A fruição desejante – notas sobre Soma e Sub-tração: territorialidades e recepção teatral, de Edélcio Mostaço
Vol. IX, nº 67 abril de 2016 :: Baixar edição completa em PDF
Resumo: O artigo apresenta o livro Soma e Sub-tração: territorialidades e recepção teatral, de Edélcio Mostaço. Investiga os modos como o autor discute e aplica os métodos da recepção teatral à luz de uma realidade específica que é a do teatro brasileiro moderno e contemporâneo, entre outros temas. E de como se insere e opera o trânsito entre diferentes gerações de críticos teatrais do país.
Palavras-chave: Recepção, Crítica,Teatro brasileiro
Abstract: The author presents the volume Soma e Sub-tração: territorialidades e recepção teatral by Edélcio Mostaço. It investigates the ways by which Mostaço discusses and applies the methods of theatrical reception in the light of an specific reality, that of the brazilian modern and contemporary theatre, among other themes, as the transit between different generations of brazilian critics.
Keywords: Reception, Criticism, Brazilian theatre
O primeiro movimento do livro de Edélcio Mostaço (Soma e Sub-tração – territorialidades e recepção teatral. São Paulo: Edusp, 2015) é um panorama do teatro brasileiro que cobre período entre o final dos anos 50 e meados da primeira década do século XXI. Uma visada que começa com os desdobramentos do primeiro modernismo e se estende à cena contemporânea. Edélcio enfatiza a década de 60 como matriz ou espaço/tempo em que se operou alteração fundamental. A nota em que toma os anos 60 como passagem paradigmática na direção de uma mudança substancial pode ser lida, pelas bordas, em outro historiador importante: Décio de Almeida Prado. Ou melhor, deve ser intuída não de uma análise feita por este, que chegasse às mesmas conclusões, mas, pode-se dizer, em uma atitude: o abandono da atividade crítica . Àquela altura o nosso maior crítico moderno justificara a saída da militância primeiro com o episódio envolvendo a atuação política dos artistas que punham-se em contraponto ao jornal O Estado de São Paulo, para o qual Décio escrevia. Mas, adiante, no balanço que se pode ler na apresentação de Exercício Findo há um argumento menos circunstancial, ligado ao caminhar objetivo da criação cênica. Que encontra eco distante agora, a posteriori e de maneira naturalmente não programada, em quadro apresentado no livro. Décio já não consegue acompanhar a produção , que começa a se diversificar em formas, gêneros e relações a ponto de desvirtuar em parte o que seria o projeto inicial do teatro moderno entre nós:
Que princípios, formulados ou encobertos, me teriam guiado? Onde fui buscar os pressupostos teóricos que me autorizavam a julgar, a indicar o que era bom e o que era mau para o teatro? Alguns deles estavam claros e me acompanharam desde os primeiros passos porque eram os da minha geração. Em resumo, direi que desejávamos: para o espetáculo, mais qualidade e mais unidade, coisas essas, ambas, a serem obtidas através do encenador (…) para o repertório, fronteiras menos acanhadas, não com a exclusão da comédia, mas com a inclusão de outros gêneros (…) Outras posições só subiram à consciência quando foram contestadas, a partir de 1969 (…) Ninguém punha em dúvida a validade ou mesmo a superioridade da palavra para transmitir ideias e emoções. Os encenadores reinavam tranquilamente sobre os intérpretes, como ditadores benévolos ou sádicos, não se falando em criação coletiva. A área da representação já se deslocava às vezes para o centro, sem se confundir, no entanto, com o público, que não incorria riscos de intrusões físicas ou agressões verbais. O espetáculo era uma representação, não uma experiência real ou cerimônia mística (PRADO, 2008, p.23).
