Teatros

Artigo sobre o o 50º Theatertreffen (Encontro teatral), que acontece em Berlim

23 de outubro de 2013 Estudos

Entre 3 e 12 de maio último, estive em Berlim, a convite do Ministério Alemão das Relações Exteriores, para acompanhar algumas das atividades do impressionante Theatertreffen (Encontro teatral), que comemorava em 2013 sua 50ª edição.

Durante os anos da Guerra Fria, o Theatertreffen era uma das raras oportunidades de intercâmbio oferecida aos artistas das duas Alemanhas. Com a reunificação, em 1989, o encontro se tornou a grande festa do teatro, na qual profissionais do mundo do espetáculo de língua alemã se encontram com um público sempre numeroso e interessado, celebrando a diversidade do panorama teatral contemporâneo.

A cada edição, o Festival convida 10 espetáculos selecionados por um júri de 7 críticos que, no ano anterior, percorre grandes e pequenas cidades da Alemanha, Áustria e Suíça para escolher as montagens que mais lhe chamaram a atenção. Essas montagens se caracterizam por ser remarkable (bemerkenwert, em alemão), notable ou attractive, termos empregados pelo crítico Christof Leibold, um dos jurados responsáveis pela seleção ao longo de 2012, em Seminário destinado aos convidados estrangeiros do Festival.

Cada um dos sete membros do júri tem um mandato de três anos e, a cada ano, dois ou três integrantes do corpo de jurados são substituídos. Cabe a cada um deles ver, em média, 110 peças por ano não só em grandes cidades como Berlim, Hamburgo, Colônia, Viena, Zurique, mas também em cidades menores onde há teatros estatais. A escolha do que será visto pela comissão – espetáculos in e off – é orientada por dossiês de imprensa, críticas, comentários de especialistas e de pessoas interessadas em teatro.

O júri se encontra cinco vezes por ano, para esboçar uma lista de espetáculos pré-selecionados, que devem ser assistidos por todos os integrantes do comitê. Cada jurado trabalha em sua região, mas tem autonomia para viajar para onde quiser para ver montagens que lhe chamem a atenção. O trabalho não é remunerado, mas traz prestígio e estreita laços entre os críticos e deles com a classe teatral.

Ainda segundo Christof Leibold, as discussões são quase sempre acirradas e é preciso defender suas escolhas. Há espetáculos que suscitam tantas polêmicas entre os jurados que precisam ser assistidos mais de uma vez e há também montagens escolhidas sem que tenha havido consenso ou sequer maioria de votos dos jurados para sua indicação. Com bom humor, ele observa que “só os grupos selecionados aplaudem a seleção”. Os críticos que não integram o júri costumam propor listas alternativas e os espetáculos preteridos reclamam… Como saldo de tanta trabalheira, ele conclui que, na posição de jurado, o crítico se torna mais atencioso e delicado com o trabalho alheio – o que não é pouca coisa!

Yvonne Büdenhölzer, diretora do Theatertreffen, lembra que, no tocante aos jornais, que dedicam cada vez menos espaço à crítica de espetáculos, o Festival é um parceiro de peso: ao enviar os críticos para assistir a espetáculos não só na Alemanha, mas também na Áustria e na Suíça, ele propicia uma visão de conjunto do teatro em língua alemã, colaborando para a abrangência do olhar desses profissionais e, consequentemente, refinando sua percepção do panorama teatral. A organização do Theatertreffen dispõe de um orçamento de um milhão e meio de euros, acrescida da bilheteria dos espetáculos.

Christof Leibold foi o primeiro dos muitos profissionais que, a cada dia, apresentavam seu trabalho ao grupo de 32 convidados de 27 países da Europa, da Ásia e das Américas levados a Berlim pelo Ministério das Relações Exteriores. Esses encontros nos ajudavam a nos situar diante da realidade teatral de língua alemã e a conhecer um pouco mais das atividades de fomento e intercâmbio da Alemanha com parceiros estrangeiros.

O grupo incluía majoritariamente diretores de espetáculos, mas também produtores, diretores artísticos de teatros, curadores de festivais, professores universitários e de cursos livres, autores, tradutores, atores, editores, jornalistas, críticos e dramaturgistas.

