Imagens corais modernas

Estudo sobre imagens corais no teatro brasileiro moderno e as consequentes influências na cena contemporânea

24 de dezembro de 2015 Estudos

Vol. VIII n° 66 dezembro de 2015 :: Baixar edição completa em pdf

Resumo: O ensaio discute a apropriação de formas corais na cena brasileira moderna, tomando como objeto a produção do Teatro de Arena enquanto referência para posteriores experiências de conjuntos teatrais contemporâneos.

Palavras-chave: Coro, Imagem, Teatro de Arena, Cena Brasileira

Abstract: The essay discusses the appropriation of coral forms in the Brazilian modern scene, taking as object the production of the Teatro de Arena as a reference for later experiences of contemporary theatrical sets.

Keywords: Choir, Image, Teatro de Arena, Brazilian Theatre

 

Notas introdutórias

Retomo agora como objeto determinadas realizações do Teatro de Arena (1953-1972), anteriormente abordadas em texto da comunicação para a V Reunião Científica da ABRACE (2009), realizada em São Paulo, com o título: Coro emancipado? (notas de percurso) (Cf. www.portalabrace.org). Desenvolvi posteriores formulações, que reelaboro neste ensaio, com a redação do tópico “Círculo”, que integra um dos capítulos da tese “O coral e colaborativo no Teatro Brasileiro” (CORDEIRO, 2010, p. 191-202). Entre a primeira pergunta, o trajeto de pesquisas realizado e o fechamento em um espaço teórico delimitado pela coralidade, as reflexões que apresento agora vão além da mera transcrição. Com este ensaio proponho que através das formas corais operadas pela cena, determinados conjuntos teatrais modernos estabeleciam um ponto de vista crítico na composição do discurso cênico – diante dos temas colocados em jogo pela dramaturgia no contexto do teatro brasileiro realizado em meados do século passado.

Tal perspectiva vai além da observação frente aos contornos de um personagem coral, para perceber a configuração da própria performance coletiva, em que se verifica certa filiação aos comportamentos teatrais dos coros na antiguidade grega.  Por outro lado, remetiam ao conceito de coro na perspectiva moderna definida pelos poetas-pensadores que marcaram a presença no teatro do idealismo, do romantismo e do nacionalismo na Alemanha moderna. A definição moderna sobre o conceito de coro encontra em reflexões de Schlegel, Schiller, Hegel e Nietzsche, as principais contribuições tanto sobre suas formas no teatro grego como em suas apropriações modernas, desde Shakespeare aos poetas e compositores alemães, como Goethe, Büchner ou Wagner. Ao contrário do traço uniforme e arcaizante que havia nos grupos corais na Ática do séc. V a.C., com a modernidade, a presença coral ganhou feições dramáticas, críticas,  heterogêneas e até mesmo singulares. A coralidade, isto é, a teatralidade das formas corais, vai muito além das definições contidas em dicionários (PAVIS, 1999, p. 73-75).

A seguir, não se pergunta pela possibilidade de caracterizar um conjunto como o Teatro de Arena enquanto um coro emancipado, nem se navega pelas implicações que a circularidade do espaço se referia à tradição coral enquanto cena e dramaturgia. Em vez disso, considerando o aproveitamento das condições de análise alcançadas nos textos anteriores, busco aproximar a noção de coletivo de enunciação (nomeado como grupo, coletivo ou companhia) de possíveis interfaces, com as imagens corais teatralizadas na arquitetura dos espetáculos do Arena, que marcaram narrativas historiográficas, críticas  e criadoras  da cena moderna brasileira, desde o correr de meados do século passado até gerações contemporâneas.

