Crítica de artista ou O crítico ignorante 7 anos depois

25 de abril de 2016 Estudos

Vol. IX, nº 67 abril de 2016 :: Baixar edição completa em PDF

Resumo: O ensaio propõe a prática de uma crítica de artista como resposta ao mal-estar da mediação, tendo em vista a conhecida insatisfação dos artistas para com a crítica. A proposta se relaciona com as ideias do livro O crítico ignorante, da própria autora, do ensaio de Max Bense O ensaio e sua prosa, de O ensaio como forma de Theodor Adorno, e especialmente de Sobre a essência e a forma do ensaio: uma carta a Leo Popper de Georg Lukács, bem como do livro Altas literaturas de Leila Perrone-Moisés, e sugere a troca de ensaios epistolares entre artistas, por uma escrita da crítica amorosamente contemporânea ao teatro do seu tempo.

Palavras-chave: crítica de artista, crítico ignorante, ensaio epistolar

Abstract: This essay proposes the practice of an artist’s critic as an answer to the malaise of mediation, considering the very well known dissatisfaction of artists to criticism. The propposal is related to the book O crítico ignorante (The Ignorant Critic), by the author of this paper, Max Bense’s On the Essay and its Prose, The Essay as Form by Theodor Adorno, and specially On the Essence and Form of the Essay: A Letter to Leo Popper, by Georg Lukács, as well as the book by Leila Perrone-Moisés Altas literaturas (High Literatures). It suggests the exchange of epistolary essays among artists, as a way to a critical writing which is lovingly contemporary to the theatre of its time.

Keywords: artist’s critic, ignorant critic, epistolary essay

 

What would you think if I sang out of tune?
Would you stand up and walk out on me?
Lend me your ears and I’ll sing you a song
And I’ll try not to sing out of key
Oh, I get by with a little help from my friends
I get high with a little help from my friends
Gonna try with a little help from my friends

Paul McCartney

 

Este ensaio foi escrito com a escuta de vários amigos.

 

A reflexão desenvolvida no meu livro O crítico ignorante partiu de um desejo de enfrentar os paradoxos da atividade crítica. O livro apresenta emparelhamentos de ideias para colocar essas ideias em teste e a partir daí tentar pensar uma abordagem criativa da crítica.

O primeiro paradoxo que proponho para a crítica é o saber. O saber é fundamental para a crítica mas, mal usado, pode ser o seu calcanhar de Aquiles. Um pharmakon, um remédio que também é um veneno. O mestre ignorante, livro de Jacques Rancière que foi o disparador para a pesquisa, trata da lida com o saber no processo de transmissão de saberes. Sabemos que a função da crítica não é a transmissão de um saber. Mas a proposta de forçar um emparelhamento entre a pedagogia e a crítica funcionou como exercício teórico para uma reflexão sobre a lida com o outro quando há uma pressuposição de distância. Assim como há distância estabelecida entre professor e aluno, há uma distância estabelecida entre crítico e leitor/espectador. A pergunta que fazemos para esse paradoxo (o saber como problema) é como manejar o saber sem colocá-lo como elemento de uma distância ou chancela de autoridade.

A reflexão sobre O crítico ignorante caminha para a ideia de uma crítica de artista. Pensando sobre o grupo de críticos que se consolidou como a equipe que atualmente escreve com regularidade para a Questão de Crítica, revista da qual sou idealizadora e editora, me dei conta de que somos todos artistas. O nosso ponto de vista, o nosso olhar é um olhar de artista.

Em agosto de 2015, participei de um colóquio de crítica no festival Cena Contemporânea, em Brasília. O colóquio foi uma proposta da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, uma iniciativa de quatro casas virtuais, a Questão de Crítica, do Rio, o Teatrojornal, de São Paulo, o Horizonte da Cena, de Belo Horizonte, e o Satisfeita, Yolanda? do Recife. Para esse colóquio, propusemos que uma das mesas abordasse a ideia de uma crítica de artista, que penso como um desdobramento do livro O crítico ignorante – e penso que a analogia continua em franco diálogo com as ideias que Rancière expõe em O mestre ignorante. O artista pode ser um bom exemplo de crítico ignorante, na medida em que entre artistas a fala deve ser entre iguais. A questão do O ensaio como forma também é parte determinante desse recorte sobre a ideia de um crítico ignorante e de uma crítica de artista.