A primeira das nossas atividades foi uma rápida apresentação do trabalho de cada um, em pequenos grupos que iam se alternando à volta de meia dúzia de computadores onde eram mostrados os brevíssimos panoramas que preparamos de nossa trajetória. Nessa comunicação cabiam trechos comentados de espetáculos, algumas informações sobre o teatro em nossos países, além de projetos em curso e para o futuro imediato. Assim, ainda confusos com tantas culturas e línguas (embora o inglês fosse a língua franca), fomos mapeando afinidades e simpatias e descobrindo, com curiosidade, realidades distantes e outras formas de viver o teatro. Havia convidados da Bielorússia, da Ucrânia, da Lituânia, da Hungria, da República Checa, da Bósnia, da Romênia, da Islândia, da Grécia, do Iraque, da Índia, da Indonésia, do Japão, de Cingapura, da Coréia do Sul, da China, do Vietnam e, provenientes das Américas, foram convidados profissionais do Canadá, dos Estados Unidos, do México, do Paraguai, do Chile, da Venezuela, da Bolívia, da Colômbia e do Brasil.

A iniciativa do Ministério das Relações Exteriores contou com a colaboração do Goethe Institut para a organização de uma programação capaz de nos familiarizar, em tempo recorde, com a estrutura e o funcionamento do Theatertreffen – articulado em diversas iniciativas, das quais os espetáculos eram o aspecto mais visível, mas não o único. Para tanto, havia uma equipe de quatro “anjos” (que, em conjunto, falavam uma enormidade de línguas) que nos acompanhavam durante as atividades e nos ajudavam a resolver todo tipo de problema ou dúvida que surgisse. Além disso, pudemos contar, nos debates e encontros, com a mediação de Susanne Traub, responsável por Teatro e Dança do Instituto Goethe de Munique.

Todos os dias nossas atividades se iniciavam com um encontro com profissionais envolvidos nos espetáculos assistidos na véspera. Assim, pudemos conversar com encenadores, diretores artísticos e dramaturgistas e ter uma ideia mais precisa do funcionamento dos teatros estatais e das iniciativas consideradas mais alternativas, como, por exemplo, o HAU (Hebbel am Ufer) – todos sustentados, em maior ou menor grau, por verbas públicas.

O HAU, que pudemos visitar e cujas principais diretrizes nos foram apresentadas por sua diretora, Annemie Vanackere, é um teatro independente, que enfatiza o intercâmbio internacional, desde sua reabertura no fim da década de 1980. O HAU recebe espetáculos internacionais, promove festivais e residências artísticas com vistas à realização de co-produções em teatro, dança e música. Se a dotação orçamentária é menor que a de um teatro estatal, como, por exemplo, o Deutsches Theater, há também menos obrigações. A estrutura artístico-profissional do HAU é ágil e enxuta, repousando sobre um pequeno número de profissionais de diferentes países e tendências. Não há uma equipe fechada de criação, como nos teatros estatais, mas contratos temporários com artistas e técnicos. O experimentalismo é a tônica e, em sua maioria, os espetáculos têm como objetivo, além das apresentações em Berlim, turnês pela Alemanha e pela Europa.

As possibilidades de fomento a iniciativas internacionais ligadas à contemporaneidade nos foram apresentadas por Torsten Mass, diretor da seção de Teatro e Dança da Kulturstiftung des Bundes (Fundação Nacional de Cultura da Alemanha). Para a concessão do apoio, que pode chegar a 250 mil euros por projeto, são levados em conta qualidade artística, relevância para sociedade, caráter internacional, envolvimento das instituições culturais do país de origem e capacidade de captação junto a outros parceiros.