A fala, com menções à expectativa de “unidade” e extensão lógica entre gênero textual e cena, ao reclamo a favor do textocentrismo até então reinante mas já desafiado, à emergência da cultura de grupo e, certamente, às práticas artísticas instauradas pelo Oficina, indica um teatro que começa a escapar ao crítico. E coincide com o desenho deste período de grande invenção sublinhado por Mostaço na abertura do seu livro. Momento que abarca um arco amplo de experiências estéticas:
A década de 60 configurou um decisivo entroncamento de fatores para o entendimento do teatro ainda hoje vigente. Não tivemos, desde então, em termos de dinâmica e guardando as proporções históricas, outro período equivalente quanto à expansão da criatividade e abrangência numérica do fazer teatral (…). Ao terminar, a década ostentava um vigoroso movimento cênico em decorrência das práticas e da multiplicidade de propostas estéticas em curso, que iam do realismo nacionalista à neovanguarda, compondo um leque de nuances dentro do fazer teatral. (MOSTAÇO, 2015, p. 25- 26)
Daí à pergunta: por que, no livro, estas implicações temporais, esta introdução pela via histórica interessam? O autor poderia perfeitamente começar por um texto teórico sobre recepção, o tema central. Mas, começa com um panorama histórico. Não se trata só de certa lógica esperada, qual seja, a caminhada do contexto em direção ao texto, do geral ao particular. Trata-se disto também, mas segue além. É já salvo engano parte da disposição intelectual que demarca o modo como Edélcio pensa e projeta o pensamento sobre o teatro. Disposição que tem a ver com o teatro em si mas também com as suas circunstâncias. Este é um fundamento verificável no correr da obra.
E se esta observação for factível não será difícil afirmar que o livro destrincha a seu modo aquele impasse a que chegara a crítica moderna, ampliando o repertório e lançando a ponte para alcançar, através deste instrumento que são os estudos da recepção, os métodos de pesquisa que se estabeleceram na emergência dos cursos superiores de teatro nas décadas seguintes a esta transição de época e, especialmente, nos últimos anos. Mas, não é diálogo pacífico, é construto que se levanta em mais de uma direção. Como diz o autor na apresentação, ao iluminar o título do volume:
(…) a Soma almeja individualizar, sobretudo, o corpo e seu nomadismo. Seu devir, sua instável situação nas condições de decodificação. Já a Sub-tração não aponta a supressão, mas o arrastar, a intensidade dos pequenos perceptos em circulação, algo que somente a diferença apreende longe das repetições (MOSTAÇO, 2015, p. 17).
Do que se pode intuir, então, o corpo-pensamento na deriva desejante que individualiza e (se) arrasta nos/com os objetos. E que pode perfeitamente ser tomado como bússola “instável” também para aquelas posições históricas que a obra coloca em curso – não só do ponto de vista da temporalidade propriamente dita como também da discussão, em ato, dos seus métodos de investigação.
Talvez por isso, por ter vivido parte daquela passagem geracional, Edélcio assimila, no trânsito do seu pensamento, a disposição, deliberada ou intuitiva, para a um só tempo aderir às formas atuais de análise tanto quanto em certa medida toma-las a contrapelo. Nesta dialógica entre tempos e métodos fica claro que a difusão mais sistemática das teorias do teatro entre nós e a tendência às especializações de toda natureza, se por um lado implicaram maior rigor aos estudos teatrais, por outro tendem a departamentalizar cada vez mais o conhecimento. Sem precisar discutir este assunto frontalmente (sem toma-lo como tema), Soma e Sub-tração o recupera na própria prática da escrita, ao estabelecer os liames entre teoria e quadro social. Salvo em passagens que parecem dizer respeito a circunstâncias específicas de produção ou a certo gosto por instrumentos auto referentes, próximos à semiologia (como no ótimo Entre texto e encenação), é possível perceber este olhar que pactua as estruturas possíveis de comunicação e fruição do teatro aos seus contextos próprios, que não raro ensaiam arrebentar a dita estrutura. Embora esta atitude seja a esperada diante das maneiras amplas como a Recepção se organizou e o que ela propicia enquanto disciplina, não é, efetivamente, o que temos visto quanto à sua aplicação , que por vezes tende a bastar-se no formalismo ou, na outra ponta, aos meros jogos de impressão.
