As pranchas da enciclopédia de Mariano Pensotti

Crítica da peça Cineastas, do Grupo Marea

30 de junho de 2014 Críticas

Vol. VII, nº 62, junho de 2014

Resumo: Análise crítica do espetáculo teatral Cineastas, do dramaturgo e encenador argentino Mariano Pensotti, a partir da ideia de dramaturgo-rapsodo de Jean-Pierre Sarrazac, da montagem como operação cênico-dramatúrgica e em aproximação com a poética da imagem enciclopédica de Roland Barthes. O artigo leva em consideração outros aspectos da montagem teatral como a cenografia e o trabalho dos atores.

Palavras-chave: dramaturgia contemporânea, teatro argentino, dramaturgo-rapsodo, montagem, imagem enciclopédica.

Resumen: Análisis crítico del espectáculo teatral Cineastas, del dramaturgo y director argentino Mariano Pensotti, a partir de la idea del dramaturgo-rapsodico de Jean-Pierre Sarrazac, del  montaje como operación escénico-dramatúrgica y en una aproximación con la poética de la imagen enciclopédica de Roland Barthes. El artículo considera otros aspectos del  montaje teatral como la escenografía y el trabajo de los actores.

Palabras clave: dramaturgia contemporánea, teatro argentino, dramaturgo-rapsódico, montaje, imagen enciclopédica.

Traducción de Manuel Guerrero :: http://www.questaodecritica.com.br/2014/06/las-laminas-de-la-enciclopedia-de-mariano-pensotti/

As pranchas da enciclopédia de Mariano Pensotti


Foto: Bea Borgers.

A proposta deste texto é tecer algumas considerações sobre o espetáculo Cineastas, de Mariano Pensotti, que esteve na primeira edição da MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, em março de 2014, no palco do Auditório do Ibirapuera. Procuro pensar a dramaturgia de Pensotti em relação com algumas ferramentas teóricas que aparecem em discussões atuais sobre a escrita no teatro. Para tanto, recorro à leitura de algumas peças do autor, às quais não assisti, e a registros em vídeo de trechos de espetáculos que estão disponíveis no seu site, como La Marea e Interiores, bem como à memória do espetáculo O passado é um animal grotesco, que fez algumas apresentações no Espaço Cultural Sérgio Porto no segundo semestre de 2011 na programação do Tempo Festival.

Cineastas é uma co-produção do Complexo Teatral de Buenos Aires e do Grupo Marea com alguns festivais: Kunstenfestivaldesarts de Bruxelas, Wiener Festwochen, HAU Hebbel Am Ufer Berlin, Holland Festival, Festival d’Automne Paris, El Cultural San Martin e Festival Theaterformen Hannover/Braunschweig. Isso quer dizer que se trata de uma peça que já foi concebida para se apresentar fora de seu país. No entanto, não devemos pensar, com isso, que se trata de um espetáculo cômodo para plateias de outras línguas. Esse dispositivo de produção, em que verbas de diferentes países viabilizam a criação de uma obra, parece proporcionar ao artista criador uma autonomia com relação às possibilidades de financiamento em sua própria cidade, que às vezes limitam a criação a produções mais modestas.

Dispositivo cenográfico

A cenografia tem um papel fundamental nos trabalhos do grupo. A cenógrafa Mariana Tirantte, em artigo publicado junto com as peças de Mariano Pensotti, explica que há uma combinação entre ela e o autor de começar sempre do zero. Assim, cenografia e dramaturgia caminham juntas desde o início. Acredito que isso permita que a cenografia seja como um dispositivo dramatúrgico, um pensamento sobre o espaço que é determinante para a encenação, mais que um elemento determinado por ela.

Em O passado é um animal grotesco, o cenário é um carrossel, dividido em quatro partes, que gira ininterruptamente, em uma velocidade lenta o suficiente para que as cenas aconteçam na parte que fica de frente para o público enquanto as demais são cenografadas na parte voltada para o fundo do palco. A cada volta do carrossel, cada uma dessas partes apresenta um espaço diferente: um quarto num apartamento, um quarto de hotel, um parque, um escritório, etc. Nesses diversos cenários, a vida de quatro personagens se passa através de uma década. Na medida em que o carrossel gira, o tempo passa. A cenografia apresenta materialmente a passagem de tempo. E a passagem de tempo é um tema da peça: a ação do tempo sobre a vida dos personagens, inevitável como o movimento do dispositivo cenográfico.

