Reconstruções em Mamãe

Crítica da peça Mamãe, de Álamo Facó

25 de abril de 2016 Críticas

Vol. IX, nº 67 abril de 2016 :: Baixar edição completa em PDF

Resumo: Provocado pela noção psicanalítica de construção, este ensaio crítico debaterá questões dramatúrgicas, clínicas e políticas na peça Mamãe, de Álamo Facó.

Palavras-chave: dramaturgia, clínica, política, reconstrução

Sommaire: Déclenché par la notion psychanalytique de construction, cet essai critique discutera des questions dramaturgiques, cliniques et politiques dans la pièce Mamãe, de Álamo Facó.

Mots-clés: dramaturgie, clinique, politique, reconstruction

 

“Seu trabalho de construção, ou se preferir, de reconstrução assemelha-se muito à escavação, feita por um arqueólogo, de alguma morada que foi destruída e soterrada (…)”

Sigmund Freud, Construções em análise. 

Em Construções em Análise, texto escrito em 1937, Freud questiona-se acerca da posição do analista no trabalho psicanalítico: enquanto o analisando é levado a lembrar-se de algo que foi por ele experimentado e recalcado, qual seria a tarefa do analista? A conclusão, segundo Freud, é que o analista deve completar aquilo que foi esquecido pelo analisando, mais precisamente, construí-lo. Nesse sentido, a tarefa do analista não é apenas realizar interpretações mas, de fato, em encontro com o analisando realizar uma construção ou uma reconstrução.

Mas assim como um arqueólogo ergue as paredes do prédio a partir dos alicerces que permanecem de pé, determina o número e a posição das colunas pelas depressões no chão e reconstrói as decorações e as pinturas murais a partir dos restos encontrados nos escombros, assim também o analista procede quando extrai suas inferências a partir dos fragmentos de lembranças, das associações e do comportamento do sujeito em análise. Ambos [analista e analisando] possuem direito indiscutido a reconstruir por meio da suplementação e da combinação dos restos que sobrevivam (FREUD, 1996, p. 276).

Essa tarefa de reconstrução, atribuída por Freud, é ponto de abertura conceitual para pensar algumas questões levantadas por Álamo Facó, na criação de seu solo Mamãe. A reconstrução cênica proposta por Facó, em Mamãe, de uma de suas lembranças mais pungentes abre campos de discussões dramatúrgicas, clínicas e políticas. Tentarei aqui refletir a partir desses pontos.

 

Clínica e Dramaturgia

Mamãe é um solo com texto e atuação de Álamo Facó, que também assina a direção em parceria com Cesar Augusto. A peça estreou na Sala Multiuso do Espaço SESC, em Dezembro de 2015, e seguiu em cartaz no Espaço Cultural Sergio Porto, durante o mês de Janeiro de 2016. Mamãe narra os últimos dias de vida de Marta/ Marpe Facó, diagnosticada com um tumor cerebral, e sua relação com seu filho, Lázaro/ Álamo Facó.

Assim como Talvez[1], solo escrito e com atuação de Facó, dirigido por Cesar Augusto, que estreou em 2008, Mamãe também flerta com uma tendência dominante na literatura contemporânea nomeada como autoficção[2]. A peça estrutura-se a partir de uma multiplicidade de jogos miméticos que tensionam as fronteiras entre as figuras históricas de Álamo e Marpe Facó e as figuras ficcionais de Lázaro e Marta, respectivamente.