Fruição e prazer
O livro é dividido (ou somado) em duas partes. Na primeira o foco é mais recortado sobre a apresentação teórico-histórica e os instrumentos da Recepção: o andar e revisão dos conceitos, suas várias frentes e pensadores angulares. É momento em que a abordagem do tema já anuncia seu escopo ao colocar em pauta o esclarecimento de um equívoco recorrente, que liga a recepção a um processo exclusivamente íntimo, de ensimesmamento, quando o fundamental, diz ele, é que “a recepção é uma dimensão individual, mas um fenômeno coletivo” (MOSTAÇO, 2015, p.48) assim como, apesar do eixo mais interessado no fruidor, “a estética da recepção é uma operação comprometida com o processo artístico” (MOSTAÇO, 2015, p.49). Ou seja, não é uma coisa ou outra. É uma coisa e outra. É uma síntese que, por didática, já corta caminho para o que interessa mais ao fundo: uma hermenêutica que tenha a ambição de não se satisfazer com parcialidades.
Os argumentos, independente do que julguemos, estão sustentados por uma articulação insuspeita entre cultura e proposições de pensamento sobre o assunto dado. Ao demonstrar, por exemplo, os termos da discussão sobre o lugar do prazer na trajetória da Recepção, o autor não evita o debate. À luz da conferência de Hans R. Jauss em 1972 (Pequena Apologia da Experiência Estética), refaz os argumentos do crítico alemão sublinhando ali o confronto indicado entre Adorno e Marx:
Após associar o cultivo do gozo, do prazer e das emoções a um desenvolvimento unicamente fetichista e regressivo, tal como é promovido pela indústria cultural, e defender a necessidade de seu exorcismo por intermédio da negatividade, Adorno se pergunta: “Se for extirpado o último vestígio de prazer, causa perplexidade a pergunta sobre a razão de existir das obras de arte?”. Sem resposta, o filósofo frankfurtiano está aqui evocando o mesmo paradoxo já fixado por Karl Marx diante das formações sociais e suas respectivas produções artísticas, nas teses sobre a interdependência entre infra e superestrutura: “A dificuldade não está em compreender que a arte grega e a epopeia estão ligadas a certas formas de desenvolvimento social. A dificuldade reside no fato de nos proporcionarem ainda um prazer estético e de terem para nós, em certos aspectos, o valor de normas e de modelos inacessíveis”. Ou seja, ele reconhece que a obra artística detém qualidades autônomas intrínsecas e mobiliza fenômenos de percepção em modo trans histórico, que a isolam e projetam em relação ao determinismo materialista e historicista, em função dos agenciamentos desencadeados quando do fenômeno da fruição (MOSTAÇO, 2015, p.52-53) .
Em outra frente, liberto de certo gosto pelas atitudes semiológicas e mais próximo talvez da filosofia da arte, Mostaço vai acompanhar as relações entre arte, ciência e teatro para introduzir as possibilidades de “uma epistemologia da pesquisa” propondo sua origem através de em um argumento relativamente simples, que o autor expõe junto ao filósofo e sociólogo Boaventura de Sousa Santos, quando dele recupera: “A ciência constrói-se contra o senso comum e para isso dispõe de atos na direção do conhecimento que são essenciais: a ruptura, a construção e a constatação” (MOSTAÇO, 2015, p. 102), para adiante arrematar:
Por possibilitar também o conhecimento é que a arte e, nela, o teatro – desfruta de parentesco com a ciência. Não representando tal parelha uma disparidade epistemológica, solidarizam-se esses dois campos da aventura humana como interfaces de um assemelhado convívio com o real – o fato de se construírem em afrontamentos ao senso comum. (MOSTAÇO, 2015, p. 107).
As notas sobre os estudos em torno do texto como centro do fenômeno espetacular e, mais à frente, os instrumentos emprestados da sociologia, antropologia, semiologia, semiótica, da antropologia teatral e da etnocenologia atestam as contribuições e dificuldades da ciência quando aplicada ao teatro. O que pede sua reabertura não pela via de um enquadramento mas segundo a sua própria rebeldia:
Esse mundo de conhecimentos, todavia, não esgota nem tem se mostrado cabal para abarcar as múltiplas facetas do fenômeno teatral, uma vez que sua especificidade resiste, a despeito da longevidade de suas práticas, à subordinação. (MOSTAÇO, 2015, p. 112).
