O teatro, o cinema e a pintura; a presença, a atenção e a escuta

Crítica de Krum, encenação de Marcio Abreu, texto de Hanoch Levin

31 de agosto de 2015 Críticas

Vol. VIII, nº 65, agosto de 2015

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Resumo: Análise da peça Krum, do dramaturgo israelense Hanoch Levin com encenação de Marcio Abreu, que estreou no Rio de Janeiro em 2015. A crítica procura identificar procedimentos da encenação que conseguem capturar um estado de atenção no espectador e sua disponibilidade para a escuta.

Palavras-Chave: dramaturgia contemporânea, encenação teatral, recepção teatral

Abstract: Analysis of Krum, a play by Israeli playwright Hanoch Levin staged by Marcio Abreu, which premiered in Rio de Janeiro in 2015. The review aims to identify procedures of the staging of the play that succeeds in capturing the spectator’s state of attention and his willingness to listening.

Keywords: contemporary drama, theatre staging, theatrical reception

 

Depois da estreia no Oi Futuro Flamengo no Rio de Janeiro e da temporada no Sesc Consolação em São Paulo, muito já foi dito sobre a relevância e as qualidades de Krum, espetáculo mais recente da companhia brasileira de teatro (o grupo usa letras minúsculas no seu nome). Se pensássemos a crítica como um mero mecanismo para apontar trabalhos bons e ruins, seria irrelevante publicar mais uma crítica de Krum – a não ser que se quisesse problematizar a quase unanimidade da recepção da peça. Não é o caso desse texto. O que se quer com essa reflexão é procurar entender os porquês, tentar identificar o que acontece na cena, na materialidade do espetáculo, que garante uma espécie de eficácia na relação com o espectador. Eficácia não é um termo confortável, mas vamos assumir o risco. A proposta aqui é identificar dispositivos da cena e tentar entender como eles afetam o espectador – como são efetivos em causar impacto, capturando a atenção e instituindo uma disponibilidade para a escuta.

Partimos do pressuposto de que nada é óbvio, nada está dado, para não cairmos numa tautologia do elogio: é bom porque é bom. Ou, pior: é bom e ponto. Não podemos cair também em uma tautologia metonímica, dizendo que o espetáculo é bom porque todas as suas partes são boas. Mas por que é bom?

As peças de teatro são coisas complexas – e isso não é óbvio para quem não participa de processos criativos. Quando a complexidade é assumida como condição de possibilidade de uma criação original, estabelece-se uma relação complexa com o espectador também. Quando os artistas tomam o trabalho como algo que se resolve com um ou outro truque, a relação com o espectador também fica restrita a uma troca simples. O fato de que a eficácia de Krum não pode ser respondida com exclamações tautológicas é sinal de que a relação criada com o espectador é bastante complexa, embora pareça simples. O espectador de Krum não é subestimado, mas dele não se pede nenhum conhecimento prévio. Basta a atenção. Para verificar isso, tratamos principalmente da visualidade do espetáculo e do encadeamento narrativo que se percebe com o que se vê e com o que se escuta.

Para começar, devo dizer que a encenação de Krum por Marcio Abreu e a companhia brasileira de teatro é, em alguma medida, pictórica. Nesse sentido, Krum me remete a uma peça da encenadora italiana Emma Dante, As irmãs Macaluso, espetáculo a que tive oportunidade de assistir em março desse ano na MITsp e sobre o qual escrevi sob essa mesma perspectiva, a condição pictórica da encenação. O que quero dizer com isso é que há algo na visualidade do espetáculo que tem a ver com a pintura. Não apenas por ter um apuro visual ou por seus momentos de beleza plástica, mas porque vejo nas imagens uma disposição, uma economia pictórica. Isso se dá em especial por conta do fundo preto e da relação de chiaroscuro na qual as figuras aparecem sobre o fundo. Mas não é a quase ausência de elementos cenográficos que faz o fundo preto. O preto do palco de Krum é um preto trabalhado, um preto construído, uma substância: não se trata de uma ausência. Como num Caravaggio.