 

Teatro de Arena como ponto de vista                                         

Em que medida o nome assumido pelo coletivo de enunciação constitui o sujeito cuja presença é efetivamente percebida no ambiente teatral como a imagem de um autor coletivo? Afinal, é o Arena quem conta, como encontramos em quatro de seus mais importantes espetáculos, onde aparece a ênfase no Arena como o narrador já no título. Refiro-me aos espetáculos musicais Arena conta Zumbi, Arena conta Tiradentes, Arena conta Bahia e Arena conta Bolívar (este último nunca apresentado no Brasil). Observando apenas os títulos percebe-se um jogo entre a imagem de um conjunto/espaço onde a singularidade de uma figura histórica, de caráter lendário, é tematizada através de narrativas cuja voz coletiva aparece enfatizada. Seu ethos enquanto conjunto de teatro, assim como acontecia (e acontece) com o Oficina, um de seus contemporâneos mais próximos, foi sendo reelaborado na medida em que sua imagem coletiva se estabeleceu através da cena, enquanto um ponto de vista crítico.

Quando observamos sua trajetória de espetáculos, chama  atenção que integrantes se retiraram e outros adentraram o seu círculo de criação e reflexão teatral ao longo de seus anos de existência (1953-1972). Seu ciclo de espetáculos, entre laboratórios experimentais e processos criativos, constituiu publicamente o seu caráter de persona teatral coletiva, em que se nota a imagem reincidente de um sujeito-espaço assumindo posições diante da realidade brasileira abordada. Com o tempo, o Teatro de Arena buscou oferecer à sociedade sua visão contemporânea sobre a “realidade brasileira”, teatralizando personalidades que, em virtude de seu estatuto histórico, possuem um caráter de patrimônio coletivo e nacionalista – como se verifica nos musicais realizados em sua fase de autoria mais plural, especialmente em Arena conta Zumbi (1965) e Arena conta Tiradentes (1967).

É curioso notar que a companhia fundada por José Renato em 1953, nos anos 1960, ao mudar sua estrutura administrativa, passando a ser dirigida por um grupo de sócios, foi assumindo cada vez mais um caráter singular em sua poética cênica. O Teatro de Arena passou, entre 1960 e 1964, por uma reformulação; no papel, deixando de ser “Companhia”, torna-se uma Sociedade, ao mesmo tempo em que seu repertório sofre mudanças significativas. Além daqueles se retiraram para integrar o CPC (Centro Popular de Cultura), também José Renato desliga-se do Teatro de Arena, vendendo o espaço para o grupo que forma a nova Sociedade Teatro de Arena – Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri, Juca de Oliveira, Paulo José e Flávio Império (Cf. CAMPOS, 1988, p. 55). Ou seja, um grupo assume a companhia que fora fundada por um encenador.

Então, o Arena, ao “contar” se dispunha a olhar para a cultura brasileira assumindo um ponto de vista crítico, tendência que vinha se consolidando desde 1958, com Eles não usam Black-tie, texto escrito pelo também ator Gianfrancesco Guarnieri e direção de José Renato Pécora. Desde o início o projeto poético baseou-se na proposta do espaço circular como ambientação cênica. Como relata Mariângela Alves de Lima, em seu espetáculo de estreia, Essa noite é nossa, a “Companhia Teatro de Arena”, apresentou-se no MASP (Museu de Arte de São Paulo), onde um ano depois volta a se apresentar com “Uma mulher e três palhaços” (Cf. LIMA, 1978, pp. 33-34). A sugestão para que J. Renato distribuísse as cadeiras ao redor do espaço cênico, no pequeno teatro onde ele inaugura a sede da Companhia Teatro de Arena, foi dada pelo crítico Décio de Almeida Prado (um de seus professores na EAD – Escola de Arte Dramática). A referência vinha de experiências teatrais de grupos americanos da época. Estamos nos referindo ao início dos anos 1950, quando no “I Congresso de Teatro Brasileiro”, Décio de Almeida Prado e José Renato apresentam um estudo sobre o espaço em arena, traço arquitetônico que passa a determinar o projeto estético da companhia, além de registrar-se em seu nome, carregado de significados para a história de nosso teatro.