E então percebemos o quanto esta ideia de ruptura e de afrontamento do senso comum que torna irmãos ciência e arte, faz parte de uma imaginação político-estética que também é subjacente, talvez indispensável, a estes fenômenos de recepção que o livro visita. E, indo além, de como este passa a ser um problema central não só para a recepção como também para a sociologia da arte, diante de um panorama de crescente objetualização mercantil das criações estéticas a ponto de colocá-las em posição estratégica dentro da “lógica cultural do capitalismo tardio”, como batizou Fredric Jameson (JAMESON: 2000).
Os dois ensaios centrais deste primeiro capítulo são antecedidos por aquele já citado olhar sobre o panorama brasileiro e têm sequência nos artigos sobre as relações entre texto e cena, fechando-se com o texto sobre o lugar agora retomado do espectador no teatro pós-dramático. Estas “pontas” , pode-se dizer, cumprem e dão sequência às possibilidades de um método de leitura em termos práticos. No sentido de que ali o autor já coloca em movimento, na análise histórica da cena e seus avizinhamentos disciplinares, algumas das questões apresentadas “em tese”.
Escritos Descolados
Na segunda parte do livro seguimos com a reunião de escritos antes dispersos, uma série de intervenções que mesmo sendo de naturezas diversas servem em geral à mesma orientação do início: discutir a teoria à luz da sua aplicabilidade em termos não só conceituais como também “de vida ordinária”. Os artigos perfazem um conjunto em que a autonomia relativa das partes não impede o sentido, explícito ou subliminar, do todo: a Recepção como ponto de partida e mesmo como motivo para cerrada reflexão, mas também para a investigação dos campos de várias ordens – a filosofia (a ética, a política, a estética), a sociologia e os estudos de linguagem. E quase sempre colaborando para um trançado que “re-úne” livremente saberes, naquela direção em que se cruzam análises multidisciplinares mas de fato extensivas, de acordo com a vocação do objeto.
Vista desta forma a Recepção de que o autor trata é dimensionada não apenas para verificar o que acontece quando o eixo de percepção do fenômeno artístico se desloca do criador para o fruidor, como também para dispor a teoria e a discussão estética à luz de uma experiência viva , que pode inclusive surpreender ou verificar sob novo ângulo a própria teoria. É o caso do artigo sobre o Pequeno organon, de Brecht (Brecht, o Organon da Diversão) , quando se revisita a interação entre razão e empatia, em um dos capítulos mais brilhantes do livro. Ali a aplicabilidade dos operadores conceituais é tomada sem verniz e, no entanto, com um rendimento extraordinário, a partir da famosa e já amplamente apresentada oposição entre Brecht e Aristóteles, muito discutida mas poucas vezes esmiuçada, entre nós, com tanta propriedade. Mostaço refaz o percurso histórico dos conceitos até que se chegue de volta à questão de fundo, retomando aquela proposição que intui, com razão, que o problema de Brecht é, mais que Aristóteles, as formas do aristotelismo desdobradas e desenvolvidas como poética História adentro. No caso, não é exatamente a conclusão que guarda originalidade, mas o percurso da investigação até ali, que a ilumina e a requalifica agora sob rico repertório, que passo após passo “re-argumenta” os termos do debate.
Em outra passagem, no texto sobre o “pós drama” (Um Tempo de Vida em Comum entre o Ator e o Espectador : o Teatro Pós-dramático) poderíamos dizer, seguindo o mesmo raciocínio e acompanhando certa disposição à polêmica, que Brecht se tornaria um problema para alguns, menos em função do próprio Brecht e mais por causa do brechtismo. Sobre isso, ao comentar o enraizamento entre nós das ideias do teórico Húngaro Peter Szondi nos últimos anos, assinala:
Szondi não deslindou essa equação entre teatro e drama, tomando um pelo outro, de modo que muita gente embarcou na canoa, supondo que a tal “epicização” do gênero dramático se constituiu em um estágio superior da arte cênica (…) no Brasil tal perspectiva equívoca encontrou eco nas postulações de alguns analistas recentes, como também nas teses artísticas associadas às práticas de certos coletivos teatrais paulistanos ao admitirem o épico brechtiano como um estágio artístico culminante ou a epicização de narrativas de outros períodos históricos como um patamar expressivo superior para o teatro (MOSTAÇO, 2015, p. 116-117).
