O embate do homem comum

Crítica da peça Nossa cidade, de Thornton Wilder, dirigida por Antunes Filho

22 de dezembro de 2014 Críticas

Vol. VII, nº 63, dezembro de 2014

Resumo: O texto realiza uma análise da peça Nossa cidade, escrita pelo dramaturgo norte-americano Thornton Wilder e encenada pelo CPT/SESC e Grupo de Teatro Macunaíma, sob a direção de Antunes Filho. A perspectiva da análise aborda o pensamento a respeito do homem comum como agente da história. Procuramos apresentar alguns elementos fundamentais que compõem a encenação neste sentido.

Palavras-chave: Thornton Wilder, Antunes Filho, Hannah Arendt, Michel De Certeau.

Abstract: The article carries out an analysis of the play Our Town, written by American playwright Thornton Wilder and staged by the CPT / SESC and Grupo Teatro Macunaíma, directed by Antunes Filho. The perspective of the analysis covers the thought about the common man as an agent of history. We present some basic elements that make up the staging in this regard.

Key-words: Thornton Wilder, Antunes Filho, Hannah Arendt, Michel De Certeau.

O embate do homem comum

Leonardo Ventura. Foto: Emídio Luisi.

Introdução

Sempre é bom recordar que não se devem tomar os outros como idiotas.

(DE CERTEAU, apud Luce Giard, no prefácio de A invenção do cotidiano).

Nossa cidade encena em sua reconstrução o texto do romancista e dramaturgo norte-americano Thornton Wilder, que trata do cotidiano de uma cidade do interior dos Estados Unidos no início do século XX, Grover’s Corners, por meio da figura de duas famílias, os Gibbs e os Webb. Com a criação desta cidade fictícia, mas que se baseia nas vivências interioranas de Wilder como apontam alguns críticos, o autor sugere com formas sintéticas ou até mesmo mais próximas aos clichês, uma espécie de retrato subjetivo da sociedade de seu país. Se por um lado esta intenção simbólica pode assumir um caráter mais de apagamentos das diferenças e uma leitura um tanto rasa do que seria a complexidade da esfera social, por outro lado, a investida no clichê pode dar margem para a aproximação de sentidos que normalmente não estariam colocados em paradigmas comuns.

Esta tensão parece configurar a encenação de Antunes Filho na medida em que tanto utiliza a figura épica do narrador criada por Wilder para extrapolar o contexto histórico, agora tensionado pela intervenção norte-americana nos conflitos contemporâneos, quanto investe numa atuação que leva o clichê a um ponto de dobra. O que estamos considerando dobra – em uma alusão livre aos comentários deleuzianos sobre a noção de Leibniz – é o que pode acontecer justamente pela inscrição do gesto codificado no lugar central como significação. Esta insistência em significar por, digamos assim, efeitos superficiais ou marcados de comportamento, resulta na peça numa dobra, numa espécie de reiteração cujo fundamento e resultado é a sugestão de que os modos mais estereotipados que constroem nosso comportamento social e, portanto, o que está à mostra ou mais na superfície, é justamente o material em que prolifera a chamada interioridade humana.

Segundo o que podemos pensar no trabalho de arte todo o significar compreende uma extensão em que uma palavra ou gesto remete para outras palavras, outros gestos em que nós criamos novas redes de sentidos. Assim, o argumento de Wilder a respeito da importância do lugar-comum, dos fracassos, das pequenas histórias ou de acontecimentos “desimportantes”, como podemos ler na publicação do programa da peça, são tratados pela reconstrução do diretor Antunes Filho por meio de uma poética que rebate espelhamentos ou ilusões mais fáceis quando expõe criticamente os determinismos sociais e o potencial bélico norte-americano.

Escrita em um tempo sombrio

A peça de Wilder elabora uma cena que se singulariza pelo mínimo de elementos cenográficos: em um palco praticamente nu estão duas mesas de madeira com cadeiras, as laterais e o fundo do palco estão cobertas por uma extensa cortina que se faz de coxia de cena e ainda integra o interior das casas/estabelecimentos. Logo no início da encenação uma pequena parte central da cortina se abre e deixa ver uma espécie de pintura naif, ou mesmo infantil de casas em um terreno campestre. Tal aspecto minimalista nos sugere a percepção da cidade de Grover’s Corners como um modo de representação do que seriam as cidades interioranas, com seus modos de vida, com as relações comunitárias em um regime de proximidade e talvez, com um campo de utopias limitado. O máximo de movimento que a cenografia propõe como imagem é o segundo andar das casas das duas famílias protagonistas.