O passado é um animal grotesco. Foto: Dalton Valério.

Em Cineastas, a cenografia remete a uma moda do cinema francês dos anos 1960, conhecida como split screen: a tela é dividida e nela se apresentam cenas diferentes simultaneamente. O cenário é uma caixa branca de dois andares. Na parte inferior, desenrolam-se as narrativas da “vida real” dos personagens. Na parte superior, os atores fazem as cenas dos filmes que os personagens estão realizando. Em cada andar, há uma saída de cada lado, ao fundo. São espaços idênticos, que recebem tratamentos diferentes em um primeiro momento.

Os dois espaços apresentam, inicialmente, um contraste. Há um acúmulo de móveis e objetos na parte inferior e uma economia na parte superior. Ao longo do espetáculo, a parte inferior vai sendo esvaziada, aos poucos, até que as duas ficam praticamente idênticas, como se a distância entre a realidade e a ficção fosse diminuindo com o tempo. A iluminação parece acompanhar esse movimento. No começo, em cada um dos espaços, o foco recortado em uma cadeira no centro do palco sugere uma semeslhança. Na medida em que o espetáculo começa, vemos diferença. A luz no plano inferior é, quase sempre, uma geral branca, que ilumina todo o espaço sem recortes. Já no plano superior, a iluminação é mais cinematográfica, apresentando recortes, focos, zonas escuras, cores fortes, blackouts. Em alguns momentos, um marrom avermelhado lembra a coloração dos negativos dos filmes. Ao final, com os dois espaços parecendo dois palcos nus, é como se o teatro aparecesse – talvez como um lugar de encontro entre o cinema e a vida.

Para aqueles que assistem à peça em países em que não se fala o castelhano, as legendas são projetadas entre os dois andares. Tendo em vista que o espetáculo foi produzido para estrear fora da Argentina, é possível imaginar que a integração desse recurso à cena tenha sido uma preocupação desde o início. Além de estar perfeitamente encaixada no cenário, a legenda funciona como mais um elemento cenográfico e dramatúrgico. Sua localização espacial é quase uma ponte a mais entre a vida dos personagens e sua criação ficcional. Em outros trabalhos como La Marea, espetáculo instalado numa rua de uma grande cidade, e A veces creo que te vejo, intervenção realizada em estações de trem, a legenda já apareceu como elemento constitutivo da cena. Daí também percebemos a familiaridade dos criadores com essa prática.

Foto: Bea Borgers.

Temas e narrativas

A peça apresenta a história de quatro cineastas pelo período de um ano de suas vidas, durante o qual estão realizando um filme. Gabriel (Javier Lorenzo), diretor de filmes comercias, descobre que tem uma doença terminal enquanto filma uma comédia em Buenos Aires sem pretensões artísticas. Mariela (Valeria Lois), que está fazendo um documentário sobre a dissolução da União Soviética, vive uma crise conjugal e se põe em busca das raízes russas de sua família adotiva. Nadia (Juliana Muras), uma cineasta independente em um ótimo momento profissional, é contratada por produtores franceses para dirigir um filme sobre um militante desaparecido que retorna para a família em 2013, o que traz à tona sua história pessoal e familiar com o desaparecimento de seu próprio pai. Com dinheiro roubado do McDonald’s onde trabalha, Lucas (Marcelo Subiotto), um cineasta pobre, realiza um filme com um discurso crítico contra as multinacionais, filmado nos finais de semana com atores amadores. As histórias são vividas e narradas alternadamente pelo elenco, que também conta com Horacio Acosta.

Essas quatro narrativas se abrem em variações temáticas pelas vidas e pelos filmes dos personagens, que em alguns momentos remontam a situações já abordadas pelo autor em outras peças e oferecem imagens possíveis da Buenos Aires contemporânea – como acontece, de certo modo, em O passado é um animal grotesco. O cinema é um grande tema, naturalmente, bem como seus diferentes modos de produção. A cidade é como um quinto protagonista, cujas imagens vão aparecendo por trás das histórias. As primeiras frases do texto do narrador situam a produção cinematográfica portenha desde a primeira película filmada em Buenos Aires em 1905, apontando que, desde então, foram realizados mais de dois mil e quinhentos filmes e sugerindo que a cidade tem uma consciência histórica da sua filmografia.