Polêmicas a parte, são exemplos de como há no livro um trato ético feito com o assunto (a Recepção), no sentido de tomá-lo como coisa passível de confronto, instrumento de aproximação às diversas frentes abertas pelo autor.
Conceito e fato
Um ensaio excepcional sobre Nelson Rodrigues a partir de Toda nudez será castigada (Toda nudez será castigada?), faz a trama – rica em referências tanto quanto em profundidade analítica – que vai de Dostoievski a Proust, passando por Pirandello; e as encenações dirigidas por Cibele Forjaz para a Cia Livre e Paulo de Moraes para a Armazém Companhia de teatro. Na mesma seara das companhias há o artigo sobre as relações entre teatro e sociedade desde o trabalho do Teatro da Vertigem, em que são apresentadas as dimensões éticas do ato estético. No Vertigem se recupera o sentido político do teatro não no âmbito de demandas para uma militância específica, mas no âmbito daquilo que tem interesse público quando, vazado em soluções estéticas, está enraizado firmemente na vida social.
Neste texto sobre o grupo dirigido por Antonio Araújo há boa exemplificação dos porquês desta costura com “duplo arremate” entre teoria e acontecimento artístico, entre fatos e conceitos. Por que interessam? Primeiro porque indicam paixão desalienada pela teoria. E o que é a teoria desalienada? É aquela que gosta de objeto. O que em termos práticos quer dizer: que preza o chão firme da experiência, tanto a poética, strictu sensu, quanto a histórica, que lhe dá o contorno . E, sobretudo, que tem ponto de vista, algo que deveria ser essencial e inegociável à crítica, mas que via de regra vem sendo diluído em teses sobre a operação crítica cada vez mais próximas aos modos do relativismo.
Na sequência há outros artigos que revelam esta condição posta em trabalho na obra. São três textos que não fazem parte do seu núcleo duro, mas atestam por vias particulares os seus pressupostos.
Há dois artigos sobre experiências teatrais relativamente à margem: um é a respeito do incompreendido e pouquíssimo visitado teatro de Hilda Hilst a partir do espetáculo Hilda Hilst in Claustro, dirigido por Roberto Oliveira, em Porto Alegre. O outro é sobre a montagem Borboletas ao sol de asas magoadas, de Evelyn Ligocky. Em ambos o autor sinaliza dizendo sobre a importância das experiências de exceção , se o ponto de vista for o estético tanto quanto o da visibilidade. E, especialmente no segundo, coloca-se a tarefa de aplicar, digamos, mais deliberadamente, os instrumentos da Estética da recepção à luz de um teatro performativo.
Sem querer comparar o incomparável tanto em termos de objeto como de método, além das análises propriamente ditas a escolha destes dois textos para compor o livro nos lembra algo sobre o que alertava Antonio Candido na introdução à sua Formação da literatura brasileira. Mostaço se preocupa com certa noção de panorama que não conta apenas com os elementos e as experiências pré eleitas como “centrais”. Toma também estas, que têm interesse na composição do quadro e seguem demarcando a História “lateralmente”. O “lateral”, no caso, não sinaliza juízo de valor e sim certa condição especial, seja no sentido da visibilidade artística, seja quanto ao grau de experimentação ou novidade formal que elas apresentam. Entretanto, para seguir na comparação é importante fazer uma distinção fundamental: se para Candido a ideia de “sistema” correspondia à expectativa de um recorte na direção de certa unidade característica possível, que delimitasse o campo de formação da literatura brasileira, para Mostaço prevalece, mais que o conceito de unidade, o de conjunto, e agora baseado definitivamente na percepção da multiplicidade e diversidade “complexas” das experiências não como um problema e sim como um fato. Isto está aliás anunciado como a primeira questão do livro, é uma das constatações que orientam o olhar:
O Brasil conheceu, nas últimas décadas, transformações estruturais que alteraram seu perfil de modo acentuado, por meio de movimentos que não podem ser facilmente sintetizados. E o teatro aqui praticado, seguindo de perto essa dinâmica, apresentou igualmente uma complexidade difícil de ser apreendida, a não ser através de grandes esboços (MOSTAÇO, 2015, p. 23).