Consideremos, portanto, que esta austeridade cenográfica é como um caráter da peça. A noção de caráter, mesmo vista como uma singularidade de algo ou de alguém, não deixa de ser um produto de atravessamentos culturais que as experiências em arte se interessam em romper, ao mesmo tempo em que propõem percepções de teor mais disjuntivo. Ainda em relação às marcas caracteriais, no que diz respeito a leituras psicanalíticas freudianas, considera-se fortemente seu aspecto de repetição que, como marca de comportamentos que delimitam sensivelmente as ações dos indivíduos, é entendido como resistência ativa. Fernando Pessoa, em seu heterônimo Álvaro de Campos, defendeu uma estética de força em oposição à estética aristotélica calcada no paradigma da arte que tem como finalidade a beleza. A atitude crítica do poeta reitera que as práticas da vida são as mesmas com as quais os artistas criam suas obras, são práticas de força vital que trabalham em um inesgotável movimento de desintegração e reintegração das formas:

“A força vital é dupla, de integração e de desintegração – anabolismo e catabolismo, como dizem os fisiologistas. Sem a coexistência e equilíbrio destas duas forças não há vida, pois a pura integração é a ausência da vida e a pura desintegração é a morte.” (Álvaro de Campos, Arquivo Pessoa, pg.2).

Então pensemos, como uma proposição de leitura perceptiva que emerge da cenografia em termos de um caráter austero da peça, que aqui podemos perceber uma tensão entre essa austeridade como um campo de possíveis das reinvenções estéticas na direção de romper com determinismos culturais, justamente pela insistência em se mostrar materialmente. Tal leitura nos indica que os personagens encontram suas linhas de fuga na matéria que forma seu cotidiano, na mesma medida em que deixam suas vidas escorrerem em um vazio existencial.

O texto de Wilder foi escrito em 1938 em um contexto que Hannah Arendt nomeou subjetivamente como “tempos sombrios” – a primeira metade do século XX que viu emergir “as catástrofes políticas, seus desastres morais e seu surpreendente desenvolvimento das artes e da ciência” (ARENDT, 2003, p. 7). A marca indelével deste contexto histórico é o legado do totalitarismo na sua feição do nazismo e do stalinismo que, pelo pensamento de Arendt torna-se mais poderoso e avassalador por seu modo de construir invisivelmente os discursos sociais, de criar camufladamente um âmbito público degradado em sua potência de verdade e sentido: nas palavras de Heidegger que a autora cita, uma “trivialidade incompreensível” (op. cit. p. 8).

As tensões entre a vida privada e o que se torna público aguçaram um pensamento nos estudos da história em que emergiu a necessidade de uma disciplina como a Filosofia da História, o que incluiu como questão a história vivida, a história do “cada um” que passou a se constituir como campo no que se entendia como história natural ou objetiva das sociedades. Nesta interface, as relações entre história e memória passam a interessar cada vez mais aos historiadores, inclusive a ponto de forjar a própria estrutura de suas investigações baseada num diálogo entre passado/presente que, longe de encarnar apagamentos, linearidades ou mesmo de reiterar a ideia de progresso iluminista, abre uma crise no que seria o sentido da história, sobretudo ao criar rasgos nas estimadas noções de origem ou de gênese. Atualmente, o conjunto do material que foi justaposto à história – a filosofia, a experiência individual, os modos de manejar o tempo, o clima, a própria noção de tempo vivido ou de sua duração, de tempos múltiplos ou relativos, subjetivos ou simbólicos – cria um espectro desagregador do aprendizado calcado por princípios de evidências, associados aos nossos modos de aproximação dos processos da vida, dos objetos, das coisas (LE GOFF, 1990).

A pesquisa sociológica e antropológica de Michel De Certeau exposta em seu livro A invenção do cotidiano, particulariza o homem comum como um herói anônimo ressoando no murmúrio da sociedade que vem de um tempo anterior aos textos e progride nos escritos até se tornar o centro das ocupações científicas. De Certeau, logo no início de seu livro, recorre a Michel Foucault em Vigiar e Punir quando este aponta o desempenho do poder por meio de procedimentos técnicos quase imperceptíveis, “minúsculos, atuando sobre os detalhes” e recriando a organização do espaço direcionada a operar uma “vigilância generalizada” (FOUCAULT, apud Michel De Certeau, 1998, pg. 41).

Pensando a complexidade destas duas noções para os estudos da história numa aproximação com os processos de criação estética, é possível dizer que o valor das práticas cotidianas como reinvenção do lugar comum promove necessariamente novos inícios a cada momento de seus modos de fazer nos processos estéticos. Assim, a determinação de uma origem para as causas sociais torna-se algo difuso, ou até mesmo impróprio como pressuposto. Wilder e Antunes parecem delimitar um campo de práticas do comum – como as experiências particulares, as freqüentações e as solidariedades das lutas – e realizam uma poética que investe nas variáveis e imprevisibilidades de seu objeto, inclusive sob a luz dos pequenos fracassos da vida. Temos aqui ainda um possível sentido que se pode apreender nesta relação que é a proposição de que o mito de humanidade na contemporaneidade é desconstruído em favor das ações dos pequenos coletivos, das ações dos bairros, desses encontros que nos trazem a sensação de pertencer a grupos que forjam suas singularidades em processos de subjetivação nascidos em acordos de proximidade. Como pensar as proximidades numa cidade como São Paulo sob o regime de cosmopolitismo e desigualdades? Uma possível linha de fuga é acreditar nas áreas livre da cidade em que figuram alguma coisa que se quer diante da tensão entre o concreto-morto e a pluralidade das manifestações.