No entanto, a visualidade de Krum não é apenas pictórica, mas também cinematográfica. Logo no início, a alternância entre o fundo preto e as figuras em foco – que aparecem e reaparecem e em seguida desaparecem, cedendo lugar a outras que também passam pelo mesmo processo – é uma espécie de montagem cinematográfica. Vemos uma série de quadros dispostos aos olhos do espectador, um panorama de personagens em situações sintéticas: os primeiros traços de uma narrativa. Os fragmentos não estão isolados, o mesmo fundo faz com que eles estejam no mesmo universo. A iluminação de Nadja Naira tece os primeiros fios do enredo justamente pelo uso mínimo da luz, assumindo um papel narrativo na medida em que se encarrega da montagem. O espaço iluminado é caravaggesco porque não cria um ambiente reconhecível. A ênfase na artificialidade da luz e a discrição da cenografia de Fernando Marés criam um espaço de cena, um lugar autônomo de expressão das figuras, no lugar de um cenário descritivo no qual as personagens poderiam estar inseridas.

Outra característica que remete ao pictórico e especificamente a Caravaggio é o trabalho sobre as figuras. A aparência dos personagens é construída como síntese. O pouco que revelam é preciso. Mesmo o que há de excesso é trabalhado na medida, não ultrapassa o limite do contorno estabelecido. Essa primeira impressão, esse primeiro tratamento das imagens, vai dar o tom do deslocamento dos personagens na trama: eles estão marcados pelo contorno que os prende. Seus corpos são tudo o que têm. Não à toa, chama a atenção o trabalho da direção de movimento de Márcia Rubin. Os corpos estão presentes como pensamento do espetáculo. Algo faz com que eles atuem como vasos comunicantes entre as sensibilidades dos personagens e as sensibilidades dos espectadores. Esse “algo” é resultado uma elaboração artística sobre si mesmo, uma combinação sofisticada de disponibilidade, experiência e trabalho.

Cris Larin, Danilo Grangheia, Edson Rocha, Grace Passô, Inez Vianna, Ranieri Gonzalez, Renata Sorrah, Rodrigo Bolzan e Rodrigo Ferrarini compõem o elenco com um trabalho de construção de uma linguagem em conjunto para a atuação no espetáculo. Embora os trabalhos individuais sejam muito fortes e também mereçam atenção, a sintonia com a linguagem em grupo parece mais relevante, pois se trata de uma conquista rara no nosso modo de produção teatral atual, mesmo em grupos que têm um trabalho continuado. Mais comum é identificar desequilíbrios, o que talvez até contribua para o vício chato de crítica de ficar procurando quem está melhor do que quem. Nesse caso, o equilíbrio é a estrela, o que parece até no projeto gráfico da peça, concebido pelos designers Fábio Arruda e Rodrigo Bleque, do Cubículo, que atuam regularmente no teatro carioca: a imagem de capa do programa nos mostra uma montagem de partes dos rostos de todos os atores, com cabelos, barbas, olhos e traços de faces misturadas em uma criatura-síntese.

Foto: Nana Moraes.

Com o trabalho do elenco nesse nível de eficácia, me parece que há uma operação circular do espetáculo. Num primeiro momento, a elaboração da visualidade da cena se descola do que poderia se considerar mais característico do “teatro” no sentido convencional do drama não problematizado. Nesse descolamento, a peça flerta com técnicas do cinema e da pintura, carregando as tintas nos artifícios de luz e som, mas é justamente nesse processo que a peça constrói as bases para o que há de mais potente no teatro, a presença da carne, do corpo vivo dos atores, em relação dinâmica com o presente, com o tempo de convívio com os espectadores na sala de espetáculos – aquilo que o crítico argentino Jorge Dubatti tenta descrever como “teatralidade singular do teatro”:

O espectador percebe de maneiras diversas a teatralidade, por exemplo, quando sente no meio da sessão que “não poderia estar fazendo nada melhor” e que tudo o que está acontecendo na cena e no público adquire dimensão de inexorabilidade, isto é, não poderia ser de outra maneira, nada parece fortuito. Peter Brook fala de “teatro vivo”, isso que ocorre no acontecimento teatral e parece ter vida própria. Inexorabilidade do acontecimento. Como um espectador identifica a manifestação da teatralidade? Pela intensidade de percepção (chama a atenção, gera assombro, surpresa, agita a memória e os sentimentos, estimula o pensamento e a afetação física etc., funda uma zona de experiência e subjetividade em uma nova territorialidade) (DUBATTI, 2014, s/p).