A narrativa de Gabriel mostra a presença do cinema comercial e contrasta esse tipo de produção com a preocupação com a posteridade, algo que arrebata o artista quando ele ganha consciência da proximidade de sua morte. Dos quatro cineastas, Gabriel é o único que tem uma filha, o que também aciona a preocupação com o que é duradouro, com a necessidade de deixar um legado. As cenas dos filmes de Gabriel são simples e cômicas no início e adquirem inesperada melancolia depois. A história de Mariela, cineasta premiada, mostra uma ideia diferente de cinema, de cunho acadêmico. Como ela está pesquisando musicais soviéticos para seu documentário, a encenação nos mostra esses registros, com cenas coreografadas com um apelo formal, nada cotidianas. Na sua vida pessoal, aparece a busca pelo estrangeiro e pelo passado, um dado romântico da sua atividade artística.

Já Lucas e Nadia fazem referência à história política da cidade. Nadia, jovem homossexual feliz e realizada profissionalmente, é assombrada pelo desaparecimento de seu pai militante na ditadura, tema que aparece aqui do ponto de vista dos filhos, de uma geração que vê essa situação histórica deste outro degrau. Além dessa crise, Nadia também fica angustiada porque apesar do seu sucesso cinematográfico independente, ela se vê numa espécie de armadilha profissional, tendo que realizar um filme comercial açucarado que explora uma imagem clichê da América Latina para agradar ao público europeu, que pode dar a ideia ilusória de que todos os desaparecidos podem estar vivos em algum lugar. Lucas pertence a um segmento da sociedade que não tem privilégios. O cinema que pode realizar (apenas nas horas vagas, com dinheiro roubado e material barato) é muito diferente dos outros três. No seu filme, um homem é sequestrado, espancado, mantido em cativeiro e alimentado com hambúrgueres frios. Depois de um tempo, os sequestradores o obrigam a ter uma vida completamente diferente: trabalhando fantasiado como Ronald McDonald, sem poder contactar sua família ou amigos, sob ameaça de morte. Essa narrativa é parecida com a situação 8 de La Marea, a história de Martín. Parece que este procedimento de sequestro sem resgate era um tipo de tortura praticada durante a ditadura.

O cinema está no imaginário dos personagens de Pensotti. Em La Marea, um deles sonha ser como Jean-Paul Belmondo dirigindo à deriva em um Citröen amarelo. Em O passado é um animal grotesco, um dos personagens quer ser cineasta. O cinema é uma forma de enquadramento, uma maneira de ver a si mesmo ou o seu entorno. O cinema é uma forma de ver a cidade. Como se pode ler no site do autor, “nunca conhecemos as cidades pelas histórias de seus habitantes, mas por sua produção ficcional.” As grandes cidades são mais conhecidas, em países estrangeiros, pelo cinema ou pela literatura. A circulação dos espetáculos de Mariano Pensotti por festivais internacionais nos faz conhecer, de certo modo, a cidade de Buenos Aires pelo teatro.

O gosto pelas grandes narrativas, o projeto de megaficção (expressão usada pelo autor) parece ter uma pretensão enciclopédica, uma preocupação de dar a ver a amplitude tanto quanto o detalhe. Essa dinâmica da passagem do plano aberto para o recorte e vice-versa é uma operação dramatúrgica que me remete à ideia de dramaturgo-rapsodo de Jean-Pierre Sarrazac, apresentada em seu livro O futuro do drama.

Romancização do teatro

Sarrazac faz uma afirmação nesse livro, que é sua tese de doutorado, que me parece interessante para pensar a dramaturgia em Cineastas e na obra de Mariano Pensotti. Diante do questionamento sobre o conceito de drama, da desconfiança com relação ao termo que se pode ver nos estudos sobre o teatro contemporâneo, Sarrazac esclarece que houve uma expansão no conceito de drama.

