos sentidos apreensíveis e partilháveis pela forma-discurso. Diante disso, o Espanca! reconfigura o que se possa compreender por teatro político contemporâneo (por caminho distinto ao do grupo paulista Tablado de Arruar, outro a assumir a empreitada de elaborar teatralmente a história recente do Brasil, em Abnegação II) e encontra novos direcionamentos artísticos apropriados às inquietações da sua composição atual e ao contexto presente do país.
Não cabe neste artigo uma reflexão extensiva sobre as implicações do real – ou quais seriam as formas do real – no teatro[2]. O que nos interessa, aqui, é constatar a “abertura ao mundo”, identificável com o projeto estético de outros artistas de teatro que operam na zona limiar do real e do ficcional. Ao comentar a ascensão do cinema documental, o crítico e teórico espanhol José António Sánchez aponta que “os excessos da cultura do simulacro produziram uma urgência por recuperar o princípio de realidade, sem por isso renunciar aos jogos de ficção tanto no âmbito da prática artística como no da ação social e política” (SÁNCHEZ, 2012, p. 15). Essa afirmação, que corresponde à segunda metade do século XX, quando Jean Baudrillard escrevia Cultura e Simulacro (1977), uma década após Guy Debord ter publicado sua crítica à Sociedade do Espetáculo (1967), pode ser transposta para a atualidade considerando a expansão da espetacularização e das formas de simulacro. Apesar de a assimilação da realidade dentro da cultura contemporânea frequentemente dar-se por meio de reality shows e da consequente sensacionalização do real, concordamos com Sánchez que “as perversões de um meio ou de um gênero não podem ser suficientes para desqualificar tudo o que se produz nele” (SÁNHEZ, 2012, p. 17).
O caminho seguido pelo Espanca! o comprova. Identifica-se à necessidade de um “retorno ao real” que apela “ao entrecruzamento entre o social e o artístico, acentuando a implicação ética do artista”, conforme proposto pela pesquisadora mexicana Ileana Diéguez Caballero (CABELLERO, 2011, p. 45). No artigo Experiências do Real no Teatro, a pesquisadora brasileira Sílvia Fernandes também constata, como uma das premissas do retorno ao real, essa “investigação das realidades sociais do outro e a interrogação dos muitos territórios da alteridade e da exclusão social no país” (FERNANDES, 2013, p. 6). O projeto do “Real – Teatro de Revista Política” responde a semelhantes inquietações sem que haja uma ruptura com a representação nem a renúncia aos jogos de ficção. A representação não é superada, mas posta em crise, com furos, esgarçamentos e a exposição dos processos e artifícios, de modo a estimular no espectador a reflexão sobre as escolhas – e o próprio caráter de “escolha”, que não concebe a arte como espelho do real, mas construção a partir da e na realidade. Cada notícia se veste de fábula diante dos olhos de espectadores; e estes mantêm, no horizonte de suas expectativas, a relação com o real tanto como resquício do processo criativo do espetáculo quanto como fim, propósito, finalidade.
Quando destaco o caráter específico dos acontecimentos noticiados e tomados pela ficção do teatro no espetáculo, o faço pela relação entre o particular e o universal, operação que encontra ressonância no jogo que há em Real entre as partes e o todo. O Todo e as Partes, a propósito, é o título da peça assinada por Roberto Alvim, segunda na sequência de quatro peças curtas independentes em tema, forma, linguagem, estética; mas entre as quais se produzem ecos e reiterações que proporcionam, no cruzamento das experiências, um mais além do que a princípio é tangível: a impossibilidade da explicação da violência, do trauma, da morte; o questionamento das formas de justiça concebíveis; o silêncio que resta.
É importante observar que o Espanca! não trabalha na encenação com estratégias do teatro documental; o real não está anexado à cena enquanto materialidade; a investigação da realidade social do outro não se faz pelo documento nem pelo depoimento, mas, sim, pelo corpo do ator que experimenta o lugar do outro sem deixar de ser aquele primeiro corpo, ciente de que outra alternativa seria impossível. Tal centralidade do corpo nas experiências de reconhecimento do real no teatro é reiterada por Sánchez:
Qualquer tentativa de recuperação do real passa pela afirmação do corpo. O corpo do ator constitui o limite da representação: o ator pode fingir ser outro mediante a palavra ou o mascaramento visual, mas não pode desprender-se do seu corpo, não pode fingir ser outro corpo. (SÁNCHEZ, 2012, p. 322)
Seja na tensão entre os gêneros do corpo do ator e do personagem, em Inquérito, nos ruídos visuais deixados pela manipulação do braço mecânico, em O Todo e as Partes, nas formas residuais que o conjunto de corpos de Parada Serpentina assume ou no emprego inusual do ritmo do corpo/voz (a prosódia) em Maré, os corpos dos atores são postos em evidência em Real, somando à ficção uma consciência da realidade mesma do ator em cena.