 

Imagens corais

É importante lembrar, mesmo de passagem, o primeiro espetáculo musicado do Arena, dirigido por José Renato, com texto assinado por Augusto Boal, Revolução na América do sul (1960); que destaco não só pela narrativa épica incomum para o público paulistano da época, mas por recorrer ao coro em algumas situações cênicas do espetáculo, preferencialmente na função de representar uma comunidade ou corpus social (Coro dos candidatos e Coro do povo). “Convém anotar também que todo elenco homogêneo e espetáculo valioso resultam, mesmo sem desvinculação, de uma interpretação coletiva, cujo inspirador principal costuma ser o diretor” (ROSENFELD, 1982, p. 20). Com o final dos anos de 1950, devemos considerar que a companhia, ainda dirigida por J. Renato, já buscava viabilizar sua contribuição para o processo de politização e cidadania do espectador; em um claro projeto de fomentar o que considerava como sendo a “dramaturgia nacional”, através de sua “pedagogia do olhar” (para lembrar a interlocução com as ideias brechtianas) e das teorias do “sistema coringa” (para não esquecermos Augusto Boal, seu idealizador que passou a figurar como o principal líder intelectual do Arena nos anos seguintes, até seu fechamento em 1972).

É preciso ressaltar que a prática de “distanciamento”, quando a cena procura desvincular a percepção que o espectador pode ter diante de atores e personagens como sendo uma presença unitária não foi inventada pelo Arena (nem por Brecht), e tem na parábase de Aristófanes um paradigma para a tradição coral. Na parábase os coreutas interrompiam o curso do espetáculo, retirando figurinos, para comentar criticamente a ação dramática, ampliando a possibilidade de visualização das personas tematizadas em uma perspectiva coletiva. Augusto Boal, ao referir-se posteriormente a essa técnica, aponta-lhe antecedentes corretamente no teatro grego, no qual “dois e depois três atores alternavam entre si a interpretação de todos os personagens constantes do texto” (BOAL, 1978, p. 83) utilizando máscaras; como acontece na peça A Decisão, de Brecht.

A desvinculação teria a vantagem (para o elenco do Arena) de todos os atores se agruparem em uma única perspectiva de narradores. Assim o espetáculo passaria a ser contado por toda uma equipe: nós, o Arena, vamos contar uma estória, segundo um nível de interpretação coletiva. (ROSENFELD, 1982, p. 13)

Bertolt Brecht, mediante certa dessacralização do texto ori­ginal e de seu comportamento processual nas montagens do Berliner Ensemble, submetendo seus escritos à prova dos ensaios, mudando-os constantemente no contato direto com os atores, influenciou nossos jovens diretores da primeira geração moderna (de José Celso Martinez Correia, Antônio Abujamra, a Antunes Filho), responsáveis por mudanças expressivas nas feições do teatro brasileiro, a partir da década de 1960. Importa ressaltar, neste sentido, a referência a Erwin Piscator, como um  reformulador  teórico e realizador do Teatro Épico, do Teatro Político, da Performance coral, da mistura de gêneros e estilos de teatralização, incluindo a inserção de filmes, projeções e letreiros em seus espetáculos que tanto determinaram a trajetória de Brecht e de seu procedimento de distanciamento crítico (Cf. ROSENFELD, 1985). Como coloca Anatol Rosenfeld, sem que certa empatia ou identificação entre receptor e personagem aconteça não há como imprimir qualquer distanciamento, nem por parte do ato espetacular, nem por parte do público.

O caráter tenderá a ter, por isso, traços típicos, tornando-se, mais que indivíduo, representante de um grupo. Assim, em Tiradentes, Gonzaga com sua rosa e traje especial, passa a ser o representante do intelectual sofisticado, entregue a uma retórica pouco realista. Supõe-se que tal tipo de representação desvinculada favoreça a apreciação crítica do público, visto ela impedir a intensa identificação emocional (ROSENFELD, 1982, p. 13).

