Uma tentativa de diálogo

Crítica da peça Vida, da Companhia Brasileira de Teatro

12 de maio de 2010 Críticas
Foto: Bruno Tetto

A Companhia Brasileira de Teatro saiu do processo de dois anos dedicados à literatura de Paulo Leminski tendo gestado uma obra autônoma: Vida. Os temas do poeta paranaense sobrevivem no espetáculo que estreou no Festival de Curitiba na medida em que vão diretamente de encontro aos interesses do grupo, muito identificado à dramaturgia francesa de um teatro em que a palavra germina em contextos frágeis de conversação.

Entre os escritos do poeta brasileiro, foram as sutilezas no trato com a linguagem e um universo impregnado por uma identidade curitibana ainda pouco problematizada artisticamente, os aspectos que mais contaminaram a companhia dirigida por Márcio Abreu. Coincidindo com a mudança do grupo do Rio de Janeiro para uma sede no centro histórico de Curitiba, a presença na cidade emergiu como um dos fios da textura dramatúrgica; outro são as estratégias que permitem o estabelecimento de um diálogo entre dois indivíduos. Juntam-se em uma observação crítica da existência nesse microcosmo, ao mesmo tempo em que Vida tangencia uma visão mais ampla, ainda que inevitavelmente vaga, do que significa estar no mundo.

O palco se apresenta, então, como lugar de encontros: sobretudo, de uma tentativa de diálogo. Mesmo que nem sempre a conexão entre os indivíduos se estabeleça e, nesses casos, sirva ao menos como ambiente privilegiado da expressão do eu. A própria maneira como Nadja (Naira) entra em cena pode ser lida como uma observação sobre a vida: espontânea e aleatória, confronta seres que não necessariamente têm pressupostos comuns a compartilhar, mas, uma vez postos em convívio, precisam instaurar algum modo de comunicação.

A princípio, nada une os quatro personagens que se encontram tão-somente para ensaiar um número musical. Guardam dos seus intérpretes os nomes e características pessoais, enfraquecidos por isso enquanto personagens ficcionais, mas, em contrapartida, fortalecidos pela biografia dos corpos e das personalidades daqueles indivíduos únicos que os representam. Nadja, Ranieri (Gonzalez), Giovana (Soar) e Rodrigo (Ferrarini) são enclausurados na sala de ensaios, isolados do mundo para que sobre eles recaia a atenção capaz de distinguir as manifestações particulares de cada personalidade, suas transformações à mercê do tempo e do contato com o outro.

A relação com o ambiente está no centro da concepção do espetáculo. Insinua-se quando o público é rememorado do instante e do espaço presentes, tanto pelo discurso direto quanto pelo uso radical da ausência de iluminação. O cenário se configura como um salão em que a única porta existente está escamoteada e é preciso atirar-se contra a parede para rompê-la. Um espaço cênico que (literalmente) se amplia e reduz, como a visão de mundo de quem está dentro ou fora de um contexto: é a deixa para que observações ácidas sobre hábitos locais desvelem a identidade curitibana, que permanece pouco consciente do seu interior, mas se torna mais delineável a partir de um ponto de vista externo. Faz-se a crítica, paradoxalmente, elaborando um sentimento de pertencimento.

Em oposição a esse microcosmo, também a dimensão da vida como fato cósmico é posta em questão. Frente à impossibilidade de se apreender e dizer a grandeza essencial, porém, a dramaturgia deixa que as trivialidades do cotidiano se desenrolem, para que de seus vãos escape algum entusiasmo, forjando momentos breves de elevação.

Foto: Bruno Tetto

Nesse sentido, a fala de Ranieri, mais de uma vez dispersada, se impõe sintomática: “Eu estava pensando nos quinze minutos da minha vida que fizeram diferença no resto da minha vida.” Seus quinze minutos cruciais, quando chegam, constituem o auge emocional e energético do espetáculo. Ao microfone, transformado, Ranieri extravasa sua voz potente como pura energia sonora, em vez de veículo de um discurso: comunica uma vibração emocional e uma sensação mais grave de estar no mundo ao abolir as palavras. O momento finito de elevação vem para sugerir que a vida é feita de emoções e da falta delas. Outro pico, mais baixo, se dá no monólogo catártico de Giovana, quando o temperamento controlador cede à necessidade de conforto, num rompante de comoção.

Alimentada por lascas biográficas, a montagem toma o rumo de um desejo de realidade sem tentar forjar uma ilusão mimética. Vai por vezes em direção a um registro coloquial, sendo o máximo dessa aproximação a cena em que Giovana apresenta diretamente ao público as tatuagens de Ranieri. Nesse momento, a encenação abre-se para o naturalismo, confundindo limites entre personagens e atuadores, dentro das possibilidades restritas do trato documental numa situação roteirizada e repetida de palco. São, afinal, mais do que atores ou personagens, sujeitos que se expressam no mundo.

Pela fala esses indivíduos se constituem, a fala é ação: cria as zonas de interação onde brotam identificações e rancores. A palavra os consola da inação, como já o fizera Tchékhov, uma vez que a imobilidade supera os acontecimentos factuais (e os poucos infiltrados na dramaturgia são sempre interrompidos). Na prática, porém, a linguagem se organiza de modo irregular, por retalhos de diálogos e réplicas em desajuste que obedecem aos impulsos de expressão, revelando verdades íntimas, desejos, obsessões e falhas apenas timidamente.

Márcio Abreu não constrói propriamente uma história, mas uma composição, à qual a linguagem cede suas estruturas. O ritmo, atributo da prosódia, é chave para o funcionamento dessa engrenagem. A qualidade de sua direção está exatamente na sintonia fina que realiza, orquestrando os tempos e as nuances de silêncio e som, tensão e distensão, numa descontinuidade calculada. Como dramaturgo, reside no enredamento intrincado de temas sem que aparentemente nada suceda na superfície além da própria dinâmica conversacional. De um emaranhado de trivialidades, saltam frases memoráveis insinuando que têm mais a significar do que denotam, num mecanismo de embreagem pelo qual se pode alcançar outro nível de compreensão.

Ao jogar com a capacidade humana de dar significado ao que ouve e vê, a companhia reencontra o sentido cósmico que havia na obra de Leminski: a consciência do homem como único ser que lança seu olhar ao alto e ao incognoscível, tentando decifrar-lhe os sentidos. Aquele mesmo ser cuja expressão seminal é a da interrogação, da qual partirá para compreender seu estar no mundo e para percorrer a distância até o outro, seu desconhecido e semelhante, ainda que seja iniciando um diálogo banal.

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