Ao lembrar que no desabrochar da cena contemporânea “as grandes interpretações do país, promovidas por intelectuais desde os anos de 1950, já não dão conta das complexidades estruturais que vivenciamos no dia a dia” (MOSTAÇO, 2015, p.23) intui e aplica objetivamente, nos artigos sobre teatro brasileiro, a ideia de que um bom caminho para avançar em relação a estes grandes esquemas de interpretação (sociais assim como estéticos) pode ser o da assunção de certa multiplicidade construtiva. Uma multiplicidade que de fato tem grande chance de dizer mais francamente sobre nós ainda que através de experiências tateantes, por fora das estruturas modelares que a tradição do teatro oferece. Expressões dissonantes que podem ser cotejadas tanto com as teorias do teatro como também com a economia política.
Gerações
Se quisermos seguir nesta trança, nesta transa geracional, ela certamente pode render ainda muita coisa, do centro para as bordas do livro. Daquilo que está lá para o que não está literalmente mas pode, dali, ser intuído. Há, por exemplo, um texto essencial, ainda que curto: Décio de Almeida Prado e a Cumplicidade (MOSTAÇO, 2015, p.191), que é aparentemente mais acidental. Trata-se da resenha sobre o livro de Ana Bernstein, A Crítica Cúmplice – Décio de Almeida Prado e a Formação do Teatro Moderno. As notas valem pela resenha em si . Mas, sobretudo, pelo que se pode perceber, além do escrito, sobre a dita passagem de geração. No texto Edélcio descreve o encontro de trabalho entre ele, um então jovem crítico, com aquele que fora o maior pensador vivo do teatro brasileiro. Seria só um encontro prosaico se não indicasse, como bem apontou Aimar Labaki no prefácio, a transição de um teatro que lá por 1968 “precisou de uma nova geração de intelectuais que pudesse com ele dialogar” (MOSTAÇO, 2015, p.13). Pois, de alguma maneira Soma e sub-tração é provavelmente o momento atual e atualizado daquele encontro e traz consigo tanto a revisão do repertório técnico e teórico que se inaugurava naquele momento e amadureceu depois, como também o sentido fundamental de um olhar herdado, humanista – o do próprio Mostaço – que não se deixou alinhar pelo academicismo. De uma maneira que os instrumentos que Décio não chegou a tomar a mão (e além) aparecem aqui experimentados sob um espírito crítico inquieto, sem que com isso aquelas lições de empatia com o conhecimento – com o objeto e com o sujeito do conhecimento – tenham perdido importância.
Nesse sentido o artigo indica tarefa que o autor provavelmente não se colocou, mas que acaba cumprindo por tabela: a de registrar as mudanças de repertórios e olhares operadas nestas transições históricas. E que seguem nos provocando e nos alimentando até desaguarem em uma percepção nova sobre o próprio trabalho crítico, que o livro assimila.
Em que consiste, no capítulo atual, essa mudança? Como nos explicava o professor Luiz Fernando Ramos, a crítica brasileira viveu desde sempre (e ainda hoje há críticos tributários desta posição) sucessivas “reinaugurações” do nosso teatro (RAMOS: 1994), de maneira que a cada época e às suas reorientações sociais e estéticas os críticos declarassem a necessidade de invenção, nascimento ou renascimento da cena. Mas, quase sempre tomando como referência o cânone europeu. É prática que vem desde o século XIX e seguiu firme até recentemente entre nós.
Neste aspecto Edélcio Mostaço anuncia e se irmana a uma geração mais nova de críticos, que não é a dele, mas com a qual compartilha um ponto de vista sobre a questão: no livro já não se vive a expectativa de resposta às estruturas modelares do teatro. Mesmo que as apreciações sobre teatro brasileiro não sejam a única questão, nos estudos de caso ou sobre história que ele desenvolve ensaia-se a experiência de olhar francamente as incompletudes e formas próprias da nossa cena não como “erros” ou passagens para algo a ser amadurecido no futuro e sim como certa condição em movimento. E, desta maneira, o trabalho crítico já não precisa enquadrar a cena nacional segundo uma nova possível reinauguração que tente fazê-la caber em departamentos que, agora sabemos, talvez nunca a comportem.