O “Sistema Coringa” (Cf. BOAL, 1978, p. 83-86) seria também um bom exemplo de apropriação e reelaboração da coralidade onde podemos perceber um nítido espelhamento entre os procedimentos de criação e a linguagem cênica colocada em movimento nos espetáculos do Teatro de Arena. Sábato Magaldi, na época da montagem de Tiradentes, comenta o espetáculo acentuando que o sistema é a mais inteligente formulação jamais elaborada por um encenador brasileiro. Segundo Boal, no “Sistema Coringa” a estrutura do elenco seria composta por: “Protagonista; Coringa (oposto do protagonista, realidade mágica, pode interromper a ação, mestre de cerimônias, explicador, raisonneur); Coro Deuteragonista; Coro antagonista; Corifeu; Orquestra coral” (BOAL, 1978, idem). A estrutura prevista para o texto dramatúrgico e do espetáculo se apresentava como: “Dedicatória, Explicação, Capítulos, Episódio, Comentários, Entrevista (o coringa interroga o protagonista), Exortação (cena final, o Coringa exorta a plateia)” (Cf. BOAL, op. cit.).

Conforme Rosenfeld descreve, são quatro as técnicas fundamentais envolvidas no Sistema Coringa desenvolvido pelo encenador para o Arena: “a) desvinculação ator/ personagem; b) Perspectiva narrativa una; c) Ecletismo de gênero e estilo; c) O uso da máscara” (ROSENFELD, 1982, p. 12). Para ele o “Coringa como tal é sobretudo o comentarista explícito e não-camuflado”. (ROSENFELD, 1982, p. 15). A função Coringa “representa o autor de uma obra fictícia (embora baseada em dados históricos) e como tal transforma as pessoas históricas reais em personagens de quem conhece os segredos mais íntimos, já que são suas criações” (ROSENFELD, 1982, p. 17). Comparado com a função Protagônica a do Coringa é, afirma Rosenfeld, de caráter “teatralista, criadora de ‘realidade mágica’”. (ROSENFELD, op. cit.). “Paulista de 1967”, o Coringa, enquanto persona coral, se apresenta como porta-voz do autor (Teatro de Arena) que fala com a plateia e compartilha com ela da mesma realidade atual, até certo ponto, de maneira ritual-espetacular. Como se percebe, no texto assinado por Boal e Guarnieri, Arena conta Zumbi, logo no início, com a entrada do Coro em cena, que canta anunciando o sujeito da enunciação, um coletivo que assume em cena sua autonomia como voz e presença coletiva.

O Arena conta a história

Prá você ouvir gostoso

Quem gostar nos dê a mão                    bis

E quem não tem outro gozo.

História de gente negra

Da luta pela razão

Que se parece ao presente

Pela verdade em questão,

Pois se trata de uma luta

Muito linda na verdade:

É luta que vence os tempos                  bis

Luta pela liberdade!

Os atores têm mil caras

Fazem tudo nesse conto

Desde preto até branco.                         bis

Direito ponto por ponto.

Há lenda e há mais lenda

Há verdade e há mentira:

De tudo usamos um pouco

Mas de forma que servirá

A entender nos dias de hoje

Quem está com a verdade,

Quem está com verdade,                        bis

Quem está com a verdade.

(Cf. BOAL e GUARNIERI, 1970, p. 31).

Cláudia de Arruda Campos afirma que em 1964 “já não se discute apenas a interpretação ou o repertório do Arena, mas a relação que estabelece com os textos encenados” (CAMPOS, 1988, p. 61). Fica evidente que a Companhia neste momento já criara “um estilo próprio, que tem boa dose de irreverência, pela liberdade com que se tratam os textos e os recursos cênicos” (CAMPOS, 1988, op. cit.). Sobre Zumbi, a pesquisadora sintetiza:

Não há cenários. No palco vazio a ambientação é sugerida pelo próprio texto, por efeitos sonoros e de iluminação e, sobretudo, pela movimentação dos atores. Estes, por sua vez, aparecem vestidos da mesma maneira: calça Lee branca e camiseta escura. Não há necessidade de caracterizar personagens pois esta não é uma história vivida, é uma história narrada. O caráter narrativo (e de narração coletiva), apoiando-se na total desvinculação ator/ personagem, constitui o aspecto mais ousado da inovação presente em Zumbi. (CAMPOS, 1988, p. 79)