Giulio Carlo Argan, em Imagem e persuasão, no capítulo intitulado “O realismo na poética de Caravaggio”, nos mostra como o modo de iluminar de Caravaggio, com o reforço dos escuros e o espaço tenso e sem horizonte que ele cria, encena uma situação que não é traduzível em imagem literária, ou seja, que não pode ser confortavelmente descrita. O discurso de sua descrição é necessariamente “truncado, assintático, icástico, não literário”, ou seja, os fatos apresentados não são historicizados, não são inseridos em um contexto verossímil, descritível (ARGAN, 2004, p.194). Entendo isso na relação que tento estabelecer com Krum, como uma ausência de ambientação cenográfica realista, como uma escolha de não-representação da peça como uma narrativa que tem lugar em um tempo e espaço específicos que possam “ajudar” o espectador a “entender” o que faz os personagens agirem dessa ou daquela maneira. O discurso não é completamente fluido e persuasivo, a trama não se desenrola como uma argumentação sem arestas. O quadro é seco e não explica. O que se vê é um embate direto entre as figuras. É na relação com as figuras (ou no trabalho sobre os atores/personagens) que a encenação é icástica, ou seja, no caso, não recorre a artifícios e adornos de criação/imitação de uma suposta semelhança – o que também faz sentido quando ouvimos os personagens sendo designados por epítetos. Não parece haver um esforço para “parecer” um personagem. Grace Passô, por exemplo, não trabalha para parecer mãe do Danilo Grangheia e o esforço no sentido contrário não faria nenhum sentido para a montagem. Os figurinos de Ticiana Passos também não trabalham sobre a ideia de semelhança a algo exterior à cena, não tentam “caracterizar” os personagens de maneira sublinhada.

A forma da encenação não é uma escolha óbvia diante das possibilidades do texto. A peça de Hanoch Levin é um drama, apresenta um encadeamento narrativo que se dá em uma progressão, com situações plausíveis entre personagens que se relacionam e dialogam entre si. Há um contexto que pode ser explicado, descrito, compreendido. E aqui não me refiro apenas ao contexto dos pequenos detalhes da narrativa ficcional. O contexto do autor, do seu país e da sua época, pode vir à tona para dar uma estrutura aos comportamentos e personalidades das figuras ali retratadas. É também por isso que considero o fundo preto da cenografia, da concepção mesma do espaço cênico, um escuro trabalhado. A escuridão, repito, não é ausência, é substância. Uma substância do que pode ser irrepresentável. Quando um contexto político, cultural, social, faz diferença justamente porque é tão relevante quanto complexo para se apresentar e se descrever, a opção por não representá-lo não vem sem riscos, mas pode ser o pulo do gato, como acredito ser o caso. As figuras de Krum brotam daquele contexto, mas elas são tudo o que vemos. Estão confinadas ao particular, a uma dimensão mínima de espaço e tempo. Nesse sentido, a encenação escapa do que há de confortável no drama – como as telas de Caravaggio escapam da natureza e da história na “treva informe”, para usar uma expressão de Argan.

O drama como forma do teatro parece ter uma tendência a ficar colado sobre si mesmo. Encenar um drama é difícil justamente por isso. A impressão que temos diante de um drama bem escrito é que está tudo ali. Fazer uma criação original a partir de um texto que se encaixe nesse gênero para fazer disso algo contundente e autônomo de uma relação com um contexto dado exige trabalho sobre a elaboração formal.

Me parece que a direção de Marcio Abreu opta pela ênfase na presença dos atores embora não deixe de lado a atenção ao fluxo de encadeamento narrativo. Para falar disso recorro a uma elaboração sobre as imagens, encontrada no ensaio A câmara clara, de Roland Barthes, referência sempre presente na minha relação com o teatro.

Barthes divide a sua relação com a fotografia em studium e punctum, termos emprestados do latim. Identifico no studium a relação que mais comumente temos com o drama no teatro, o modo como pensamos as situações, os processos de identificação com a subjetividade dos personagens, os contextos, os conflitos da ação, aquilo que conseguimos lembrar e descrever sem tropeços.