No panorama ou nos textos específicos sobre teatro brasileiro podemos ler então que na tentativa de flagrar o que determina a sociabilidade brasileira em particular, vamos experimentando, pelas condições dadas, cruzamentos traduzidos em estruturas inusuais. Às incongruências entre gêneros e ao hibridismo da narrativa corresponde a incompletude histórica, mimetizada na forma, de maneira que “as estranhezas que se criam revelam, no campo estético, as falhas e descontinuidades do campo social, às vezes mais, às vezes menos criticamente” (ABREU, 2008, p. 94).
Há, pois, uma herança vinda dos críticos humanistas e retomada em novas bases aqui e que tem a ver com a disposição para uma aventura intelectual, no sentido de um enfrentamento do objeto, o que não significa apenas uma experiência com a linguagem do objeto mas também o reconhecimento de que a singularidade das linguagens não é um algo em si, é algo que tem raiz na vida e tem razão de ser. As razões, claro, são de muitas ordens.
Para voltar ao título do livro, a soma que “individualiza o corpo” não para ensimesma-lo, mas para fomentar o seu devir instável é de fato o que acende o trabalho intelectual do autor, arauto da fruição desejante. E que nos diz muito sobre estes cruzamentos entre mais de uma tradição da crítica, entre as passagens históricas e o fato estético, entre o sujeito e a sociedade, entre os modos novos agora esclarecidos não só do fazer como também do ver, do Receber. Um processo posto em curso que significa a seu modo uma tomada de posição diante do mundo. Por isso, entre outras coisas, nos interessa: porque além da específica valiosa contribuição ao debate e aos estudos teatrais, nos irmana a todos – os artistas, críticos e fruidores que em alguma medida sempre somos.
Referências bibliográficas:
ABREU, Kil. “Experimentação e realidade: Grupos e modos de criação teatral no Brasil”, Próximo ato: Questões da teatralidade contemporânea. SAADI, Fátima; GARCIA, Silvana (orgs.). São Paulo: Itaú Cultural, 2008.
ARAÚJO, Antonio. A gênese da Vertigem: o processo de criação de O Paraíso Perdido. São Paulo: Perspectiva, 2001.
BARROS, Diana Luz Pessoa; FIORIN, José Luiz (orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: Edusp, 2003.
BERNSTEIN, Ana. A crítica cúmplice – Décio de Almeida Prado e a formação do teatro brasileiro moderno. Instituto Moreira Sales. São Paulo, 2006.
BORNHEIM, Gerd. “Gênese e metamorfose da crítica”, in Páginas de Filosofia da arte. Rio de janeiro: Uapê, 1998.
EAGLETON, Terry. A ideologia da estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo – a lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática, 2000.
MOSTAÇO, Edélcio. Soma e Sub-tração – territorialidades e recepção teatral. São Paulo: Edusp, 2015.
PRADO, Decio de Almeida. Exercício findo – Crítica teatral (1964-1968). São Paulo: Perspectiva, 2008.
RAMOS, Luiz Fernando. “Da Pateada à apatia: O Teatro da Bagunça de Alcântara Machado e a Crítica de Teatro no Brasil”, O Percevejo, v. 2, 1994.
Kildervan Abreu de Oliveira: Jornalista, crítico e pesquisador do teatro. Mestre em Artes pela Universidade de São Paulo (USP). Foi crítico do jornal Folha de São Paulo e da revista Bravo! Dirigiu o Departamento de Teatros da Secretaria Municipal de Cultura/SP e foi curador dos festivais de Curitiba, Recife, Fortaleza e Festival Internacional de teatro de São José do Rio Preto. Por dez anos foi professor e coordenador pedagógico da Escola Livre de teatro de Santo André e por oito jurado do Prêmio Shell/Versão São Paulo. Atualmente é curador de teatro do Centro Cultural São Paulo.