Sobre o Sistema idealizado por Boal, Anatol Rosenfeld em sua análise apresentada em O mito e o herói no moderno Teatro Brasileiro (1982), afirma: “É com o sistema Coringa que a teoria de Boal se afasta parcialmente da de Brecht” (ROSENFELD, 1982, p. 15). A “função protagônica” impõe a vinculação ator/personagem, conforme “a interpretação naturalista, stanislavskiana” (ROSENFELD, op. cit.). Neste sentido, a função “protagônica” é essencial ao sistema criado por Boal, ela se apresenta como polar à função coringa, que se atém a abstrações de caráter mais conceituais (bem de acordo com a imagem coral moderna). Foi com a realização de Arena conta Tiradentes, que Boal buscou formalizar uma sistematização que estruturasse o espetáculo, o texto e o elenco de forma permanente. Como um caso emblemático da diluição dos conceitos de grupo e companhia no contexto do teatro brasileiro, o Arena, na medida em que consolida profissionalmente seu projeto artístico, como se sabe, de pretensões ideológicas, no sentido de promover o engajamento crítico do espectador (individual) como cidadão (coletivo), fez sua identidade teatral se afirmar como a de um coletivo criador, que assina o espetáculo assumindo-se como um Nós, uma instância figurada como a imagem de um coro. Além de assumir posições políticas em cena, produziu eventos outros, como o “Seminário de Dramaturgia”, o “Teatro das Segundas-Feiras”, levando oficinas de teatro para trabalhadores industriais ou rurais, universitários, estudantes ou jovens e iniciantes na profissão.

A canção, o samba, os ritmos negros dos ritos de umbanda, nem pelo fato de serem interpretados por atores sem dotes musicais perdem seu efeito de envolvimento do espectador pela pura sensibilidade. Ainda assim, ela serve a uma forma de didatismo, que talvez seja o conceito de ensino característico do Teatro de Arena. (CAMPOS, 1988, p. 86).

De algum modo, a reiteração de um único nome associado ao autor da cena (como o Teatro de Arena) nos leva a lidar com os conjuntos teatrais tal como se fossem sujeitos individuais. Ainda que, paradoxalmente, nos referimos aos autores de seus espetáculos destacando-os de seu contexto coletivizado, ao apontarmos a autoria de Boal, Guarnieri e Edu Lobo em Zumbi, por exemplo. O espetáculo do Arena pretende, sob todas as formas, “provocar uma conduta determinada no espectador”, que “deve aderir à poética saga dos negros, empunhar a bandeira da continuidade de sua luta e repudiar aquele inimigo, monstruoso pela violência, mas distanciado e relativizado pela força do humor” (CAMPOS, op. cit.). Porque se a criação, no caso de Zumbi ou de Tiradentes, foi claramente coletiva, o compartilhamento dos personagens (que são concebidos como máscaras) entre mais de um ator exibia ao espectador certa multiplicidade de leituras; no mínimo se considerarmos que cada personagem é percebido pela carga interpretativa, através da voz e do gestual, dos atores-coringas que se revezam, ao contrário do protagonista, sempre personificado por um único ator – que acaba se destacando dos demais. Em cena, parece, ocorria um jogo de tomar proximidade e distância em relação às identidades que circulam pelo espaço delimitado pela presença circundante do público, que tanto remete ao espaço ocupado pelos coros gregos – a orkhestra.