Devo esclarecer que, mesmo na condição de crítica de teatro e, aliás, principalmente por me encontrar na condição de crítica de teatro, na prática constante da crítica de teatro, não deixo de ver a crítica como problema e como um problema específico da relação entre o público de teatro e o teatro no Rio de Janeiro, cidade onde vivo e trabalho. Nunca deixei de lado o ponto de vista do artista, que sempre foi e vai continuar sendo o meu ponto de partida. Trabalho como artista, produzo como artista e faço crítica como artista. Esse pensamento que apresento aqui é uma tentativa de entender e – por que não? – celebrar esse lugar de promiscuidade entre crítica e criação, meio esquizofrênico, que algumas vezes parece inconciliável, mas que na maior parte do tempo, pelo menos no meu projeto de crítica e no meu projeto de artista, faz todo o sentido. Esta é, portanto, uma proposição prática para uma ideia de trânsito entre arte e crítica. E uma provocação. E um convite.

Apresento algumas palavras retiradas de O ensaio e sua prosa do filósofo alemão Max Bense, publicado pela primeira vez em 1947, traduzido para o português por Samuel Titan Jr e publicado apenas muito recentemente no n°16 da Revista Serrote.

Não seria bom que os poetas e os escritores se exprimissem de vez em quando sobre o seu material, suas criações, sobre prosa, poesia, fragmentos, versos e frases? Creio que daí poderia surgir uma teoria respeitável, no âmbito da qual o processo estético se apresentaria não apenas como fruto da criação, mas também como fruto da reflexão sobre a criação. Além do mais, tal teoria teria a vantagem de ser de origem ao mesmo tempo racional e empírica. (BENSE, 2014, s/p)

O que me interessa na ideia de um crítico ignorante é a vontade de questionar o hábito da separação entre os fazeres, dizeres e saberes sobre o teatro, separação que acredito ser inócua ou por outro lado nociva para a relação entre público, obra e artista. Nesse regime de separação, os artistas delegam aos críticos (acadêmicos ou jornalistas) o discurso sobre o teatro. Não só sobre o teatro que fazem, mas sobre o teatro que pensam e, consequentemente, delegam a palavra sobre o teatro que desejam – como se o fazer por si só pudesse dar conta de tudo. É claro que existem artistas que têm uma produção teórica, mas trata-se de exceção.

Na Questão de Crítica, temos desde a sua fundação em 2008, uma seção intitulada “processos” pensada como um espaço para que os artistas de teatro escrevam sobre as suas criações. Infelizmente, durante oito anos só conseguimos pouco mais de vinte textos, ou seja, 3 ou 4 textos por ano – e a maior parte dos artistas que publicaram esses textos são ligados de certo modo à atividade acadêmica. E não foi por falta de convite, nem mesmo de insistência. É sabido que artistas que não estão nas universidades têm dificuldades para escrever sobre o próprio trabalho – ou sequer têm o desejo de fazê-lo.

Talvez isso se dê também porque há uma cultura geral no teatro (não sei se é o caso de dizer “no teatro carioca” especificamente) de medo da mediação. Parece que somos contra a mediação, que ela é uma coisa ruim, perniciosa, que manipula ou influencia o espectador no mal sentido. Mas não existe relação pura entre espectador e obra. O ato da fruição é sempre mediado – desde a sinopse que o espectador leu antes de ir ver a peça até a reação do espectador ao lado na plateia no momento do espetáculo. Diversos fatores funcionam como filtros, mediadores – o que não impede que o espectador tenha opinião própria ou uma leitura sua, singular, da obra.

O problema com a mediação vem da parte de críticos e artistas. Já ouvi colegas críticos dizerem que só “avaliam” a peça pelo que eles viram ali na hora, que não se deixam influenciar por nenhuma entrevista ou depoimento do artista que criou a obra, nenhum texto de outro crítico, nada. Como se o humor do dia não fosse uma mediação, como se a peça anterior do mesmo grupo não formasse uma moldura a priori para a recepção daquela peça, como se todas as peças a que assistimos antes não fossem também uma mediação. Existe uma ideia de pureza possessiva da própria opinião, quase como se a opinião fosse uma criação original, uma autoria. Parece que existe um medo da palavra do outro, como se ela pudesse nos roubar a visão. É como se o discurso de um crítico sobre uma obra só pudesse ser legítimo em formato de monólogo, não em diálogo, jamais em debate.