Quando solicitei a Facó o texto escrito da peça para que esse ensaio pudesse reconstruir criticamente a cena de Mamãe, ele retirou de sua mochila um volume de papéis marcados a canetas de diferentes cores, com imagens, rasuras, notas manuscritas e me disse: “Esse é o único texto. Eu o reescrevo a cada dia. Por isso, não posso lhe dar.” Claro que se tratava de brincadeira e provocação de Facó. Existe sim um texto, que se repete a cada apresentação, escrito por Facó, no qual poderíamos destacar, por exemplo, em sua construção, traquejos de roteiro cinematográfico. Mas não gostaria de tratar disso aqui. Interessa-me pensar nessa qualidade única do texto a que ele, mesmo em tom de brincadeira, se refere. Interessa-me pensar de que modo os sentidos dispostos em seu texto se intensificam e se diversificam, através de uma dramaturgia construída instantaneamente por meio da sua presença e do encontro vivo e imediato com o público – termos esses tão caros às artes performáticas.

É o dramaturgo quem atua? Ou o ator quem escreve? Mamãe concebe a escritura como presença cênica. Não há separação. Através do dramaturgo mostra-se o ator, e através do ator mostra-se o dramaturgo. Escritura e atuação se constroem em Mamãe indissociáveis, atravessadas pela intempestividade da sua presença que joga com os limites entre vida e ficção, palavra escrita e palavra falada, superfície-papel e superfície-cena. As palavras do texto expandem seu campo de sentido ao se materializarem no timbre de voz único de Facó; suas imagens poéticas são eletrizadas em cena pelas intensas tonalidades de estados afetivos alcançados em sua performance. O valor em questão da dramaturgia de Facó é desvelar a intimidade de seu passado através da atualidade de seu corpo e presença singulares.

Mas a dramaturgia em Mamãe é também uma clínica. Diante da dor impensável de um filho que perde a mãe, nas condições apresentadas na peça, e do suposto fracasso existencial – a que todos nós estamos submetidos – frente à inexorabilidade da morte, Facó encontra uma saída e uma saúde: reconstruir esteticamente sua maior ferida existencial como gesto dramatúrgico único e, então, repeti-lo e compartilhá-lo com o público. O aspecto clínico de Mamãe assemelha-se à tarefa do analista a que se refere Freud: uma vez incitadas as lembranças de um passado, o que se há de fazer? Interpretar apenas não é suficiente. O que está em jogo em Mamãe é a tarefa de reconstrução.

O suposto fracasso existencial de Lázaro, devastado pela violência do câncer no cérebro de sua mãe e impedido pela instituição médica de experimentar terapias alternativas que a livrassem de seu mal, reverte-se nessa reconstrução. Álamo não salva sua mãe da morte. Álamo não descobre uma cura para o seu câncer. Mamãe reconstrói uma saúde, ou melhor, um outro modelo de saúde para além dos manuais, protocolos e estatísticas do saber médico.

Somos seres despreparados e incapazes de suportar a morte. A linguagem escapa, não há cognição capaz de significá-la. E aqui se apresenta mais um ponto do gesto clínico de Mamãe: Facó desloca os escombros da sua experiência vivida na esfera pessoal para o mundo e, agora, a dor do filho Lázaro/Álamo já não é mais apenas sua – é também a dor de todos nós, é também a dor de todo o mundo. A morte é testemunhada como um bem comum. Esse processo se dá não apenas pela identificação direta, em que o público espelha-se e vislumbra sua própria ferida existencial, suas mortes e suas dores pessoais, através da trajetória singular de Lázaro. Haveria antes uma experiência empática, pré-reflexiva, pré-individual, em que a morte enquanto ato comum, transforma o público em uma comunidade que chora, expurga o pus de suas feridas pessoais e transmuta a dor privada em dor de todo mundo. E agora, estamos prontos para a vida.

Diante da morte, não esperamos salvação, e nem mesmo uma cura. Mas, uma outra saúde. Outro corpo. Outra vida.

 

Políticas de Mamãe

Qual é o destino que as experiências relacionadas à morte possuem em nossa cultura? Confinamos a experiência da morte aos “asilos” hospitalares das unidades de terapia intensiva. Apartamos de nosso campo de visibilidade cotidiana os pacientes terminais e com eles toda a fantasmagoria da morte que os cerca e nos assombra. Pode-se dizer, então, que as experiências relacionadas à morte são apartadas e destinam-se apenas ao limbo do esquecimento, em uma cultura que apenas valoriza a força ativa do trabalho e sua produção de riqueza? Não.