Em seu livro Prácticas de lo Real em La Escena Contemporánea, Sánchez descreve ainda dois extremos do projeto realista no teatro. O primeiro extremo é o que reconhece o outro representado enquanto identidade objetiva externa, a prescindir de uma subjetividade. O segundo parte da experiência do autor/ator para construir a complexidade do outro, prescindindo da alteridade. O artista, neste caso, “deixando-se levar pela compaixão, crê poder identificar-se com o ser que representa, reduzindo-o assim a alguém que o próprio autor – o ator – pode controlar” (SÁNCHEZ, 2012, p. 329). Ou seja: ou o outro não tem subjetividade ou a subjetividade é apresentada sem considerar a alteridade – o fato de que não se é o outro, portanto, não se pode sentir por ele.
Desencaixado desses extremos, o Espanca! propõe subjetividades sugeridas, fragmentadas, incompletas, nubladas, sem pretensão de controle, de delimitações ou de dar conta da realidade da vida e dos sentimentos de alguém. Com suas interconexões e com suas lacunas, reafirmam deliberadamente os limites da representação. Inquérito, a primeira das quatro peças, estabelece essa ética de uma consciência compartilhada entre palco e plateia sobre a impossibilidade de ser o outro ao prover a personagem Fabiane de consciência sobre a condição de ausência irreversível da Fabiane real.
Escrito por Diogo Liberano, o texto guarda uma curiosa proximidade com Por Elise e Amores Surdos, os dois primeiros trabalhos do Espanca!, na configuração familiar dos personagens, marcados por uma ausência, e no modo como um deles dialoga com o público. A falta, aqui, é a da mãe, esta mesma que – à semelhança da vizinha de Por Elise e do filho sonâmbulo de Amores Surdos – confidencia à plateia algo inapreensível pelos que estão em cena. A atriz Glaucia Vandeveld assume essa mediação entre a ficção construída e a presença real dos atores/ espectadores em convívio, sendo ela mesma o ponto de síntese entre o real – a mulher morta em um linchamento – e a fábula – o fantasma dessa mulher:
O FANTASMA – Já faz mais de um ano que eu morri e, desde então, é como se minha família não soubesse como continuar. Eu estou morta agora, mas mesmo assim, estou aqui conversando com vocês. Isso não é necessariamente bruxaria ou coisa incapaz de se explicar: isso é teatro e, como tal, isto aqui é só uma possibilidade. Eu sei que vocês podem me ver. Eu sinto. E tudo isso eu apenas sei porque estou morta.
(…) Se hoje é só assim que eu posso existir, por que não existir assim, da única forma que me é possível? (LIBERANO, 2015).
Como o Fantasma diz, o teatro em Inquérito (e em Real) é o lugar daquilo que é impossível no mundo real. A persistência da mãe morta ao lado da família é apenas um desses impossíveis concretizados numa peça curta de terror. Mas a atriz também afirma que nunca será Fabiane, nunca será aquela mãe. A morte, conforme nos lembra Sánchez, instaura o furo da ficção e o limite do (ir)representável:
A morte do outro provoca o efeito da incredulidade, a sensação de que vivemos um pesadelo, uma ficção distinta da ficção que habitamos cotidianamente. E esse choque de ficções é o indício do real, a morte como acontecimento irreversível, a morte como furo na ficção: furo na ficção de quem mantém a vida, limite insondável de quem cumpre aí o seu destino (SÁNCHEZ, 2012, p. 173).
Embora fure a ficção, a morte nunca será senão artificial no teatro – é possível performar quase qualquer coisa, menos a morte. A única coisa real no palco é o nome de Fabiane Maria de Jesus, a única capaz de não trair seu referente. Ainda assim, é somente traída por uma representação que nunca a restituirá que sua história encontra lugar no mundo, e a consciência dessa contradição é partilhada com o público de modo que este se torne também responsável pelo acontecimento teatral.