Mas podemos ir na contramão desse mau hábito e pensar, primeiro, que o teatro não é uma coisa simples, que não está tudo dado de cara ao espectador, embora este possa perfeitamente fazer sozinho a sua aventura intelectual e afetiva com os espetáculos a que assiste. Depois podemos pensar que a mediação não é uma coisa ruim. Podemos pensar que a mediação prepara, situa, previne expectativas alheias à obra. A mediação pode ser um convite, uma forma de conquistar o espectador, seduzi-lo até, para que esteja com a cabeça aberta e veja a obra pelo que ela se propõe a ser. Além disso, a mediação prolonga a relação do espectador com a obra, faz ver de outras maneiras, abre o pensamento para o convívio com o pensamento do outro. Então podemos pensar que refletir sobre, conversar sobre, escutar o outro, argumentar e levar em consideração o argumento do outro é o que constitui uma opinião consistente e, mais além, um pensamento.

A reclamação geral sobre a crítica é que os críticos abordam as peças a partir de expectativas que não têm qualquer relação com as premissas da criação. Mais uma vez, faço a ressalva de que existem exceções, mas é preciso dizer que o quadro geral é realmente desanimador. Daí surge uma confusão entre o conceito de crítica e uma prática apressada de crítica, que é tema de outro debate. Mas o descompasso entre críticos e artistas não é nenhuma novidade. Então, por que não tomar a palavra?

Se não encontramos na crítica uma interlocução a altura ou nem mesmo satisfatória, mas ansiamos por interlocução, por que não buscar em outro lugar? O que dizer então da ideia de que um artista escreva sobre o trabalho do outro? Mas para continuar essa proposição, precisamos esclarecer um mal-entendido sobre a crítica.

Existe uma ideia geral de que crítica é sinônimo de crítica negativa e de que ter senso crítico é saber encontrar defeitos nas obras. No terceiro capítulo de O crítico ignorante, falo sobre os impulsos de censura e emancipação como polaridades na ideia de crítica. Mas parece que a censura é predominante na ideia de crítica no senso comum. Ter senso crítico é saber ver, enxergar, escutar, discernir, antes de aplicar qualquer juízo de valor ao que se vê e se escuta e se percebe. E escrever um texto crítico não é necessariamente falar mal ou falar bem, mas falar sobre – e fazer isso com coerência e clareza de visão. Na verdade, saber enxergar as qualidades pode ser bem mais difícil.

A resistência à mediação leva à tautologia (diz-se que um espetáculo é bom porque é bom) ou à tautologia metonímica – é bom porque as partes são boas: é bem dirigido, os atores são ótimos, o texto é bom, portanto o espetáculo é bom. Difícil é decupar o assombro ou o encantamento diante de uma peça que amamos. O que é que faz a peça ser boa? O que é uma boa encenação? O texto é bom em que sentido? Essas perguntas nunca têm respostas a priori, como queriam as poéticas normativas de outrora e alguns críticos da atualidade. A cada obra, essas perguntas têm que ser refeitas e respondidas caso a caso.

Assim, nos perguntamos, mais uma vez, e vamos refazer essa pergunta sempre: do que estamos falando quando falamos de crítica? Para que essa proposição faça sentido, precisamos deixar de lado a ideia do julgamento de qualidades, do juízo de valor, da valoração de desempenhos individuais e passar a entender a crítica como uma prática de reflexão e escrita sobre as formas e as ideias no teatro. Leyla Perrone-Moisés em seu livro Altas literaturas, fruto de uma extensa pesquisa sobre artistas críticos no meio literário, escreve sobre a crítica a partir deste ponto de vista:

O exercício intensivo da atividade crítica pelos escritores é uma característica da modernidade. O próprio fato de que numerosos escritores de nosso século tenham acrescentado, à sua obra poética ou ficcional, uma obra paralela de tipo teórico e crítico tem a ver com o mal-estar da avaliação. Esse exercício particular da crítica, que é a crítica literária [e que não é diferente no caso da crítica de teatro], se inscreve num contexto filosófico maior, de profanização da esfera dos valores, de valorização da subjetividade, de perda de respeito pelas autoridades legiferantes e concomitante reivindicação do livre exame e do livre-arbítrio (PERRONE-MOISÉS, 1998, p.10).