Reconstrução: um olhar da posteridade

Sheila Faermann e Luiza Lemmertz. Foto: Emídio Luisi.

No caso de Nossa cidade, não se pode afirmar que a percepção da cidade fictícia numa espécie de universalização seja algo redutor, por exemplo, na medida em que se dinamiza a figura do Diretor de Cena criada por Wilder provocando um movimento mais determinado de distanciamento na recepção. Tal figura é um fator importante e propositor da reorganização de nossas relações com o mundo sensível exposto na cena justamente porque infere diretamente na qualidade com a qual o espectador vai elaborando o pensamento numa dinâmica que inclui sempre a sua suspensão, o que cria condições para que possamos perceber aquilo que a consciência apreende. O pensamento (ou a consciência) sempre é movido por uma vontade que não é absolutamente individual ou pura, já que está sendo constantemente atravessado pela cultura, como nos mostram os cartazes que ocupam o palco nu antes do início da representação, em que são anunciadas manifestações típicas da sociedade norte-americana como o Baseball, o show e os bailes.

A cena inicial já carrega todo um teor crítico da peça em relação à noção de nação, tanto porque aponta para o sentido de uma constituição nacional pluralizada, quanto pelo fato de tensionar a ideia liberal pela atuação rígida e cômica de corpos adultos que resultam em imagens de infantilismo. Lembramos que, na formulação da fenomenologia, pensamento e mundo são dois pólos inseparáveis, isto seria afirmar que a consciência é consciência de mundo e o mundo é mundo para uma consciência. Isto é o que Husserl chama de intencionalidade, ou seja, o fato de que a consciência está sempre procurando um foco em alguma coisa sensível.

Deste modo, é possível pensarmos que as descrições da cidade que o Diretor de Cena inicialmente realiza, ou suas antecipações do que irá acontecer e mesmo os dados das atualizações sobre os conflitos em que os Estados Unidos intervêm, trabalham com uma ideia que problematiza um inconsciente individual. Em uma conversa realizada por email com o ator que vive o Diretor de Cena, Leonardo Ventura, ele aponta a questão anti-bélica na peça estruturada como um olhar crítico da história:

Essa figura [o diretor de cena] como uma espécie de veterano de guerras que atravessa todos os tempos, sobretudo o narrador perdido, aquele do Walter Benjamin, que tem a experiência concreta e vem contar essa experiência. Mas que também passa por uma experiência diante do que acontece no percurso do espetáculo, e é tocado, pelo que vê, e não só faz a crítica, mas faz a crítica que surge justamente por enxergar a beleza que coexiste nessa sociedade patrocinadora de tantas tragédias.

Acredito ser importante atentar para o fato de que o Diretor de Cena carrega no corpo as marcas de um acontecimento histórico brutal, de modo que se trata da história materializada no que ela teria de mais irrepresentável, ou seja, sua dimensão de violência sobre os direitos e sobre a vida. Tal corporeidade ainda se afirma como algo não-inscrito no corpo dos demais atores – uma poética não-evidente e que permeia a atuação como uma sombra, uma região de opacidade que faz com que todos os personagens carreguem uma espécie de morte em vida. Todos têm uma qualidade de mortos-vivos, o que é uma sensação bastante suave ou de percepção subjetiva, constituindo do mesmo modo o processo de a-subjetivação de seus corpos, ou seja, corpos que se ajustam a práticas não-conscientes ou imperceptíveis. Talvez seja a marca dos “tempos sombrios” nos termos de Arendt em que os desejos ficam soterrados, as utopias desacreditadas e a liberdade sentida como apenas mais um sonho. A sensação é de que existe uma região quase lúgubre, de impedimentos que abrem os personagens aos seus vazios.

Um dos traços da reconstrução de Antunes está centrado na figura e nas potencialidades do ator. Os atores realizam um trabalho com a linguagem que, ao construir discursos enunciados de modo extremamente articulado, para além de provocar uma situação menos tradicional (ou em deslocamento) na recepção, acaba por produzir certas fraturas na escuta entre o que é dito e o que é apreendido. Ao mesmo tempo, como a temática nos parece externar comportamentos e pensamentos que estão bastante próximos das pequenas angústias do cotidiano de pessoas com aspirações muito simples ou mais imediatistas, o trabalho que é demandado do espectador também se aproxima de uma operação de reconstrução do próprio texto dramatúrgico.

Referências bibliográficas:

ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. Trad: Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

CAMPOS, Álvaro de. Apontamentos para uma estética não-aristotélica. file:///C:/Users/Administrador/Downloads/apontamentos%20para%20uma%20est%C3%A9tica%20n%C3%A3o%20aristot%C3%A9lica%20(1).pdf (Arquivo Pessoa).

DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Trad: Ephraim Ferreira Alves. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1998.

LE GOFF, Jaques. História e memória. Trad: Bernardo Leitão. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1990.

Dinah Cesare é teórica do teatro, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (EBA- UFRJ) dentro da Área de Teoria e Experimentações em Arte na Linha de Pesquisa Poéticas Interdisciplinares e mestra em Artes Cênicas pela UNIRIO.

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