Ainda que a produção de sentido tenha sido dirigida ideologicamente, especialmente pelo ângulo dramatúrgico, os espetáculos do Teatro de Arena, realizados nos anos 1960, traziam uma assinatura ao mesmo tempo coletiva e singular. Como aponta Mariângela Alves de Lima em sua avaliação sobre o percurso do T.A.: “Cada produção era precedida de um intenso trabalho teórico, procurando inclusive conciliar os métodos diferentes que o grupo havia utilizado desde as suas primeiras produções. Para os atores havia cursos regulares de voz e expressão corporal” (LIMA, 1978, p. 46). Esta constatação parece contundente quando observamos que o Arena transformou-se progressivamente em uma identidade coletiva que é referência para a historiografia moderna brasileira, e uma espécie de “grupo-escola” ou “grupo-companhia” de grande importância em sua época – vale lembrar que o T.A. chegou a apresentar-se simultaneamente na cidade de São Paulo e no Rio de Janeiro, com espetáculos diferentes. Identidade plural, o Arena funcionou (e funciona até hoje) como referência significativa para pensarmos no fenômeno teatral pelo viés de uma arte que se realiza através de pesquisas e comprometimento cívico, político e artístico com o teatro. Sua persona é marcada por práticas experimentais, “buscas com investigação” e a tentativa “produzir” um sujeito de caráter coletivo que circunscreve a teatralidade do acontecimento, além da concretização de suas ideias teatrais, fortemente figuradas através de imagens corais, desde A Revolução na América do sul (1960) a América Doce América (1972). Como escreve Ryngaert, “quando nosso novo teatro se interessa pela História, tece vínculos explícitos entre o passado e o presente, formula correspondências pela escolha dos personagens porta-vozes ou se interessa pelo passado por intermédio de um microcosmo cujas ações se desenrolam no presente” (RYNGAERT, 1998, p. 118).

 

O coro subsiste

Como afirma Mariângela Alves de Lima: “Não se tratava apenas de fazer teatro para o maior número possível de espectadores, mas também de se fazer um teatro popular. Ou seja, um teatro para um determinado tipo de espectadores, dentro da concepção então vigente de teatro popular” (LIMA, 1978, p. 40). De um modo geral, visava-se a inserção do Teatro de Arena como uma voz coletiva, desde 1956 funcionando como um “centro cultural” que assumia uma posição ideológica, engajada politicamente diante de sua avaliação sobre a realidade brasileira. Ao mesmo tempo, enquanto uma célula criadora e produtora de obras originais, no T.A. “a definição de que tipo de cultura estaria centralizada pelo grupo só vai tomar rumo mais nítido a partir da incorporação de Augusto Boal” (LIMA, 1978, p. 40-41). A entrada de Boal para o Arena foi acompanhada também pela assimilação de integrantes do Teatro de Estudantes de São Paulo, entre eles, Oduvaldo Vianna Filho. Os espetáculos realizados pelo conjunto, onde o Arena se anuncia como o narrador (Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes, principalmente) nos dão ideia da contribuição estética que tal sujeito da história do Teatro Brasileiro efetivamente deixou.

Vale lembrar que a trajetória posterior de Augusto Boal, através do projeto Teatro do Oprimido, que se espalhou por diversas cidades do mundo, foi iniciada ainda como uma de suas atividades no Teatro de Arena, através de suas oficinas, e não somente na concretização dos espetáculos. Foi como decorrência de uma destas oficinas que a experimentação do “Teatro-Jornal” se transformou em espetáculos clandestinos, realizados em horários alternativos pelo Núcleo 2, uma “célula” criadora forjada no espaço do Arena. Celso Frateschi, integrante na época desta experiência, relata sua participação no “Teatro-Jornal”, em depoimento gravado na ocasião do Seminário “Odisseia do Teatro Brasileiro”:

Como não podiam ser apresentados para a censura, eram feitos clandestinamente, a portas fechadas. A gente chamava alguns amigos que iam até lá e participavam. E a gente acabava experimentando o que tinha conseguido aprender com a Eleni e a Cecília. A Cecília [Tumim, mulher do Boal] sempre foi mais stanislavskiana, mais porra-louca, e Eleni [Guariba] tinha uma visão brechtiana, via Planchon, era uma coisa super-racionalista e muito interessante (Cf. FRATESCHI in: GARCIA et. al., 2002, p. 101).