Mais uma vez, faço a ressalva de que não estamos propondo nenhuma novidade. A lista de artistas com produção crítica não é curta. No cinema, por exemplo,uma lista rápida: Alain Resnais, Andrei Tarkovski, Arthur Omar, Dziga Vertov, François Truffaut, Glauber Rocha, Jean Claude Bernardet, Jean-Louis Comolli, Jean-Luc Godard, Pier Paolo Pasolini, Robert Bresson, Serguei Eisenstein, Stan Brackhage, Thierry Kuntzel, Win Wenders, e por aí vai.

Na literatura, a questão pode ser mais simples, porque a produção crítica pode se estender sobre obras de autores de outras gerações e de outros países. No entanto os exemplos da Literatura são muito significativos. Ezra Pound e T. S. Eliot, para começo de conversa, e mais uma lista rápida: Anthony Burgess, Haroldo de Campos, Ítalo Calvino, Jorge Luiz Borges, Machado de Assis, Octavio Paz, Vargas Llosa, Vladimir Nabokov, muitos deles tradutores, o que é bastante significativo. São leitores-escritores também no sentido de leitores-escritores-críticos, para enfatizar que a crítica é também – e fundamentalmente – leitura.

Aqui recorro a outra passagem relevante da pesquisa de Leyla Perrone-Moisés para a nossa argumentação, a fim de enfatizar a importância mesma da crítica:

Não é o leitor comum (abstração que só pode concretizar-se como sombra, pela via indireta e enganadora das tiragens, das vendas ou dos documentos relativos à distribuição e ao consumo), mas sim o leitor que se torna escritor é quem define o futuro das formas e dos valores. O que leva a literatura [ou o teatro] a prosseguir sua história não são as leituras anônimas e tácitas (que têm um efeito inverificável e uma influência duvidosa, em termos estéticos), mas as leituras ativas daqueles que as prolongarão, por escrito, em novas obras. (p. 13)

Acrescento: não apenas em novas obras, mas também na repercussão e na legitimação da repercussão destas obras.

Tendo isso em vista, como delegar?

No teatro, e em alguma medida no cinema, a situação é diversa da Literatura, por conta da proximidade, do convívio. Para escrever sobre espetáculos, é preciso escrever sobre os contemporâneos vizinhos. Entra em jogo o viver junto. Como falar dos seus contemporâneos? Acredito que seja necessária uma afinidade a priori, mas que já é condição para a crítica de qualquer modo: os interlocutores precisam falar a mesma língua, precisam saber que estão falando da mesma coisa e que estão do mesmo lado, para que haja de fato uma interlocução. E é preciso falar sobre o que se conhece.

Entender o lugar de onde se fala é fundamental para a escrita da crítica. Essa consciência também pressupõe um entendimento sobre o endereçamento, por mais complexa que seja a questão. E se o lugar de fala, o ponto de partida, for também criativo? Colocamos então as perguntas: Quem escreve? Qual é o seu lugar de fala? Para quem escreve? A quem se dirige? Qual é a mira do autor da crítica? Por onde e como circula o texto? E, sobretudo, como é a forma do texto? Diante dessas perguntas, podemos chegar a respostas diversas para a pergunta “o que é a crítica?” e a procedimentos diferentes de escrita. Pensando em uma crítica de artista, como responderíamos a essas perguntas?

Quem escreve é aquele que está interessado em fazer circular o pensamento sobre aquela obra ou sobre o trabalho daqueles artistas, aquele que tem o desejo de compartilhar com qualquer um o interesse, a curiosidade, o encantamento, o assombro ou a inquietação despertada por uma peça de teatro.

O lugar de fala da crítica de artista é um lugar parcial, comprometido, autoral – o que não se confunde com uma escrita personalista e solipsista. É o lugar de quem se importa. Quem escreve é aquele que está interessado em escrever, que se sentiu motivado a escrever – podemos dizer até aquele que precisa escrever sobre aquilo que viu, porque achou importante ou porque precisa escrever para entender, precisa dar a ver o que viu. E o lugar de alguém que sabe do que está falando e que tem o que dizer. A crítica de artista pode ser uma espécie de crítica militante.