“Mas se o drama ressuscita, hoje, qual Fênix, não é das cinzas do gênero defunto, é sim, bem pelo contrário, emancipando-se definitivamente da noção de gênero. Nem transcendente aos gêneros, nem gênero em si mesmo, o drama moderno representa, a meu ver, uma das formas mais livres e mais concretas da escrita moderna.” (SARRAZAC, 2002, p.27)

Ter a literatura como uma espécie de cânone no teatro por um longo período, respaldado por uma historiografia do teatro calcada no texto, fez com que o espetáculo teatral fosse pensado como uma mera tradução da literatura dramática até o final do século XIX no teatro ocidental. Para Diderot, o romance seria o estado original de uma peça. O naturalismo do final do século XIX, por exemplo, com sua cena narrativa, até mesmo descritiva, era parente próximo da literatura – vide a parceria entre André Antoine e Émile Zola. Assim, até certo ponto, o romance foi um modelo para o drama, um caminho para a emancipação das formas no teatro. A reflexão sobre a romancização dos gêneros literários remonta a Mikhail Bakhtin, que confiava no poder emancipador do romance sobre as demais formas, por considerar o romance acanônico por excelência. Não vamos nos deter nessa questão, mas o apontamento é válido na medida em que Sarrazac traz essa discussão à tona para perceber a romancização do teatro como operação de ruptura às formas teatrais canônicas.

Durante o século XX, o teatro tentou – tenta ainda? – se livrar desse legado. A literatura passou a ser o inimigo do teatro. Para fazer compreender que o espetáculo não é algo menor que o texto, parece que o teatro precisava se livrar do seu parentesco com a literatura. A ideia de uma superação do drama pode ser pensada neste sentido: uma crença em uma “evolução” do teatro, uma superação do drama enquanto gênero – no seu sentido literário.

A dramaturgia de Mariano Pensotti é, antes de mais nada, descritiva e narrativa. A literatura é uma referência para sua escrita – mais especificamente, os romances do século XIX. Ou seja: o inimigo é sua inspiração. Parece que a dramaturgia de Pensotti desfruta de uma liberdade particular. Talvez isso se dê por uma espécie de tranquilidade na lida com as interferências. Seu hibridismo não parte de qualquer rejeição de categorias ou gêneros. A presença do romance na sua dramaturgia não é uma negação do teatro nem uma afirmação da literatura. É uma característica espontânea da sua escrita, consequência do desejo.

Diante da sua verve narrativa e da forma como sua escrita é trabalhada na teatralidade, me pergunto se Mariano Pensotti pode ser pensado como um dramaturgo-rapsodo, aquele que “junta o que previamente despedaçou e, no mesmo instante, despedaça o que acabou de unir” (idem, p.37), que pratica a vivissecção (uma intervenção invasiva em um organismo vivo), que corta e cauteriza, costura e descostura. Sobre essa ideia, vale conferir o verbete Rapsódia, do Léxico do drama moderno e contemporâneo, também de Sarrazac, do qual selecionamos aqui um breve trecho:

“Trata-se, portanto, acima de tudo, de operar um trabalho sobre a forma teatral: decompor-recompor – componere é ao mesmo tempo juntar e confrontar –, segundo um processo criador que considera a escrita dramática em seu devir. Logo, é precisamente o status híbrido, até mesmo monstruoso do texto produzido – esses encobrimentos sucessivos da escrita sintetizados pela metáfora do “texto-tecido” –, que caracteriza a rapsodização do texto, permitindo a abertura do campo teatral a um terceiro caminho, isto é, outro ‘modo poético’, que associa e dissocia ao mesmo tempo o épico e o dramático.” (SARRAZAC, 2012, p. 152-153)

A ideia de rapsódia está relacionada àquela reflexão sobre a romancização dos gêneros literários que mencionamos anteriormente, mas processada em outro momento histórico, diante de outras noções de dramaturgia. O pensamento sobre a romancização do teatro na atualidade, segundo Sarrazac, não está imbuído de uma expectativa de emancipação ou de modernização do drama. Trata-se praticamente da constatação desta operação em um panorama da dramaturgia francesa da segunda metade do século XX – mas que, naturalmente, não se restringe a ela. Sobre esse assunto, no mesmo léxico acima citado, vale consultar os verbetes Romance-rubrica e Romacização.