O primeiro [o studium], visivelmente, é uma vastidão, ele tem a extensão de um campo, que percebo com bastante familiaridade em função de meu saber, de minha cultura. (…) Desse campo são feitas milhares de fotos, e por essas fotos posso, certamente, ter uma espécie de interesse geral, às vezes emocionado, mas cuja emoção passa pelo revezamento judicioso de uma moral e política. O que experimento em relação a essas fotos tem a ver com um afeto médio, quase com um amestramento. Eu não via, em francês, palavra que exprimisse simplesmente essa espécie de interesse humano; mas em latim, acho que essa palavra existe: é o studium, que não quer dizer, pelo menos de imediato, “estudo”, mas a aplicação a alguma coisa, o gosto por alguém, uma espécie de investimento geral, ardoroso, é verdade, mas sem acuidade particular (BARTHES, 1984, p. 44).

Já o punctum é um modo de relação mais direto e por isso mesmo mais complexo, porque implica um silêncio de surpresa. A descrição de uma imagem que nos pega via punctum pode ser meio estabanada, tateante, e pode não fazer um sentido facilmente explicável.

O segundo elemento vem quebrar ou escandir o studium. Dessa vez, não sou eu que vou buscá-lo, é ele que parte da cena, como uma flecha e vem me trespassar. Em latim existe uma palavra para designar essa ferida, essa picada, essa marca feita por um instrumento pontudo; essa palavra me serviria em especial na medida em que remete também à ideia de pontuação e em que as fotos de que falo são, de fato, como que pontuadas, às vezes até mesmo mosqueadas, com esses pontos sensíveis; essas marcas, essas feridas, são precisamente pontos. A esse segundo elemento que vem contrariar o studium chamarei então punctum; pois punctum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte – e também lance de dados. O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere) (BARTHES: 1984, p. 46).

Acredito que a natureza do impacto de Krum possa ser bem mais próxima do punctum. O que me pega não é a narrativa do homem que volta para sua terra natal sem ter adquirido nada no estrangeiro, sem que sua viagem tenha sido uma “jornada”, e reencontra a sua mãe, a ex-namorada e os amigos, contada por um escritor israelense na década de 1970. O que me move na peça são as sensações que ela me provoca, o tipo de relação de atenção que a peça estabelece com a minha sensibilidade, a forma como ela me flecha e eu demoro meses para escrever os porquês.

A encenação pinta de preto o que poderia de imediato estabelecer uma relação de studium. Mas o pintar de preto não é uma tentativa de apagamento, e sim uma forma de dar presença, ainda que uma presença negativa. Assim, apesar da forma dramática do texto, temos bem menos o que compreender da peça e bem mais com o que nos afetar com ela. Em vez de apenas situar, apresentar, narrar e descrever, a peça atira.

Uma vez atingido ou fisgado, o espectador passa a um estado de prontidão. Essa prontidão produzida pela sensação do punctum não é como uma iluminação ou um insight. É quase como uma rasteira no entendimento. É algo que prende a atenção deixando-a o mais solta possível porque não é possível seguir o rastro do que fez o corte. A atenção não é direcionada, não é uma atenção de quem está “entendendo”, mas uma atenção de quem não está mais preocupado em entender. É um estado, não um entendimento.

O começo da peça (e os começos das peças são muito determinantes) estabelece os modos de ver e escutar. Em um primeiro momento, o foco é nítido e fechado. Aos poucos, o campo vai se abrindo e o espectador pode começar a escolher onde prefere deter os olhos. Depois, mais tarde na peça, o olhar pode deslizar de uma extremidade a outra do palco. Mas os focos fechados do início dão a medida da atenção, a precisão do olhar. O mesmo acontece com a escuta. Nesse processo de montagem com os focos e a escuridão, as falas dos atores sobram ou se interpelam no escuro, apontando a necessidade de aprumarmos os ouvidos.