A mira do autor da crítica de artista não precisa ser o espectador. A crítica de artista se endereça ao teatro. A crítica de artista pode se endereçar aos artistas criadores da peça em questão e/ou a outros artistas. Digamos que seja uma conversa interna. Isso não impede que o texto seja lido por espectadores de teatro. Penso nas cartas trocadas entre filósofos, escritores e poetas, publicadas em edições póstumas. Quem pode dizer que os leitores desses escritores não se interessam por essas conversas internas? As cartas não são críticas, mas não podemos pensar as possíveis críticas de artista como ensaios epistolares que miram o diálogo entre amigos? A amizade, em vez de impeditivo, não pode ser justamente o terreno fértil para o diálogo franco e comprometido sobre o teatro?

A crítica de artista pode circular livremente pelas redes, em blogs e sites dos próprios grupos, de modo que os leitores interessados possam encontrar esses textos, mesmo sem querer. É preciso repensar os blogs das peças e o sites dos grupos, que geralmente são apenas informativos ou de autocelebração. O programa da peça é um excelente espaço para o artista se dirigir ao espectador, comentando suas intenções, suas prioridades, seus desejos, mediando de certa forma a relação do espectador com a peça e criando algo material que vai permanecer para além do espetáculo.

Resumindo: a crítica de artista é tudo aquilo que antigamente diziam que é errado na crítica. O que se ensinava sobre crítica era imparcialidade, distanciamento, objetividade e o endereçamento a um tal leitor médio. O leitor da crítica de artista não é alguém que tem um interesse médio pelo teatro. A crítica de artista pressupõe uma escuta tão interessada quanto a sua fala. Ao artista, não cabe pensar em um espectador/leitor como alguém com menos conhecimento ou menos interesse.


Sobre a forma do ensaio para a crítica de artista

Por fim, a forma: o ensaio. E logo essa palavra tão familiar aos artistas de teatro, ensaio. Aquela passagem de Max Bense é parte de um ensaio sobre o ensaio, como já dissemos. Diz Adorno em O ensaio como forma, outra referência indispensável para essa ideia de crítica, que o ensaio é a forma da crítica por excelência. Se pensarmos a crítica ensaística como a forma da crítica de artista por excelência, temos um bom começo. Para ilustrar de certo modo a proposta, leio outro trecho do texto de Bense:

O ensaio é uma peça de realidade em prosa que não perde de vista a poesia. Ensaio significa tentativa. Podemos bem nos perguntar se a expressão deve ser entendida no sentido de que aqui está se tentando escrever alguma coisa – isto é, no sentido em que falamos das ações do espírito e da mão – ou se o ato de escrever sobre um objeto total ou parcialmente determinado se reveste aqui do caráter de um experimento. Pode ser que ambos os sentidos sejam verdadeiros. O ensaio é expressão do modo experimental de pensar e agir, mas é igualmente expressão daquela atividade do espírito que tenta conferir contorno preciso a um objeto, dar-lhe realidade e ser. (BENSE, 2014, s/p)

E aqui precisamos fazer uma breve especulação sobre a forma do ensaio como forma artística, a partir de um ensaio muito conhecido e comentado de Georg Lukács: Sobre a essência e a forma do ensaio: uma carta a Leo Popper. A leitura prévia pode ser útil, de fato. E tão árdua quanto encantadora. Mas podemos tentar passar primeiro por essa breve mediação.

Lukács se pergunta e compartilha com o seu interlocutor a sua inquietação diante de uma reunião de ensaios: Há unidade na forma? Trata-se de uma forma autônoma? De uma forma artística? Ele conclui que nenhuma dessas perguntas responde àquela que considera essencial: O que é o ensaio? Sua proposta é afirmar, a título de exercício, a filiação do ensaio à forma artística, como se colocasse o ensaio diante de um fundo que permite pôr em destaque os pontos nevrálgicos do que seria possível definir de sua forma.

Ele chega a uma formulação que vai dar a tônica do seu argumento ao longo do texto e especialmente do trecho aqui abordado: o ensaio trata de questões da arte dirigidas à vida. A vida tem um papel fundamental no seu pensamento sobre o ensaio, é o cerne da sua convicção. Para apresentar o seu argumento, ele enumera algumas obras, partindo dos diálogos platônicos, mencionando os ensaios de Montaigne, indo da tragédia grega para o auto de moralidade medieval, passando por Dante, lembrando Goethe e Hauptmann. Mas é um trecho do Héracles de Eurípedes (para nos aproximarmos por uma referência de teatro) que Lukács escolhe para descrever, no que podemos chamar uma primeira etapa do seu ensaio.