O que pode ser interessante de se pensar é como a voz rapsódica aparece na dramaturgia de Mariano Pensotti, a que ponto ela chega em Cineastas, e o que ela provoca no espectador.

Em La Marea, Interiores, O passado é um animal grotesco e Cineastas, há sempre um narrador. Em La Marea, a voz narrativa aparece em projeções de legendas que situam o espectador a respeito do passado, do presente e do futuro dos personagens, dos quais os espectadores veem apenas um fragmento de vida, ao passear por uma rua de uma grande cidade. Em Interiores, os espectadores escutam a narração por fones de ouvido, enquanto entram em diferentes apartamentos (e no terraço) de um edifício. Em O passado é um animal grotesco e Cineastas, espetáculos encenados em um teatro, a narração é feita de dentro da cena, por atores com microfones, que compartilham o espaço da ação com os personagens.

La marea. Foto: http://marianopensotti.com/

Em Cineastas, assim como em O passado é um animal grotesco, o trabalho do ator é um dos lugares dessa operação de despedaçamento: ora narrador, ora objeto da narração. O estatuto da atuação é despedaçado. A fala, especialmente, é cortada e reconstituída – o papel da fala oscila entre o épico e o dramático durante todo o espetáculo. O autor dirige a palavra diretamente ao público, como fazem os romancistas – mas indiretamente, porque usa a voz dos atores. A enunciação se parte em várias vozes, uma vez que a peça não tem um só narrador. Além disso, o conteúdo da fala desliza da descrição feita por um narrador onisciente para o que seria um monólogo interior do personagem cuja história está sendo contada: esse deslizamento encerra ao mesmo tempo uma espécie de corte e a sua possível sutura.

O narrador se desloca no espaço: pode estar afastado da cena dialogada que acontece simultaneamente à narração ou muito próximo a ela, pode ocupar uma região mais escura do espaço, ou até sair de cena, como se estivesse em off. A natureza da narração também não é unívoca: pode haver modulação no tom, no ritmo, na intensidade. A voz do narrador onisciente por vezes se mistura à voz interior dos personagens, assumindo essa interioridade na entonação, falando como o próprio personagem falaria. É uma voz exterior que se afeta, ao mesmo tempo em que informa e comenta.

A voz narrativa também não é uma figura única. O microfone passa constantemente de um ator a outro. O narrador às vezes parece um espectador dentro da cena, enquanto escuta os diálogos e aguarda o momento de começar a falar. Mesmo que, depois de algum tempo, estejamos acostumados com a presença dessa figura, podemos reparar que há algo não natural na cena, uma presença estranha, um corpo que não faz parte daquela organicidade. Assim, algumas vezes, mesmo quando há apenas diálogos, há esse elemento visual desconcertante, uma presença que fura a fruição do que poderia ser percebido como uma cena tradicional de teatro dramático.

Toda a movimentação personagem-narrador afeta as atuações. São atuações-narrativas. Há uma objetividade na lida com o ritmo e com a continuidade das narrativas, uma neutralidade comprometida, uma prontidão. Isso não significa que os momentos de dar a ver a interioridade dos personagens não sejam possíveis, mas a interioridade não é enfatizada, não demanda um tempo para si.

O que me interessa, particularmente, na investida de Pensotti no literário, na extensão da narrativa, na mescla de diálogos cotidianos com comentários reflexivos por parte um narrador, na dinâmica de corte e recorte do lugar de onde se fala, está no apelo que estas estratégias dramatúrgicas fazem à escuta. Isto me parece bastante rico do ponto de vista da teatralidade e uma questão especialmente contemporânea: a escuta é uma falta. O autor-rapsodo desperta os ouvidos.