Constituindo-se como uma referência modelar para o historiador do Teatro Brasileiro, mas também em seu tempo, como se percebe na avaliação de Sábato Magaldi, o Arena modificou a forma de criar a cena teatral, realizando processos criativos onde dramaturgia e cena se concretizam de maneira conjugada, e em diálogo com o espaço e a música. O cenógrafo Gianni Ratto afirma em seu depoimento que “o TBC foi importantíssimo, mas nunca criou uma visão diretorial que desse ao teatro no Brasil uma estrutura temática. Isso não aconteceu” (Cf. GARCIA et. al., 2002, p. 24-25). Fauzi Arap, que trabalhou como ator no TBC, no Arena e no Oficina, afirma que “o TBC, no seu nascedouro, rejeitou e destruiu um pouco o que veio antes dele. De uma outra forma, o Arena tentou fazer isso com o TBC. E o Oficina tentou fazer isso com o Arena” (Cf. ARAP in: GARCIA et. al., 2002, p. 32). Mas é curioso perceber no Arena a renovação da tradição musical no contexto da cultura popular brasileira, em chave diferente das operetas e musicais da Praça Tiradentes, proporcionada pela participação da nova geração de músicos e compositores, como aconteceu com a presença colaborativa de Edu Lobo.

Gianfrancesco Guarnieri, jovem escritor e ator de destaque entre a nova geração moderna, ao participar da “Odisseia do Teatro Brasileiro” coloca que o surgimento do Arena, para ele, já se via em formação no ano de 1952 na Escola de Arte Dramática, com a primeira turma de formandos. Nesta turma, encontravam-se José Renato e Jorge Andrade, diretor e dramaturgo que, ao lado de Guarnieri e Augusto Boal, foram emblemáticos para o novo horizonte teatral que se instaura na década de 1960. Guarnieri ao abordar a trajetória do conjunto ressalta, em seu depoimento gravado e publicado, a importância do movimento teatral dos estudantes.

Agora, a modificação que eu acho que houve, interna e de conteúdo, no Teatro de Arena, veio quando o Teatro de Arena se fundiu com o Teatro Paulista do Estudante (TPE). Esse Teatro Paulista do Estudante foi fundado como resultado de uma discussão muito grande da Juventude Comunista e do Partido Comunista a respeito da atuação dos seus membros, e sua militância no campo cultural e no movimento estudantil (Cf. GUARNIERI in: GARCIA et. al., 2002, p. 65).

Augusto Boal, também em depoimento, afirma que “é evidente que eram bons os seminários sobre os quais tanta gente já falou e que eu tive também o privilégio de dirigir”, ao mesmo tempo, ele enfatiza a realização de práticas experimentais, como “o laboratório de interpretação que o Teatro de Arena inaugurou, quando pela primeira vez estudamos sistematicamente Stanislavski…” (Cf. BOAL in: GARCIA et. al., 2002, p. 244). Em sua fala, Boal continua:

Antes de 1964 e mesmo depois de 1964, a gente tinha ainda aquela ideia de que sabíamos o que era o certo. O certo era dar uma mensagem para o espectador, o certo era dizer ao espectador o que é que ele deveria fazer, como é que ele deveria pensar. Nós, do Teatro de Arena, quando fazíamos peças para o trabalhador, quando íamos para o interior, às vezes para a rua, para as Ligas Camponesas, levávamos peças que tinham a famosa mensagem (Cf. BOAL in: GARCIA, op. cit., p. 246).

Em seu depoimento, Boal reconhece certa limitação do Arena, em suas pretensões políticas: “Percebi que, com todas as belas intenções que tínhamos – e tínhamos belas intenções, éramos honestos – éramos equivocados. O equívoco é que nós não podemos incitar alguém a fazer alguma coisa, se não podemos correr o mesmo risco” (Cf. BOAL in: GARCIA, op. cit., p. 249).

Começamos a trabalhar um espetáculo que se chamou Teatro-Jornal primeira edição. Esse espetáculo consistia em várias técnicas que tínhamos pesquisado em comum. Nós começamos todos com uma criação coletiva, inventando técnicas simples como pegar duas notícias de jornal e cruzar duas notícias: umas notícias de fome no Nordeste, de camponeses que tinham invadido um trem para comer porque estavam morrendo de fome, e cruzávamos essa notícia com as notícias de pagamento da dívida externa, que não era tão grande, mas já existia naquela época. (Cf. BOAL in: GARCIA, op. cit., p. 249-250).