Um ponto importante sobre o texto de Lukács – e que vem para selar nossa proposta – é que se trata de um ensaio epistolar. O endereçamento a um amigo parece ser um álibi para certa ligeireza, mas uma ligeireza apenas aparente. A fala entre amigos sustenta a convicção sem uma argumentação exaustiva. Uma convicção entre amigos é uma convicção livremente tateante, que permite a convivência entre certeza e dúvida – se for o caso. Há um pacto em jogo. Sendo amigo, o autor prevê a leitura prévia do seu interlocutor. Assim, não descreve com detalhes o seu exemplo, descreve já sob o signo da convicção, descreve a evidência do seu argumento. A carta também é sinal evidente da pessoalidade, da subjetividade – características do ensaio apontadas por Leopoldo Waizbort em seu estudo sobre Georg Simmel (WAIZBORT, 2000, p. 37-38).

No parágrafo em que expõe a questão no Héracles, a ideia de “vida” (como substantivo, verbo ou adjetivo) aparece nove vezes em vinte e oito linhas, especialmente nas últimas dez, quando a descrição desliza verticalmente para a convicção. Ele descreve o final do Héracles como uma transição para a racionalidade na obra, de uma experiência concreta em que se “vê” o que se passa com o herói para uma ausência de corporeidade nas perguntas ali colocadas. O que Lukács apresenta na sua descrição convicta é que as respostas dadas às questões suscitadas na peça não dizem respeito à experiência concreta do vivido, mas à vida abstrata, sem corporeidade. Para Lukács, uma vida deve ser tratada como a vida. Lukács critica o ponto de vista dos deuses da peça de Eurípedes porque eles não veem a vida em uma vida. O ensaísta precisa ver a vida em qualquer vida. Ele defende o endereçamento à sua corporeidade.

A vida e o corpo estão presentes também no ensaio de Starobinski, intitulado É possível definir o ensaio?, quando apresenta a relação de Montaigne com a matéria de seus ensaios (STAROBINSKI, 2011, p.17). Theodor Adorno, em O ensaio como forma, escreve que felicidade e jogo são essenciais ao ensaio (ADORNO, 2003, p.17). Podemos pensar que “jogo” diz respeito à linguagem, à forma, mas “felicidade” sem dúvida diz respeito à vida.

Pôr o Héracles em discussão serve a dois propósitos. Por um lado, a descrição da tragédia de Eurípedes suscita a discussão sobre o endereçamento das questões à corporeidade da vida, aspecto formador da noção de ensaio segundo Lukács. Por outro, o seu desfecho não-dramático, argumentativo, especulativo, espelha o impulso que anima o ensaio: a vontade de fazer perguntas sobre as coisas para a vida, sem a necessidade de chegar a uma resposta ou, ainda, diante da impossibilidade mesma de alcançar qualquer resposta. O lugar de onde se fala e aquilo que anima a fala são questões para o ensaio.

Max Bense, ao se perguntar sobre a diferença entre prosa pura e poesia pura em O ensaio e sua prosa[1], problema que para ele está muito além da questão do verso, parece ecoar a introdução de Lukács à sua teoria sobre o Héracles:

Bense: “(…) é só com grande esforço que consigo acompanhar, ao longo das obras literárias, o traço sutil da transição contínua da poesia à prosa.” (BENSE, 2013, p.169-170).

Lukács: “Uma série infinita de quase imperceptíveis transições sutis leva daqui até a literatura.” (LUKÁCS, 2014, s/p)

Lukács aponta a tragédia de Eurípedes como exemplar dessa transição – ela traz essa transição no seu interior, na sua forma: “soam perguntas aparentadas aos diálogos socráticos” (LUKÁCS, 2014, s/p). A seguir, descreve. O que ele vai chamar de não-dramático dentro da peça pode ser o ensaístico. Mas está dentro da peça. Com isso, nesse exemplo, Lukács aplica uma estratégia de convicção que inclui o problema. Ele joga com a convicção de que o ensaio pode ser visto como obra de arte (pelo menos a título de exercício): mostra o ensaístico dentro de uma obra literária fazendo a ressalva de como “o poeta” deveria lidar com a vida: o poeta pode ser Eurípedes, mas também podemos ler o trecho como o poeta – operação que ele faz com a ideia de vida – sendo poeta tanto o dramaturgo como o ensaísta. O lugar de onde se fala no ensaio é ambíguo.