Outro dispositivo que sustenta a atenção sobre a peça é o que identifico como um jogo com a mediação. As imagens da peça, como já vimos, são construções de uma artificialidade. Os conteúdos estão mediados e esta mediação é explícita (embora nada explicada). Há alguns elementos da cena que evidenciam essa operação: os degraus entre o palco e a plateia, que recebem o mesmo tratamento que o palco (os degraus também são espaço cênico, não são acesso ao palco); os microfones e os efeitos sonoros sobre as vozes dos atores, as cadeiras de plateia que são parte do cenário (tanto as que ficam em cima do palco quanto as que formam uma fileira cenográfica diante da primeira fileira de espectadores); as legendas para as falas do personagem italiano.

A mediação é o próprio teatro. Não há encenação que possa transmitir qualquer coisa de maneira pura. A ideia mesma de encenação diz respeito a isso, um pensamento/prática que dá forma a algo que a priori não tem uma materialidade. Trata-se de uma articulação de materialidades (o espaço, a luz, o som, as roupas ou a ausência delas, os corpos e vozes dos atores, aquilo que eles dizem, seus silêncios). Pode-se encenar uma peça sem grande elaboração sobre as materialidades, mas também com determinado tipo de elaboração que também trabalhe sobre o próprio apagamento, como as encenações hipernaturalistas. A atuação naturalista, por exemplo, trabalha pelo apagamento da elaboração, da mediação da técnica, o que pode causar, por exemplo, a impressão de que o ator não está atuando, ou seja, que seus  gestos e atitudes são espontâneos e não milimetricamente planejados e construídos. Em Krum, não há tentativa de apagamento dos efeitos de teatralidade. A encenação nos mostra seus dispositivos.

Um exemplo disso é uma cena em que Truda (Renata Sorrah) e Krum (Danilo Grangheia) estão em uma cena íntima e Tachtich (Rodrigo Ferrarini) os observa – não só como se estivesse no mesmo ambiente, mas por fazer parte da mesma peça. Em um determinado momento, Truda, Tachtich e Krum estão cada um em um degrau. Em outros momentos, também podemos perceber que um ator/personagem assiste à cena, mesmo que apenas por alguns instantes. É claro que isso também pode ser interpretado como um comentário de ordem temática, do significado, do contexto. Mas prefiro – porque assim experimento a peça – atentar para esses corpos-espectadores como sinais de presença, como agentes de escuta. Eles atuam como “repetidores”. Se há em cena um corpo que está ali para apenas ver e escutar, as ações de ver e escutar se aguçam no meu corpo. Aquele corpo que está dentro, mas meio fora da cena, me coloca mais para dentro da cena, me captura. O momento em que me recordo especificamente dessa sensação é ao final da cena no cinema, quando se inicia um diálogo entre os personagens de Danilo e Renata, mas Rodrigo Bolzan (nem como Shakita, nem como Bertoldo) permanece sentado na plateia do cinema por um pouco mais de tempo e sai ainda escutando os outros dois.

Outro exemplo de mediação enfatizada pode ser apontado quando Felicia (Cris Larin) e Dolce (Edson Rocha) fazem perguntas para a mãe de Krum (Grace Passô). Ela está em pé no centro do palco, iluminada por um foco. Eles estão sentados em uma fileira lateral de cadeiras, iluminada separadamente, e se dirigem a ela através de um microfone. É como se o eixo palco-plateia girasse até estar perpendicular, como se o público começasse a ver um corte longitudinal da relação palco-plateia no teatro, embora Felicia e Dolce não estejam exatamente assistindo à mãe de Krum, mas conversando com ela. Já em outro momento, quando Tviztzi, (outra personagem de Grace) visita Dupa (Inez Viana): dá-se a impressão de que os personagens estão assistindo à “cena” da extravagante Tviztzi com o seu amante italiano, Bertoldo (Rodrigo Bolzan); soma-se a isso a projeção de legendas para as falas desse personagem. A cena faz um Raio X do encantamento por personagens cuja vida parece ser exceção, pela viagem a outros países, a riqueza dos outros, a liberdade dos outros, um exame da relação do público com o cinema comercial ou com o teatro que ostenta uma espécie de luxo material, ou mesmo com a novela na televisão. À direita, vemos figuras que são objetos de desejo; à esquerda, sentados nas cadeiras de uma plateia, vemos corpos que desejam, mas que se sabem distantes.

Foto: Nana Moraes.
Foto: Nana Moraes.