Além dos 50 anos do Theatertreffen, foram comemorados em 2013 os 35 anos do Stückemarkt (Mercado de peças teatrais): 30 autores, que participaram do Festival nos últimos 35 anos, foram convidados a escrever mini-peças a partir do tema “Declínio e queda da civilização ocidental?”, inspirado no título de Gibbon para seu livro sobre a decadência do império romano. Os textos criados em resposta a essa provocação foram agrupados nas três partes de uma maratona que, a cada dia, apresentava oito encenações e uma peça gravada (como para o rádio), dirigidas por diferentes encenadores, com ou sem a colaboração de dramaturgistas. A isso se somou, em imagens de um Arquivo Cênico, a participação de 5 autores, já falecidos, e cuja contribuição foi relevante em edições anteriores do Mercado de peças.

Dos dez espetáculos selecionados pelo Theatertreffen, pudemos assistir a seis, em dois teatros à italiana (a Haus der Berliner Festspiele, sede do Festival, e a Volksbühne am Rosa-Luxemburg-Platz) e no espaço reversível Radialsystem V, uma antiga estação de bombeamento de água, adaptada em 2006 para acolher e estimular o diálogo entre diversas artes.

A amostra era bastante variada: Medeia, de Eurípides; Murmel Murmel, a partir da obra do artista plástico Dieter Roth, que pertenceu ao grupo Fluxus; Jeder stirbt für sich allein (Cada um morre sozinho), adaptação do romance de Hans Fallada; Guerra e paz, baseado no romance de Tolstoi; Die Strasse. Die Stadt. Der Überfall (A rua. A cidade. O ataque), encomenda da companhia Münchner Kammerspiele a Elfriede Jelinek, por ocasião do sesquicentenário da Maximilian Strasse, a rua do consumo elegante de Munique, que concentra, em 150 metros, as lojas das mais caras grifes de moda e Reise durch die Nacht (Viagem através da noite), a partir da narrativa da escritora austríaca Friedrike Mayröcker. Completavam a seleção Disabled Theater, criação de Jerôme Bel com atores com Down ou retardos cognitivos, Santa Joana dos Matadouros, de Brecht, Die Ratten (Os ratos), de Gerahrt Hauptmann e Orpheus steigt herab (A descida de Orfeu) de Tennessee Williams.

Como se pode perceber, a variedade foi a tônica: textos dramáticos convencionais, adaptações de romances, clássicos ou contemporâneos, textos criados especialmente para a cena, mas com marcas específicas de outros domínios artísticos (o texto de Dieter Roth era uma obra visual, criada em 1974, e o texto de Jelinek não apresentava a forma dramática tradicional, cabendo à equipe distribuir as falas pelos personagens).

Além da qualidade do trabalho do conjunto dos atores, chamaram-me a atenção, em especial a propriedade, a beleza e a funcionalidade dos dispositivos cênicos dos espetáculos a que pude assistir. Em Medeia, dirigido por Michael Thalheimer (Schauspiel Frankfurt) a protagonista permanece sempre sobre um patamar descomunal, que ocupa toda a largura da cena e que, no início do espetáculo, está encostado à parede do fundo do teatro, avançando à medida que a trama se desenrola. Diante da dor de Medeia, os demais personagens parecem insignificantes. O deslocamento desse imenso praticável em direção à boca de cena, aliado ao fato de o coro estar reduzido a uma única mulher, nos remetem diretamente às transformações da história do teatro no ocidente. Da tragédia ao drama, o protagonista foi tomando cada vez mais a dianteira em relação ao conjunto dos personagens, colocando-se o mais das vezes, no centro do proscênio, isto é, no foco do olhar do espectador.

Martin Rentzsch e Constanze Becker. Foto: Birgit Hupfeld.

O teatro à italiana e os recursos da ópera barroca aparecem de modo muito interessante em Murmel Murmel, três atos de Dieter Roth que consistem de uma única palavra repetida ao infinito: Murmel, que tanto significa murmúrio, quanto resmungo, prece ou fofoca. O autor, artista plástico que integrou o movimento Fluxus, queria escrever a peça mais chata do mundo, e acabou por produzir um objeto-livro (há três deles), em que o texto tem disposição gráfica semelhante à das peças convencionais e se divide entre diversas vozes, sem que haja, no entanto, especificação de trama ou criação de personagens. Por sugestão da dramaturgista Sabrina Zwach, o diretor Herbert Fritsch, da Volksbühne am Rosa-Luxemburg-Platz, escolheu esse material, provocação dramatúrgica de um artista plástico, para a criação de um espetáculo realmente peculiar. Onze atores, com figurino inspirado nos anos de 1950-1960 e que remetem aos filmes de Jacques Tati, em especial a Playtime, dançam e apresentam o “texto” com incontáveis variações de tom e andamento. Cada “fala” consta de certo número de repetições da palavra Murmel e o pulso do espetáculo é dado pela música que cada ator inventa para suas falas, uma música toda feita de ritmo.

