O palco como travessia

Conversa com Antunes Filho

10 de junho de 2008 Conversas

Conversa publicada no jornal Tribuna da Imprensa no dia 24 de maio de 2008.

Apesar de considerar concluída a sua pesquisa sobre o trabalho vocal do ator, Antunes Filho continua um encenador inquieto. Em determinado momento da sua carreira, Antunes Filho deu uma guinada – mais exatamente quando dirigiu “Macunaíma”, a partir da obra de Mario de Andrade, com o Grupo Pau-Brasil.A partir daí, Antunes se afastou do chamado teatro de mercado para se dedicar ao aperfeiçoamento de um método de trabalho para o ator, que vem sendo desenvolvido ao longo dos anos no Centro de Pesquisa Teatral (CPT).

Atualmente, Antunes está apresentando “Senhora dos afogados”, novo mergulho na dramaturgia de Nelson Rodrigues, autor que já visitou em montagens como “A falecida”, na Escola de Arte Dramática, “Bonitinha mas ordinária”, “O eterno retorno” e “Paraíso Zona Norte”. Continua investindo na coordenação do projeto “Prêt-à-porter”, calcado na criação de cenas por parte dos próprios atores. Mantém a aposta em novos autores, oriundos do Círculo de Dramaturgia do próprio CPT. Depois de “O canto de Gregório”, de Paulo Santoro, é a vez de “O céu cinco minutos antes da tempestade”, de Silvia Gomez. E, em homenagem ao mestre do butoh Kazuo Ohno, acaba de estrear sua nova versão para “Foi Carmen”.

Os espetáculos recentes de Antunes sinalizam mudanças em sua concepção cênica. Os troncos sem copas das árvores e os belos aquários que compunham, respectivamente, as cenografias da excelente “Vereda da salvação” e de “Gilgamesh” cederam lugar ao palco mais desnudado, tomado “apenas” por objetos essenciais, casos das tragédias gregas (em especial, as versões de “Medéia”) e das edições do “Prêt-à-porter”. Mas é preciso sempre tomar o cuidado para não analisar as mudanças na trajetória de Antunes como meros contrastes. Mesmo antes de “Macunaíma”, seus espetáculos não eram comerciais. Diretor que acumulou experiência com os encenadores estrangeiros do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), Antunes Filho trabalhou no Teatro Íntimo Nicette Bruno e dirigiu montagens que já evidenciavam uma preocupação com o caráter investigativo da cena, a exemplo de “Esperando Godot”, com Lelia Abramo e Eva Wilma.

DANIEL SCHENKER – Pode-se dizer que o senhor busca realizar espetáculos autônomos em relação aos textos com os quais trabalha, sejam dramatúrgicos ou literários?

ANTUNES FILHO – Acho que não. Devo partir da raiz do texto para ser criativo. Tenho que voltar à primeira noite do autor antes de escrever a obra. Não posso me deixar levar por novidades. Atualmente, o teatro está vivendo de novidades.

DANIEL SCHENKER – Como o senhor se “relaciona” com o autor da obra com que trabalha no momento?

ANTUNES FILHO – Considero que Nelson Rodrigues está vivo hoje. Eu transmito o que ele fala no meu microfone. Sou, nesse sentido, um retrotransmissor. A cena se autodetermina. Cabe a mim ter a percepção. “Macunaíma” foi uma criação coletiva. Eu apenas indicava processos. Peço sempre para os atores pensarem no processo até acertarem a dinâmica interior da obra. Capto resíduos que vão passando por um processo de catalização. Purifico os resíduos até chegar novamente ao nada. Saio do nada para chegar ao nada. O homem pertence a um ciclo e a vida é isto.

DANIEL SCHENKER – Na sua opinião, qual é o estado mais adequado para o espectador assistir ao espetáculo?

ANTUNES FILHO – Precisamos de um espectador disponível. O objetivo é fazer com que o espetáculo atravesse o espectador e “morra” não se sabe exatamente onde dentro dele. Se o espectador se entregar, começará a ver coisas no palco. Quando você vê uma obra de arte, se entrega a ela e fica espiritualmente mais enriquecido. O milionário, segundo Adorno, não entende nada de obra de arte; apenas a compra. Até porque se não a entende, sente necessidade de adquiri-la, como se estivesse domesticando-a.

DANIEL SCHENKER – O senhor vem, nos últimos anos, investindo em concepções cenográficas cada vez mais “vazias”, desnudadas. O objetivo é o de permitir que o espectador projete a sua imaginação na cena?