A cena do cinema é mais uma ênfase na mediação. A descrição do filme feita por Krum é o oposto do real. E os atores se posicionam de frente para a plateia, espelhando a condição dos espectadores, como se a peça desse mais uma volta sobre o próprio eixo. Parece-me que tais operações explicitam a artificialidade do teatro, a artificialidade que é “contar uma história” e, com isso, a encenação tem um ganho de teatralidade sobre um material prévio, um texto dramático, sobre o qual se poderia pensar que não demanda tanta elaboração. Assim, o drama salta da sua própria forma, como um gênero ampliado.

Há ainda outros artifícios de descolamento. Os efeitos sonoros do espetáculo, criados pelo autor da trilha da peça, Felipe Storino, desnaturalizam as falas e operam recortes de formas e conteúdos. Consequentemente, esses efeitos desnaturalizam a escuta – e isso é uma conquista imensa, tendo em vista que ouvir sem escutar é um fenômeno comum da vida urbana contemporânea e consequentemente do teatro. O trabalho da peça sobre a escuta muito se deve à continuidade da pesquisa da companhia brasileira de teatro e de Marcio Abreu, que costuma falar sobre esse problema em debates e entrevistas sobre teatro.

A música e as citações em língua estrangeira também são artifícios que dão um efeito de suspensão à peça. A música cantada por Edson Rocha e pelo elenco ao fim da festa de casamento é praticamente uma ode ao intempestivo, provoca um corte, abre a narrativa, fazendo-a respirar. A música pode ser um truque para a emoção, efeito antecipado pelas falas iniciais de Tugati (Ranieri Gonzalez), que quer usar a música para chorar e, com isso, relaxar e se sentir melhor. Mesmo quando o ator começa a cantar, ele não antecipa, não anuncia, a abertura que a música vai provocar – o que provavelmente contribui para a sua efetividade. Não se pode prever, diante de um contexto tão duro, de vozes graves, escuridão, precisão de movimentos e frases secas e violentas, que vá irromper tão solar epifania.

A imagem mesma do piano como elemento cenográfico que ganha destaque na segunda metade da peça também sinaliza o impulso lírico da encenação. Sua presença bagunça as molduras do olhar. O piano não é da casa de um personagem. Não parece que um dos personagens é músico e vai se apresentar para os demais. O piano é elemento de cena, não de narrativa.

Por fim, também podemos apontar que o destaque para determinadas frases nos mostra uma dramaturgia que também é um pouco epifânica. Pelo menos em alguma medida. Por essas frases, parece que a peça tem um discurso – não necessariamente um discurso que se fecha, que resolve questões – mas um discurso no sentido do comentário. Algumas frases não parecem frases de personagens, são frases de escritor, têm um tratamento literário, nada naturalista no sentido do teatro, mesmo quando parecem banais. Vale lembrar que só podemos enxergar isso por causa do trabalho da tradução experiente de Giovana Soar, que é tradutora de teatro, não está exercendo a função momentaneamente e nem por acaso. A forma como algumas frases são ditas, meio suspensas da cena, sutilmente separadas daqueles que falam, pode ter um efeito interessante de endereçamento aleatório. Elas são emitidas como se não fossem endereçadas a ninguém especificamente, mas é justamente isso que faz com que elas acertem o alvo da escuta do espectador.

 

Referências bibliográficas:

ARGAN, Giulio Carlo. “O “realismo” na poética de Caravaggio”. In: Imagem e persuasão – Ensaios sobre o barroco. Org. Bruno Contardi. Trad. Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 193 a 109.

BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

DUBATTI, Jorge. “A poética teatral em marcos axiológicos: critérios de valoração”. Trad. Luciana Romagnolli. In: Questão de Crítica Vol. VII, nº 62, junho de 2014  Disponível em http://www.questaodecritica.com.br/2014/06/a-poetica-teatral-em-marcos-axiologicos-criterios-de-valoracao/

 

Daniele Avila Small: Doutoranda em Artes Cênicas pela UNIRIO, Mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio e Bacharel em Teoria do Teatro pela UNIRIO. Autora do livro O crítico ignorante (Editora 7Letras, 2015) e da peça Garras curvas e um canto sedutor (Cobogó, 2015).

 

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