Mas o que é efetivamente impressionante é a musicalidade que ele imprime ao cenário: o centro do espaço cênico está livre, e dos dois lados do palco à italiana estão tapadeiras que se completam com o telão de fundo e que vão sendo tingidos pela luz, sempre em cores vibrantes, com preferência para as cores primárias. À medida que o espetáculo avança, os trainéis laterais começam a se movimentar, bem como o telão de fundo, contracenando com os atores e às vezes escorraçando-os para fora de cena. Também as bambolinas descem, recortando os intérpretes na horizontal. Os efeitos desse diálogo entre a forma humana e os elementos da arquitetura cênica, todos em movimento, são muito estimulantes para a plateia, que vai ao delírio com as figuras apresentadas. A hábil orquestração da repetição e da diferença cria uma espécie de ritual – por definição aquilo que se repete no tempo. Mas um ritual profano em que, por meio da arte, o humano se manifesta em todo o seu vigor, com alegria e ironia.

Seis semanas de ensaios foram dedicadas pelo diretor Luk Perceval, do Thalia Theater, de Hamburgo, à adaptação do romance de Fallada Jeder stirbt für sich allein (Cada um morre sozinho). Os atores foram criando esquetes em que a abordagem privada, particular, que o autor propõe do nazismo se desdobra em cenas curtas nas quais algozes e vítimas se misturam, deixando claro que o regime de Hitler se aliou ao que há de mais egoísta em todos os escroques.

Jeder stirbt für sich allein. Foto: Annette Kurz.

No centro do espaço cênico uma grande mesa, usada algumas vezes como um pequeno palco. Ao fundo, um impressionante painel, idealizado pela cenógrafa Annette Kurz, que reproduz um mapa de Berlim construído com quatrocentos objetos do dia a dia, coletados com os funcionários do teatro. A impressão é que são o rescaldo de uma grande explosão, e seu caráter misterioso é reforçado pela luz baixa que caracteriza o espetáculo e remete ao difícil acerto de contas da Alemanha com seu passado recente. Isso permeia também a opção dramatúrgica por um final idealizado, diferente do do romance. Neste, o marido e a mulher que distribuíam cartões postais com mensagens contra o regime são presos e se acusam mutuamente para salvar a própria pele. No espetáculo, eles são transformados num casal de heróis da resistência e morrem sonhando um com o outro. O amor e a utopia parecem vencer o medo e o desespero.

A impressionante adaptação de Guerra e paz, apresentada pelo Centraltheater Leipzig, com direção de Sebastian Hartmann se valia de um cenário ao mesmo tempo imponente e simples, idealizado pelo diretor e por Tilo Baumgärtel, para enfatizar, sobretudo nas duas primeiras partes, as grandes questões do texto de Tolstoi – o Eu, o Amor e a Morte.

Uma enorme plataforma de madeira escura, que basculava em todos os sentidos, era encimada por uma plataforma de luz nas mesmas dimensões, também capaz de inumeráveis variações tanto na intensidade da iluminação quanto na posição. Este dispositivo cênico geométrico e modulável serviu à perfeição à adaptação que não se preocupou em seguir fiel e detalhadamente as tramas do romance, mas, ainda assim, conservou as contraposições entre os espaços privados e públicos, com ênfase nos campos de batalha (é memorável a cena em que, numa estepe nevada, de uma raposa nasce Napoleão).

Guerra e paz. Foto: R. Arnold.

A preocupação central do espetáculo é enfatizar o caráter universal das preocupações do romance de Tolstoi. Assim, além do cenário abstrato, foram evitadas, em grande parte, as marcas realistas na construção das figuras: nem sempre há correspondência de gênero entre ator e personagem e muitas vezes uma voz coletiva se encarregava das falas de um único indivíduo.