Tais experiências estão inseridas dentro de uma rentável cadeia comercial que inclui, por exemplo, umas das indústrias com maior faturamento no mundo: a farmacêutica. Na captura do saber-instituição médica a morte é patologizada. Não morremos naturalmente. Nossa morte é fabricada. Como ignorar que as experiências relacionadas à morte ocupem função estratégica dentro da perversa máquina de concentração de riquezas do capitalismo?

A arquiteta Marta/Marpe Facó é diagnosticada com um violento tumor no cérebro, glioblastoma multiforme, e falece cem dias depois deixando três filhos. Lázaro/ Álamo revolta-se contra as estruturas de saber-poder médicos que destituem sua mãe da condição de sujeito tornando-a objeto da frieza de seus procedimentos técnicos. Lázaro questiona-se: “A pergunta não deveria ser que doença essa pessoa tem, mas sim, que pessoa essa doença tem?” Aqui, ironicamente, a questão deixa de ser – como sobreviver a um câncer? –, e passa a ser – como sobreviver a um hospital? Do mesmo modo que a medicina é capaz de salvar vidas (justiça seja feita!), ela também é capaz de devastá-las.

Facó denuncia todo um aparato institucional de captura – nos termos foucautianos – biopolítica[3]. Trata-se então de criar linhas de fuga à clausura mortificante das salas de terapias intensivas, o massacre de sucessivos exames e a brutalidade das intervenções cirúrgicas. Torna-se urgente resistir não apenas contra as células cancerígenas que se voltam contra o próprio organismo de sua mãe, mas, sobretudo, contra as organizações de poder que tentam sufocar os últimos sopros de vida de Marpe/Marta.

Não se trata aqui de uma recusa à morte. As políticas de Mamãe denunciam e se recusam a se submeter ao poder da instituição médica capaz de determinar soberanamente o modo “científico” e “verdadeiro” de como Marpe/Marta deve morrer.

Apesar das tentativas de assujeitamento institucional, apesar da ferida inexorável da morte, Álamo/Lázaro quer tornar a experiência de morte da sua mãe bela e poética. Essa é sua tarefa clínica e, ao mesmo tempo, política: reconstruir uma realidade no ponto onde, supostamente, suas lembranças fracassam e, assim, reinventar outras lembranças. Trata-se de criar um ritual que estetize a ferida existencial da morte; trata-se de criar uma experiência pulsante de vida eternizando-a no tempo de duração de sua peça e na memória de seu público.

 

Reconstruções e assombrações

Superfície esquecida. Arqueólogo solitário penetra em estreito túnel de pedras para uma escavação vertical. Ele persegue uma pesquisa que atinja níveis arcaicos. Os feixes de luz que atravessam a poeira suspensa, pouco a pouco, perdem seu brilho e indicam que o ar já não é suficiente; são como fios frágeis que levam a uma superfície cada vez mais distante, sucessivamente, interrompidos pelo terror de uma sombra vertiginosa que se quer inalterada. Pronto: tornou-se inalterada. Escuridão abissal. Arqueólogo solitário quer voltar à superfície, mas agora já não é mais possível. Um passo em falso, no tempo da vertigem, o chão se tornará teto e teto não resistirá ao desmaio. Então, ele chegará. Seja bem vindo ao cérebro!

Álamo quer penetrar no cérebro corroído pelo câncer de sua mãe para que uma outra clínica, uma outra saúde atue contra esse mal. Mas, para isso, terá que penetrar na labirinto vertiginoso de seu próprio cérebro e reconstruir as ruínas afetivas de uma cidade arrasada por uma catástrofe natural. Destemor ou empáfia talvez? Não importa: não se sabe muito bem que espécie de heroísmo o possui. Em meio à aventura, Álamo se dá conta de que não penetra apenas em seu próprio cérebro ou no cérebro de sua mãe. Mas, através de um misterioso circuito elétrico de redes empáticas e terminações nervosas, Álamo descobre que penetra num santuário místico, o cérebro-múndi: o cérebro de todos nós.