ANTUNES FILHO – Sim. O palco é cada vez mais vazio justamente para o espectador projetar o seu inconsciente. Um livro é escrito por aquele que lê; do mesmo modo, quem faz o espetáculo é o espectador. Em “Senhora dos afogados”, os acontecimentos em cena quase sempre extravasam as bordas do palco, a exemplo das vozes que começam e terminam nos bastidores e também dos vários momentos em que os atores atravessam o palco. Fale um pouco sobre esta opção. Sim. A peça é uma travessia. Trata-se de algo que me remete à diferença entre o ator vivo e o ator morto. O vivo está em processo; o outro pode até ter movimento, mas é um cadáver. A vida não paralisa um único instante. Ela atravessa e cai no vazio. Um determinado estímulo me gera um tipo de respiração – que muda a cada novo estímulo. Cada sentimento tem a sua respiração.

DANIEL SCHENKER – O senhor tem vontade de voltar a trabalhar com atores mais experientes?

ANTUNES FILHO – Acho que haveria dificuldades de ambas as partes. Teria que me readaptar. Fale um pouco sobre o seu contato com Giorgio Strehler e os diretores italianos do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). Falar de Strehler é como falar de Ziembinski, Bollini, Celi, Jacobbi. Graças a eles tive base para trabalhar. Eles me adubaram com paciência. Sem isto, talvez tivesse permanecido apenas como um diretor de espetáculos à cata de novidades. Ziembinski me obrigou a adquirir uma técnica. É uma besteira, mas sem ela você não consegue acionar o que precisa, expressar o que deseja.

DANIEL SCHENKER – Há alguns anos, o senhor vem desenvolvendo um método sobre o trabalho vocal do ator. Em que estágio se encontra a sua pesquisa?

ANTUNES FILHO – Considero que o método está fechado com a montagem de “Senhora dos afogados”. Sempre tive a impressão de que a prosódia da língua portuguesa perdia a beleza quando projetada pelo ator. Isto porque o núcleo da projeção está fora do ator, à frente da boca – portanto, descolado, desvinculado da essência de suas sensações. O ator está comprometido com a sua fala e não pode ser diferente porque emprestamos nossos sentimentos aos personagens. Não há como se alienar do que se diz. A projeção leva ao estereótipo. Já a ressonância está ligada ao coração. Sai da nuca, que é onde está o fundo do olho, região que delibera e envia mensagens, e vai até o pubis, que determina a ação. A voz sai aveludada e não estilhaçada, como na projeção. Odeio declamação. Por que até hoje não foi possível estudar ressonância no Brasil? Porque exige que a preparação vocal seja feita de modo integrado à corporal. O corpo não pode endurecer porque senão trava a ressonância. O ator precisa ficar recolhido. Quanto mais recolhido ficar, mais conseguirá ficar centrado, manter o controle sobre sua presença.

DANIEL SCHENKER – Fale um pouco sobre o minucioso estudo da palavra em cada espetáculo.

ANTUNES FILHO – É preciso entrar nos interstícios das palavras, no abismo que há entre uma sílaba e outra. A poesia nasce da relação entre as palavras. Cabe ao leitor/espectador ouvir a palavra e sentir a sua flutuação. O artista precisa perceber que aquela palavra não é aleatória. Foi escolhida entre milhares de outras. Por isto, não podemos violentá-la. O importante é voltar ao vazio de quando o poeta começou a escrever, buscar a espiritualidade do poema. E isto se faz através da ressonância.

DANIEL SCHENKER – A diferença que o senhor estabelece entre ressonância e projeção também está, de alguma forma, ligada ao volume da voz?

ANTUNES FILHO – Quando o ator fala baixo tende a conseguir alguma ressonância mesmo na projeção. Quando aumenta o volume da voz, tende a perder.

DANIEL SCHENKER – O ator deve deixar o trabalho de construção vocal à mostra diante do espectador ou procurar ocultá-lo?

ANTUNES FILHO – Quando o ator faz ressonância, o espectador não vê a construção. Lee Thalor fala alto, esbraveja em cena, mas na ressonância, que é completamente diferente de esbravejar na projeção, que leva à perda do controle.

DANIEL SCHENKER – Quando o senhor fala que o ator precisa ficar recolhido, não está se referindo à busca de um estado de relaxamento…

ANTUNES FILHO – Não. Recolhido no sentido da busca de um meio termo entre a tensão e o relaxamento.

DANIEL SCHENKER – O senhor parece pautar sua argumentação em visões sobre conceitos de interioridade/exterioridade e essência/aparência, conteúdo/forma…

ANTUNES FILHO – Meu sistema não conhece estas palavras. Considero reducionista. Estou na amplitude.

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