Diogo Liberano apresenta o palco como espaço de jogo, literalmente. O que move a ação entre pai (Alexandre de Sena) e filhas é uma brincadeira de perguntas e respostas proposta pela mais velha, um jogo que permite criar um interstício no cotidiano daquela família, onde se possa dizer o que realmente importa, e que emula a violência sofrida pela mãe, como forma de catarse e de tentativa de dar sentido ao que, para as crianças e o adulto, é incompreensível. O dramaturgo escreve sobre a perda e o luto como quem conhece seus engenhos e os modos como afeta um núcleo familiar. Faz da repetição insistente de uma pergunta supostamente simples – por quê? – a constatação do absurdo. O específico é transcendido então para a universalidade do problema da violência urbana, e mais, para a finitude, a perda e o insondável da fúria humana.
Vem do texto o jogo entre o ingênuo e o agressivo, manifestos nas tensões entre o infantil e o adulto, e concomitantes na brincadeira de “linchar” (ou “brincadeira” de linchar?). A encenação, dirigida por Gustavo Bones, potencializa essa possibilidade ao colocar dois atores adultos (Assis Benevenuto e Marcelo Castro) para representar as duas filhas. Acima das questões de gênero – embora também presentes –, essa operação ressalta a consciência do jogo dentro do jogo (que é o teatro); além disso, gera um distanciamento que conduz o espectador a uma zona de oscilação entre razão e emoção. E, principalmente, permite uma modulação de tons desde a doçura da pequena dormindo no colo do pai até a explosão de agressividade num grito grave de Marcelo quando a menina é contrariada, confrontando o público com os extremos do temperamento humano e com a violência sempre à espreita.
Essas modulações de energia variável criam um ritmo de afetos determinante para a experiência que Inquérito proporciona, e que culmina na exacerbação da agressividade pela ação de uma espécie de coro de linchadores, formado com os atores/dançarinos Allyson Amaral e Leandro Belilo. O acontecimento teatral nunca afeta do mesmo modo cada espectador, a depender dos fatores mais diversos possíveis, desde a história pessoal ao lugar que ocupa na plateia, porém, é justo dizer que àqueles que sentirem nos pés as vibrações provenientes do espancamento com almofadas, Inquérito atinge, além de racional e emocionalmente, como um atravessamento físico, sensorial, do qual não se sai ileso. É um trabalho complexo e completo em si mesmo, ao mesmo tempo em que se abre a articulações com as três proposições artísticas que o seguem.
O Todo e as Partes, ao seu modo, responde o “por quê?” que as filhas de Inquérito repetiam à exaustão. “Mas não há, não há motivos!”, diz em refrão poético o texto de Roberto Alvim, escrito como uma recusa à busca de sentido e, concomitantemente, uma investigação de fundo filosófico e tratamento alegórico sobre a justiça e natureza da violência.
Ainda que haja essa reverberação, texto e cena assumem formas autônomas e contrastantes em relação ao que se viu na primeira peça. Norteadora do projeto teatral de Alvim, a recusa à lógica cultural instaura um tempo e um espaço suspensos, de estranhamento, em que a redução da luz e do movimento redirecionam a atenção para presenças mórbidas que se manifestam primordialmente pela musicalidade das palavras. Como bem descreveu Luiz Fernando Ramos acerca do trabalho do diretor do Club Noir, “o espaço e a matéria escura que ele contém fundem-se ao campo sonoro das enunciações vocais” (SÁNCHEZ, 2015, p. 238). Daí surge uma aparência de morte, como talvez quisera Kantor, uma cena-artifício construída e controlada, como almejava Craig, para citar duas referências reconhecidas por Alvim.
O que há por trás de todas estas idéias (de kleist, craig, maeterlink e kantor)? (…) se o ator carrega para o espaço da cena a construção cultural que chamamos de EU (…), então, sim, este ator macula, conspurca o espaço do teatro, ÚNICA seara em que se pode trabalhar com lógicas distintas da lógica cultural. é preciso alienar os atores – mas aliená-los do que? do “si mesmo” cultural, que só trabalha por hábito, por condicionamento, reverberando (inadvertidamente) o senso comum, as formas e idéias estabelecidas, reconhecíveis [sic] (ALVIM, 2012.Acessado:http://www.primeirosinal.com.br/artigos/dram%C3%A1ticas-do-transumano-sobre-os-atores).