No “Teatro-Jornal – Primeira Edição”, espetáculo que resultou de uma oficina realizada no espaço do Arena, Boal trabalhou com um grupo de alunos que vieram a compor o chamado Núcleo 2; como ele relata acima. Desse modo, o público do Arena, assíduo de certa maneira em suas temporadas nos anos 1960, também era composto por estudantes, e comunistas do “Partidão”, colocado na clandestinidade pela ditadura militar.

Seu passo seguinte, a concepção do Teatro Jornal implicava na subversão de objetivos habituais do teatro: o Arena abandona o sentido do espetáculo, não quer mais contar histórias, nem, através delas, dar lições sobre a realidade brasileira ou sugerir saídas políticas. O Arena não quer mais, simplesmente, falar ao povo, mas passar ao público, seu público de eleição, os meios de fazer teatro. O didatismo atingiu seu extremo e, como aceitando a tradição que lhe acompanhou o crescimento, o Arena mais uma vez multiplicou-se. (CAMPOS, 1988, p.136)

É curioso notar que estes estudantes, alguns como Fauzi Arap, passaram a compor o elenco ou a ficha técnica de alguns dos espetáculos apresentados no pequeno e circular espaço que marcou a trajetória do conjunto e de seu “ciclo” no teatro brasileiro. A circularidade, traço autoral importante na constituição da poética cênica do Arena, se evidencia em sua arquitetura, tanto espacial como teatral, na circulação de saberes entre estudantes e nos modos corais acionados na cena, que é sempre emoldurada pela imagem de um “ciclorama humano” – composto pelo público a sua volta. Estou remetendo agora ao texto O lugar da Vertigem de Sílvia Fernandes, publicado no livro comemorativo dos 10 anos do Teatro da Vertigem, liderado por Antônio Araújo, quando a pesquisadora se refere ao espetáculo O livro de Jó (1995) e afirma:

As portas trancadas, o cheiro de formol, a impossibilidade de olhar para o ator sem ver, ao mesmo tempo, como que formando um ciclorama humano, os espectadores sentados na frente, criavam uma relação teatral inédita e transformava o público numa comunidade cúmplice, solidária naquele espaço de cura e da morte (FERNANDES, 2002, p. 37).

De certo modo, se encontramos um coletivo de criação, cuja persona foi sendo criada e construída ao longo de seus processos criativos e atividades formativas, ao mesmo tempo, parece possível abordar a imagem do Teatro de Arena, na perspectiva da história do Teatro Brasileiro, como sendo a de um fundador de discursividades, fazendo agora uma aproximação com as reflexões sobre a autoria apresentadas por Michel Foucault (FOUCAULT, 1992, p. 58): “Na escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto de escrever, nem da fixação de um sujeito numa linguagem: é uma questão de abertura de um espaço onde o sujeito da escrita está sempre a desaparecer” (FOUCAULT, 1992, p. 35). A poética autoral do Teatro de Arena é notável em sua permanência na memória da cena brasileira enquanto um estilo de teatralizar imagens corais modernas, desaparecidas com a efemeridade intrínseca ao fato teatral, sendo multiplicadas por práticas pedagógicas e experimentais, no trabalho em sala de ensaios.

 

Referências bibbliográficas:

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CORDEIRO, Fabio. Formas corais contemporâneas. (Dossiê de Pesquisa de Pós-Doutorado). São Paulo, FAPESP/USP, 2014.

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FOUCAULT, Michel. “O que é um autor?” In: O que é um autor? Cascaio: Vega-passagem, 1992. pp. 29-70.

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ROSENFELD, Anatol. O Mito e o herói no moderno teatro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1982.

ROSENFELD, Anatol. O Teatro Épico. São Paulo: Perspectiva, 1985.

 

Fabio Cordeiro é diretor de criação da Nonada Companhia de Arte, ensaísta com doutorado em Artes Cênicas (UNIRIO) e pós-doutorado em Artes (FAPESP/USP). Um dos organizadores de Na companhia dos atores – ensaios sobre os 18 anos da Cia. dos Atores, está finalizando Coralidades emancipadas – itinerários da cena colaborativa brasileira, livro baseado em suas pesquisas acadêmicas.

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Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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