Cinema, montagem, imagem

A montagem é um princípio constitutivo da dramaturgia, um modo específico de pensar a relação com o espectador a partir de uma gramática de convivência das imagens. É a montagem que permite que se conte histórias com imagens. Sua função é, antes de mais nada, narrativa. Podemos pensar, a princípio, que a montagem em Cineastas não é como uma colagem, que surpreende pelo aleatório, mas uma montagem da ordem da planificação, da continuidade, sem sobressaltos. Em pouco tempo, o espectador entende a alternância das narrativas e já sabe que vai ver, a seguir, alguma continuidade do que foi interrompido anteriormente. Nesse sentido, o cinema de Cineastas seria um cinema clássico. Mas, no interior da narrativa, na divisão do palco em duas partes, há possíveis visões de colagem. Assim como o texto narrado, que não descreve necessariamente o que se passa, mas leva o espectador para outro lugar, as imagens também não cumprem uma função reiterativa. Há diferentes regimes de apresentação de imagens na peça.

Se pensarmos a peça em uma linha horizontal, vemos a montagem de planificação, tranquilamente narrativa, com quatro linhas paralelas que se alternam com uma cadência que não varia muito. Mas, se olharmos para a peça no seu apelo vertical, se olharmos para as imagens no palco, a relação é outra. A natureza da montagem é outra. A construção da narrativa na imaginação do espectador é feita nesse cruzamento vertical de imagens sobre quatro narrativas paralelas em alternância.

Em Cineastas, a cenografia de Mariana Tirantte faz com o movimento do olhar do espectador o que a maquinaria de O passado é um animal grotesco faz com o espaço cênico. É o olhar que circula – mas sem uma direção unívoca: olha na direção que quiser. É nesse ponto que Cineastas me faz pensar na Enciclopédia de Diderot e D’Alembert conforme análise de Roland Barthes no seu ensaio As pranchas da Enciclopédia.

Imagem da Enciclopédia.

Barthes apresenta as pranchas da Enciclopédia expondo o regime das imagens da maior parte das pranchas, que são divididas ao meio: um eixo paradigmático e um eixo sintagmático.

“A maioria dessas pranchas é formada de duas partes; na parte inferior, a ferramenta ou o gesto (objeto da demonstração), isolados de qualquer contexto real, são mostrados em sua essência; constituem a unidade informativa e essa unidade é, no mais das vezes, variada: detalham-se os seus aspectos, elementos, espécies; essa parte da prancha tem como função declinar de certo modo o objeto, manifestar o seu paradigma; ao contrário, na parte superior, ou vinheta, esse mesmo objeto (e suas variedades) é captado numa cena viva (geralmente uma cena de venda ou de confecção, loja ou oficina), encadeado a outros no interior de uma situação real; encontra-se agora a dimensão sintagmática da mensagem; e da mesma forma que no discurso oral o sistema da língua, perceptível principalmente no nível paradigmático, fica de algum modo escondido por trás do fluxo vivo das palavras, assim também a prancha enciclopédica joga ao mesmo tempo com a demonstração intelectual (por seus objetos) e com a vida romanesca (por suas cenas).” (BARTHES, 2004, p.111-112)

Para estabelecermos o paralelo, é preciso fazer uma inversão. No espetáculo, é na parte de cima que estão os objetos da demonstração – os filmes –, isolados do contexto real, e variados de acordo com as propostas estéticas dos cineastas, cada um com seus aspectos, elementos, espécies. Cada filme é uma declinação do objeto “filme”: sua demonstração intelectual. Na parte inferior do dispositivo cenográfico é que vemos o que corresponde ao que Barthes chama de vinheta, onde se apresentam as “cenas vivas”, o que no início do texto chamei de “vida real” dos personagens, que se desenrolam em um regime sintagmático: a vida romanesca.

A vinheta tem uma função épica, narrativa. As “vidas reais” dos personagens (em sua relação com os objetos que criam, os filmes) são apresentadas em narrativas lineares, em episódios e estações, para usar termos de Barthes. Elas narram o trajeto da feitura dos filmes, assim como as vinhetas da Enciclopédia mostram a feitura de um vestido ou de um tapete, numa dinâmica de causa e feito, que confere circularidade à imagem que envolve os dois planos em uma relação dialética. Barthes propõe duas leituras possíveis: de cima para baixo ou de baixo para cima. Aí está o privilégio da imagem sobre o texto escrito:

“O privilégio da imagem, nesse aspecto oposta à escrita, que é linear, está em não impor nenhum sentido à leitura: uma imagem é sempre privada de vetor lógico (experiências recentes tendem a provar isso); as da Enciclopédia possuem uma circularidade preciosa: pode-se ler a partir do vivido ou, ao contrário, do intangível: o mundo real não fica reduzido, está suspenso entre duas grandes ordens de realidade, na verdade irredutíveis” (BARTHES, 2004, p. 117-118)

Aí também aparece o desdobramento da pesquisa do grupo entre O passado é um animal grotesco e Cineastas. Naquela, a escritura do espetáculo, materializada na cenografia, era linear como o tempo objetivo, inexorável. Os personagens estavam centrados em suas vidas, na lida cotidiana com as coisas prosaicas. Em Cineastas, a imagem bipartida abre a experiência do tempo: o presente e a posteridade, as vidas vividas e as imagens projetadas, o efêmero e o que vai permanecer registrado. A vida se desdobra em obra. E o espectador pode observar as vidas a partir das obras ou as obras a partir das vidas. O olhar circula nessa montagem enciclopédica, o pensamento também.

Se nos acostumamos com a relação de pertencimento entre os cineastas e seus filmes, também experimentamos o corte, o desprendimento provocado pela cisão dessa continuidade. A falência do projeto de deixar um legado diante da iminência da morte no caso de Gabriel, por exemplo, ou o questionamento da legitimidade ou da coerência do seu filme por parte de Lucas: estas são situações que provocam uma fissura entre as duas partes, uma espécie de dissociação no interior de uma imagem que vemos como um todo. Assim, a peça põe em jogo a questão da relação entre a vida e a criação artística, dando a ver a complexidade da relação, deixando em aberto a direção da leitura, sem fechar o que determina o quê. Essa seria a poética da imagem enciclopédica, nas palavras de Barthes.

Mas não é só pela possível semelhança na gramática das imagens de Cineastas com as pranchas da Enciclopédia na leitura de Barthes que me propus a pensar o universo criativo de Mariano Pensotti como da ordem das enciclopédias. Me parece que há um impulso enciclopédico na sua dramaturgia, um desejo de abarcar situações diversas, cujas narrativas proporcionam um amplo alcance de circunstâncias exemplares, de personagens emblemáticos, de referências a ruas e bairros da Buenos Aires contemporânea, assim como de ícones cinematográficos e marcas da vida urbana globalizada. Sua enciclopédia, contudo, não é uma enciclopédia de fatos, personagens, histórias, mas algo como um grande inventário ilustrado de afetos.

Imagem da Enciclopédia.

Referências bibliográficas:

AMIEL, Vincent. Estética da montagem. Tradução de Carla Bogalheiro Gamboa. Lisboa: Edições Texto & Grafia Ltda, 2007.

BARTHES, Roland. As pranchas da enciclopédia In: O grau zero da escrita seguido de Novos ensaios críticos. Tradução de Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

PENSOTTI, Mariano. El pasado es un animal grotesco y otras piezas teatrales. Buenos Aires: Colihue, 2002.

SARRAZAC, Jean-Pierre. O futuro do drama. Escritas dramáticas contemporâneas. Tradução de Alexandra Moreira da Silva. Porto: Campo das Letras, 2002.

___________________. Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

VILLAR, Fernando. Os olhares alheios e as vívidas vidas de Mariano Pensotti. In: Cartografias.mitsp_01 Revista de Artes Cênicas. Número 1 – 2014

Site do autor, com informações sobre a peça, fotos e vídeos com trechos do espetáculo: http://marianopensotti.com/cineastas.html

Sugestões de leitura:

Críticas produzidas pelo Coletivo de Críticos da MITsp, publicadas no blog Prática da Crítica:

Cinematografia da realidade teatral. Por Pollyanna Diniz do blog Satisfeita, Yolanda? e Até que se viva algo especial, não se poderá viver nada. Por Ana Carolina Marinho da Antro Positivo http://mitsp.org/criticas-Cineastas/

Revisitando Cineastas ou dois frames de críticas gerando um quadro (crítico). Por Ana Carolina Marinho, da Antro Positivo, em diálogo com o Coletivo de Críticos: http://mitsp.org/metacritica-Cineastas/

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