Os modos de subjetivação das “dramáticas do transumano” propostas por Alvim, e comentadas no trecho acima quanto ao que se refere ao trabalho do ator, transpõem as palavras por ele escritas e contaminam a cena. Mas o fazem de uma forma distinta das soluções que o dramaturgo do Club Noir emprega em suas encenações. O Todos e as Partes encontra no trabalho sombrio de direção de Eduardo Félix[3] com a manipulação de bonecos um meio ótimo para o desenvolvimento dessa dimensão transumana, em que a emoção do ator recua diante da paixão violenta da prótese-braço, objeto da operação metonímica anunciada desde o título. O espaço do teatro é então habitado pelas estranhezas das palavras emitidas pelos atores e da dança performada pela parte manipulada. Esse descolamento do cultural reconhecível, por meio do artifício teatral, sobrepõe uma contraface mais abstrata, racional e excêntrica ao quadro do Real.
Parada Serpentina vem redefinir outra vez os códigos de linguagem sobre o palco e estabelecer para o espectador de Real a necessidade de uma fluência entre modos de elaboração cênica, convocando outras formas de percepção e relação com o que se apresenta. Por razões que somente uma crítica genética do processo criativo poderia alcançar, o texto encomendado a Byron O’Neill resultou em fragmentos disparadores de uma criação no campo da dança, que conjuga a desconstrução coreográfica contemporânea à força contagiante do Passinho. Este traz consigo um índice do real (outro são os figurinos à semelhança da Praia da Estação) como gênero popular geralmente mantido fora de espaços legitimados da arte e com o qual os corpos de parte dos atores-bailarinos demonstram pouca familiaridade.
A configuração desses corpos, em si, é definidora da estética e da ética da cena, na medida em que se misturam fisicalidades esculpidas pela dança contemporânea ou pela dança de rua – e outras estranhas a ambas. O domínio técnico, ainda que evidenciado em momentos específicos, não é o foco do trabalho, mas, sim, a possibilidade de construção de uma coreopolítica – conceito desenvolvido por André Lepecki e que, segundo o grupo afirmou em uma rede social, “chegou como uma bússola na nossa criação”. No início do artigo Coreopolítica e Coreopolícia, lido pelo grupo em sala de ensaio, o pesquisador indaga:
Podem a dança e a cidade refazer o espaço de circulação numa coreopolítica que afirme um movimento para uma outra vida, mais alegre, potente, humanizada e menos reprodutora de uma cinética insuportavelmente cansativa, se bem que agitada e com certeza espetacular? (LEPECKI, 2011, p. 49)
A esta pergunta, o Espanca! responde com uma performance dos corpos enquanto formas políticas em movimento, a figurar o lixo acumulado durante a greve de garis e a metaforizar o “lixo” humano em condições de vida precárias. Corpos que oscilam da energia vital pulsante da dança de rua ao tombamento dos corpos-detritos, para, enfim, redescobrirem a potência do humano na interação, no coletivo e no indivíduo. Conforme já foi dito pela crítica Soraya Belusi, faz-se “uma revolução dos e pelos corpos, em que a carnavalização e motins/montinhos são formas de desestabilizar, problematizar e reconfigurar o urbano e seus sujeitos” (BELUSI, 2016). Assim, Parada Serpentina traz ao quadro do Real uma experiência de outra ordem – predominantemente sensória e cinética – e uma esperança frente às tragédias urbanas concretizada num gesto de mobilização/revolução popular.
Por fim, Maré retoma o olhar sobre um núcleo familiar, a violência, a infância e a morte, dando relevo ao medo e ao espanto diante do horror. O texto foi escrito por Marcio Abreu como um fluxo de vozes de três gerações de uma família, soltas de pontuações, maiúsculas ou demais organizações gramaticais. Palavras indomadas, uma massa textual à qual coube ao Espanca! atribuir contornos e modulações, tal como Abreu havia ele mesmo feito anteriormente em Isso te interessa?[4]. Do texto de Noëlle Renaud, ecoa também o modo como algumas sentenças corriqueiras, quando repetidas, parecem dar conta da dimensão mais complexa de uma vida. Aquilo que há de indizível escapa como sugestão entre as frestas do banal e se instaura como afeto: eis o poder da linguagem quando performada poeticamente.