Bense constrói uma argumentação que distingue, a princípio, o poeta e o escritor, a criação e a convicção, a estética e a ética, mas trai sua própria argumentação (sem com isso anular a sua coerência) quando repete o termo “sutil” nas diferenciações e espelha a questão poético/ético como “idealmente poético” e “idealmente ético”. Trata-se afinal, de distinções qualitativas: uma gradação, pontos de partida mais ou menos localizados.

Adorno, por sua vez, que escreve depois da leitura de Lukács e Bense, nota que o ensaio se diferencia da arte “tanto por seu meio específico, os conceitos, quanto por sua pretensão à verdade desprovida de aparência estética” (ADORNO, 2011, p.18) Mas também acaba por aproximar o ensaio e a arte quando diz que o ensaio ocupa um lugar entre os despropósitos (p.17) e situa a arte no âmbito da “função do que não tem função” (p.22).

Uma resposta possível às perguntas de Lukács sobre a autonomia da forma do ensaio e sua filiação à forma literária, de acordo com o pequeno recorte da exemplaridade do Héracles, e tendo em vista o diálogo aqui exposto com questões pontuais dos ensaios de Bense e Adorno, seria a pendularidade, a movimentação indecisa da agulha na régua das definições[2]. O debate sobre a crítica (enquanto ensaio) como obra de arte é fértil e controverso, mas sobretudo um posicionamento. E a resposta sobre a possibilidade da crítica (enquanto ensaio) como obra de arte só pode ser dada caso a caso – como tudo em arte depois de Duchamp.

Assim afirmamos a afinidade do ensaio com a crítica de artista, que convoca a dialética do lugar da fala com o que anima a fala. Do pensamento para a vida, passando pela poesia e pela ética, sem fincar bandeira em terra alguma. Todo território é estrangeiro para o ensaio, toda língua é segunda, toda fala é deslocamento.

A crítica de artista é um exercício de interlocução – o que deveria ser toda e qualquer crítica para começo de conversa. Um artista, criador, experiente, tem um pensamento sobre teatro, tem convicções (mesmo que porosas) sobre teatro, tem um entendimento sobre técnicas, métodos, procedimentos, estratégias. Essas ideias precisam ser arejadas, precisam circular, encontrar o outro e se pôr à prova. É preciso que haja diálogo, conversa, debate – e isso pode ser público (mesmo que de curto alcance) ao mesmo tempo que entre amigos.

Com essa proposição, que termina por aqui, me pergunto se a crítica de artista poderia nos tornar mais intensamente contemporâneos, mais amorosamente e comprometidamente contemporâneos uns dos outros.

 

Referências bibliográficas:

ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. Tradução de Jorge M. B. de Almeida. In: Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades. Ed. 34, 2003. (Coleção Espírito Crítico)

BENSE, Max. O ensaio e sua prosa. Tradução de Samuel Titan Jr. In Revista Serrote #16. Março de 2014.

LUCKÁCS, Gyorgy. Sobre a essência e a forma do ensaio: uma carta a Leo Popper. Tradução de Mario Luiz Frungillo. In Revista Serrote #18. Novembro de 2014.

WAIZBORT, Leopoldo. As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: USP Curso de Pós-Graduação em Sociologia: Ed. 34, 2000.

STAROBINSKI, Jean. É possível definir o ensaio? In: Remate de males. Campinas-SP, (31.1-2): pp. 13-24, Jan./Dez. 2011

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas literaturas – escolha e valor na obra crítica de escritores modernos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998

SMALL, Daniele Avila. O crítico ignorante – uma negociação teórica meio complicada. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015.

 

Daniele Avila Small é doutoranda em Artes Cênicas pela UNIRIO. Editora da revista eletrônica Questão de Crítica (www.questaodecritica.com.br), autora do livro O crítico ignorante – uma negociação teórica meio complicada (7Letras, 2015) e da peça Garras curvas e um canto sedutor (Cobogó, 2015).

 

Notas:

[1] O texto está disponível online no site da Revista Serrote: http://www.revistaserrote.com.br/2014/04/o-ensaio-e-sua-prosa/

[2] A imagem faz referência ao ensaio de Starobinski: “Essai, conhecido em francês desde o século XII, provem do baixo latim exagium, a balança; ensaiar deriva de exagiare, que significa pesar. Nas proximidades desse termo se encontra examen: agulha, lingueta do fiel da balança, e, por extensão, exame ponderado, controle.” (2011, p. 13).

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