Na passagem para a terceira e última parte da peça (que dura cinco horas, com dois intervalos), são projetados textos que sublinham o caráter reflexivo do espetáculo, acentuado neste último movimento por uma aula de filosofia completamente hilária, em que são empregados, entre outros, vários recursos de cabaré.

A cena final reitera de forma emocionante os conceitos-chave tanto do romance quanto da encenação: a plataforma está posicionada como uma ladeira, cuja vertente mais alta está no fundo do palco. Os quatorze atores se sentam, amontoados, num pequeno retângulo de luz desenhado pela projeção de um filme de imagens rápidas demais para que se perceba exatamente o que são. A velocidade da projeção parece aproximá-los de nós, os espectadores. Abaixo deles, um caixão de repente se desenha e sombras de mapas e galáxias são projetadas, tudo no limite da invisibilidade. Até que, por fim, eles desaparecem, na escuridão.

Em Die Strasse. Die Stadt. Der Überfall, criado pelo Münchner Kammerspiele a partir do texto de Jelinek, o espaço cênico de Eva Veronica Born previa espectadores instalados também sobre o palco, recoberto de pedrinhas de gelo por contrarregras, assim que a plateia se acomodava.

Die Strasse. Die Stadt. Der Überfall. Foto: Julian Röde.

As luzes que cercavam pelos quatro lados a área de atuação faziam brilhar ainda mais a “rua” e a vitrine onde se dispunham os cinco músicos e os atores quando não estavam atuando. Além dessa caixa de vidro, havia uma construção retangular, como uma banheira, ou um túmulo aberto, aos quais faltasse uma das paredes do lado menor. Por ali entravam em cena os atores, vindo de algum porão ou subterrâneo. Atuação, números cantados e/ou instrumentais fazem da montagem de Johan Simons um ácido comentário a respeito do consumismo e da transitoriedade de todas as coisas: moda e morte associados. As pedras de gelo dificultam o deslocamento dos atores, todos de salto alto, inclusive os homens, com espécie de cintas que os aproximam mais dos manequins de resina do que dos modelos de desfile. O texto é fragmentário, recortado e organizado pela equipe a partir do imenso original de Jelinek. Personagens alegóricos se misturam com personagens reais e há tiradas muito engraçadas como a da militante que foi a uma reunião do Partido Comunista com uma bolsa Chanel e ninguém notou, para sua grande decepção.

O desencantamento dos ícones da moda, ressaltado pela encenação que os apresenta de forma parcelar e irônica, ecoa as referências ferinas da autora à cultura ocidental, também ela muitas vezes reduzida a um mercado de vaidades. Não é mera coincidência que o Münchner Kammerspiele, que comemora com esta montagem seu centenário, se situe na Maximilian Strasse, um pouco à margem do quarteirão das grifes, mas não tão distante que ambos, a rua e o teatro, não possam ser considerados como ícones da abastança de Munique.

Reise durch die Nacht, com direção de Katie Mitchell, apresentado no Radialsystem V, organiza o espaço cênico da seguinte maneira: embaixo, ocupando toda a largura da cena, sets com a reprodução de compartimentos de um trem noturno – uma cabine de passageiros, a cabine do fiscal, o corredor –, além de um estúdio de rádio e a sala de uma casa de família dos anos de 1960. Acima, uma superfície para projeções feita de madeira e com algumas irregularidades que tornam a imagem um pouco suja. A ação, entrecortada, filmada de modo descontínuo por vários operadores de câmera, resulta, no entanto, numa narrativa fílmica fluente. O grande interesse está, justamente, nesta decalagem entre o que vemos ser filmado e o resultado, que varia em consequência dos procedimentos de câmera utilizados (closes, por exemplo). Não é a trama o mais importante no espetáculo, mas justamente esse jogo entre o making of e o filme a que assistimos, que claramente estabelece um contraponto com o que os atores apresentam ao vivo. A personagem feminina tenta reconstituir um passado traumático para poder prosseguir, assim como o teatro tenta articular suas especificidades às novas tecnologias. O que o espetáculo parece nos dizer é que toda fluidez, toda continuidade é forjada e que é preciso desmontar as engrenagens para não se deixar levar pela ilusão – no caso do teatro, a persistente ilusão do realismo.