A forma cênica encontrada pelo Espanca! para a peça, sob a direção de Marcelo Castro, desvia da confusão vocal que a possibilidade de concomitância das falas provocaria. Em vez disso, sobrepõem-se as camadas de vozes no espaço e no tempo. A prosódia musical estranhada, a subverter as fronteiras das frases, envolve a banalidade do relato em uma atmosfera sensível; e a repetição opera como uma estratégia de reforço e de propagação, aumentando o peso das palavras a cada vez que são proferidas.
Num palco de dimensões restritas, como são as das casas nas comunidades dos morros cariocas, a avó (Glaucia) é a primeira a narrar a história, numa descrição realista de minúcias e afetos do cotidiano bruscamente interrompida pelas reações sensoriais a uma rajada de tiros. Depois, vem a mãe, as crianças, e cada uma que se cala se soma a um cenário desolado a assombrar o que virá com a consciência prévia da tragédia, até a chegada do pai, último a recontá-la melodicamente, vítima direta dela. “Um pedaço de carne”, “um vermelho”, “um quente”. Tantas vezes ouvidas ao longo das narrativas, essas palavras carregam um acúmulo de densidade ao serem ditas pela última vez por Alexandre de Sena. Explodem em sentidos, trazendo ao “Real” a sensorialidade e as emoções da morte como materialidade no tempo dilatado dos instantes.
Longe de uma estética exploratória da pobreza, de privar o outro de subjetividade ou de ignorar a alteridade, o que se constrói pela estetização é um dos gestos primordiais da arte: fazer do ordinário extraordinário, atraindo e reinaugurando o olhar sobre ele. Tendo a empatia como ética, a ficção torna-se a estratégia para tocar o real. Reconhecer o outro em sua humanidade: um vermelho, um quente, um pedaço de carne – como nós. Reconhecer o comum. A finalidade idealmente compartilhada entre palco e plateia é a do impulso à transformação social motivada pela afetação sensível e pela restituição ao visível.
Referências bibliográficas:
ALVIM, Roberto. Dramáticas do Transumano sobre os Atores, 2012. Disponível em: http://www.primeirosinal.com.br/artigos/dram%C3%A1ticas-do-transumano-sobre-os-atores Acesso em 14 de fevereiro de 2016.
BELUSI, Soraya. Violentamente Poético, 2016. Disponível em: http://www.horizontedacena.com/violentamente-poetico/ Acesso em 14 de fevereiro de 2016.
CABALLERO, Ileana Dieguez. Cenários Liminares: teatralidades, performances e política. Uberlândia: EDUFU, 2011.
LEPECKI, André. Coreopolítica e Coreopolícia. Revista Ilha, v. 13, n. 1, p. 41-60, jan./jun. Tisch School of the Arts, New York University, EUA, (2011) 2012.
RAMOS, Luiz Fernando. Mimesis Performativa. A margem de invenção possível. São Paulo: Annablume, 2015.
SÁNCHEZ, J. A. Prácticas de lo Real em la Escena Contemporánea. México: Toma, Paso de Gato, 2012.
Luciana Eastwood Romagnolli: Jornalista, crítica de teatro, mestre em Artes pela EBA/UFMG (2013) e doutoranda em Artes Cênicas pela ECA/USP. Cofundadora e editora do site horizontedacena.com e integrante da DocumentaCena – Plataforma de Crítica. Coordenadora de Crítica do Janela de Dramaturgia. Foi curadora da ocupação Conexões na Funarte-MG, em 2015, em parceria com Soraya Belusi.
Notas:
[1]Cena apresentada no 14º Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, criada em referência ao desaparecimento do ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza, após ser detido por policiais militares que o buscaram em sua casa, na Rocinha.
[2] Sobre o tema, ver o dossiê “Teatros do Real: Memórias, Autobiografias e Documentos em Cena”, publicado pela revista Sala Preta, v. 13, n. 2 (2013), disponível em: http://www.revistas.usp.br/salapreta/issue/view/5242
[3] Diretor do grupo mineiro Pigmalião Escultura que Mexe, com o qual o Espanca! planeja seu próximo trabalho.
[4] Espetáculo da Companhia Brasileira com texto igualmente deslimitado da autora francesa Noëlle Renaude.