Escavar lembranças. Reconstruir ruínas. O tempo dessa reconstrução se pretende ausente e assombroso. Nas palavras de Maurice Blanchot:

O tempo da ausência de tempo não é dialético. Nele o que se manifesta é o fato de que nada aparece, o ser está no fundo da ausência de ser, que é quando nada existe, que deixa de ser quando existe algo: como se somente existissem seres através da perda do ser, quando ser falta. A inversão que, na ausência de tempo, nos devolve constantemente à presença da ausência, mas a essa presença como ausência, à ausência como afirmação de si mesma, afirmação em que nada se afirma, em que nada deixa de afirmar-se, na flagelação do indefinido, esse movimento não é dialético (BLANCHOT, 2011, p. 22).

Quem é o personagem ausente em Mamãe? Quem é a ausência que ser quer presente? O solo é estruturado através de uma relação dialógica entre dois personagens, o filho Lázaro e Marta, sua mãe. Em cena, Álamo alterna-se entre os dois criando o efeito de uma ausência permanente: Lázaro debruça-se sobre uma maca de hospital, composta por algumas cadeiras de policarbonato laranjas conforme a cenografia de Bia Junqueira, para falar com sua mãe, mas ali só há fumaça. Não há ninguém. Lázaro fala com o invisível. Materializa-se em cena a ausência fantasmática de sua mãe: ver o que não pode ser visto.

Esse é um ponto importante a se destacar: o território onde se erguem essas reconstruções é difuso, nebuloso e ambíguo. Desde Talvez, como o próprio título sugere, Facó já realizara uma incursão nesse território nebuloso entre vida e ficção. Em Mamãe a proposta se radicaliza ainda mais. De fato, não importam os fatos. No território pouco delimitado da reconstrução afirmar um espaço fora da ficção é o mesmo que afirmar a vida após a morte. É uma questão de crença. Não sabemos. Impossível afirmar. E dessa impossibilidade disparam-se ficções, em que erguem-se, destroem-se e reconstroem-se narrativas como as de Mamãe.

 

Referências bibliográficas:

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rocco: Rio de Janeiro, 2011.

FREUD, Sigmund. Obras completas. Vol.XXIII. Imago: Rio de Janeiro, 1996.

 

Recomendações de leituras:

DOUBROVSKY, Serge. Fils. Paris : Gallimard, 1977.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

 

Pedro Kosovski é dramaturgo, ator, professor e diretor teatral. Formou-se em Psicologia na PUC-Rio, onde também concluiu o mestrado em Psicologia Clínica. É professor do Teatro O Tablado e, em 2005, fundou em parceria com o diretor Marco André Nunes a Aquela Cia. de Teatro, núcleo de criação teatral sediado no Rio de Janeiro.

 

Notas:

[1] A peça Talvez narra a trajetória do jovem Dário obcecado pela namorada Rita, que partiu em viagem para os Andes. Dario decide trancar-se no apartamento e isolar-se do mundo até que sua namorada retorne. O intento aparentemente comum do protagonista apaixonado, na realidade, acaba por deflagrar um surto psicótico.

[2] No final da década de 70, o escritor Serge Doubrovsky concebe esse neologismo. O conceito de autoficção tem sido, desde então, amplamente debatido nos estudos literários, sobretudo, da língua francesa.

[3] Termo concebido na fase final da obra do pensador francês Michel Foucault, que aponta o modo no qual o poder tende a se modificar na passagem do século XIX para o século XX. Esse conceito ganha destaque no debate contemporâneo a partir do uso e das interpretações propostas pelo filósofo italiano Giorgio Agamben.

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