Gostaria de concluir relatando brevemente a experiência itinerante Remote Berlin, concebida por Stefan Kaegi, egresso da Universidade de Giessen, de onde saíram muitos dos artistas mais instigantes do panorama cultural alemão dos últimos 15 anos.

Stefan integra o grupo Rimini Protokoll, que desde 2003 tem sua residência artística no HAU. Seu trabalho é conhecido dos brasileiros pelas várias experiências desenvolvidas pelo grupo em nosso país: Matraca/Catraca, em Salvador, em 2002; Torero/Portero, apresentado no riocenacontemporânea de 2005 e Chácara Paraíso, criado com policiais de São Paulo, em 2007.

Remote Berlin conduz o grupo de participantes por uma série de lugares da cidade: uma praça pública, uma agência de correios, uma estação de metrô na qual pegamos um trem para saltar em Zoologischer Garten e visitar a Gedächnis Kirche, que, apesar de reconstruída após a segunda guerra, manteve parte de sua estrutura em ruínas, para que não se esqueça o que se passou (Gedächnis significa, literalmente, memória). Depois de uma pausa de alguns minutos na igreja, o grupo segue para um shopping onde se misturam lojas de brinquedos de guerra e lojas de armas de verdade. O passeio acaba no terraço de um hospital, de onde se vê parte da cidade.

O caráter documental da experiência, que pode ser recriada em duas semanas em qualquer outra cidade (logo depois de Berlim, teve lugar a versão lisboeta do trabalho), é contrabalançado pela natureza quase science fiction da narração que ouvimos. Uma voz feminina, impessoal, metálica, como as que nos falam nas gravações de GPS, desfia um texto em que, por um lado, se gaba de não ser como os humanos e, portanto, não sofrer os achaques e limitações da humana condição, mas, por outro, manifesta uma certa nostalgia daquilo que caracteriza os seres humanos, principalmente o livre arbítrio.

As 50 pessoas que partilham essa experiência de convivialidade urbana itinerante são às vezes divididas em subgrupos e se tornam espectadoras umas das outras. Também pode acontecer de nos transformarmos em personagens misteriosos para os que assistem à passagem do grupo, munido de headphones, mas sem outros indícios que ajudem na sua identificação. A brincadeira que nos leva da realidade à ficção e vice-versa tem seu ponto alto na sonoplastia criada para acrescentar uma trilha de ruídos plausível para os espaços observados, mas totalmente fictícia. Diante da praça vazia, ouvimos sons tão nítidos de brincadeiras infantis que o gramado deserto passa a ser quase uma aberração, uma alucinação ao contrário, suprimindo o que, para nós, era mais do que real, a partir do que ouvíamos.

Nas experiências de Antônio Araújo com o Teatro da Vertigem, igreja, hospital e presídio abrigavam espetáculos em que o ficcional de algum modo ressignificava a realidade do espaço real transformando-o em espaço cênico sem apagar as marcas da sua história. Em Remote Berlin, o fictício recobre de forma muito tênue os espaços percorridos, que se prestam mais à reflexão sobre sua inserção na estrutura da cidade e sobre nossa passagem por eles do que a uma narrativa imaginária efetivamente encadeada.

***

O grande painel formado pelo conjunto de espetáculos, debates, fóruns, leituras dramatizadas, festas, estágios internacionais, prêmios, blog não só dá uma noção do estado do teatro de língua alemã como pode servir de horizonte para iniciativas semelhantes em outras latitudes.

E, mais que tudo, o exemplo de continuidade para além das adversidades que o 50º Theatertreffen nos oferece deve nos servir de exemplo e estímulo, a nós que vivemos em países onde, em matéria de arte, muita coisa ainda há por fazer.

Fátima Saadi é tradutora e dramaturgista da companhia carioca Teatro do Pequeno Gesto, no âmbito da qual edita a revista Folhetim e a coleção Folhetim/Ensaios.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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