Vias abertas por fluxos destrutivos

Crítica de Pindorama, da Lia Rodrigues Companhia de Danças

30 de junho de 2014 Críticas

Vol. VII, nº 62, junho de 2014

Resumo: Este texto trata do espetáculo Pindorama da Lia Rodrigues Companhia de Danças encenado num galpão localizado no Complexo de Favelas da Maré. A visada sobre o espetáculo aborda seus aspectos imanentes em relação com um caráter destrutivo que se aproximaria da noção de Walter Benjamin em texto homônimo.

Palavras-chave: Lia Rodrigues, Walter Benjamin, dança contemporânea

Abstract: This text talks about the presentation Pindorama by Lia Rodrigues Dance Company performed in a warehouse located in the Favela da Maré Complex. The perspective here presented approaches the presentation’s immanent aspects in relation to Walter Benjamin’s notion of the destructive character.

Keywords: Lia Rodrigues, Walter Benjamin, Contemporary dance.

Vias abertas por fluxos destrutivos

Foto: Sammi Landweer.

Uma das mais reincidentes inquietações a respeito da recepção de uma obra cênica gira em torno do que se desdobra de um acontecimento que se dá em tempo real, ao mesmo tempo em que temos consciência seu aspecto ficcional. Talvez esta seja uma das características mais marcantes do que sobrevive nas diferentes manifestações das artes cênicas através do tempo. É possível considerar que o teor ficcional de uma obra está ligado a uma determinada poética que a constitui. A apreensão de toda poética deve levar em conta uma dimensão complexa composta pelos processos de criação dos artistas, o que na dança está ligado à noção de composição e a uma relação que se direciona ao outro no desejo de realizar sentidos.

A crítica de dança Laurence Louppe investigou os “princípios norteadores da produção de dança contemporânea” ressaltando sua constituição como uma “poética” em seu importante Poéthique de La danse contemporaine (1997). Como nos mostra Thereza Rocha em um excelente texto no qual discute os parâmetros do que seria a especificidade da dança e a noção de dança conceitual, a mesma Louppe dez anos mais tarde publica novo tomo de sua Poéthique com o subtítulo La suíte. A nova empreitada da crítica é tanto uma transformação de sua perspectiva, quanto do modo de sua escrita que se transforma numa espécie de “cahier de dramaturgista da pesquisadora” contendo visitas aos estúdios, aos artistas, intérpretes e criadores em um inelutável movimento revitalizador de sua análise poética primeira (ROCHA, 2010, págs 149-150).

Para pensar Pindorama, o mais recente espetáculo da Lia Rodrigues Companhia de Danças, me dedico a criar um espaço reflexivo sobre as possibilidades de sua poética em produzir afetos. Introdutoriamente, gostaria de pensar que tal poética perfaz o inevitável atrito entre o ficcional e o real por meio da criação de condições estéticas e sinestésicas de um ambiente, cujo fundamento ou razão de ser, encontra sua força em um caráter de destruição. Os termos atrito e destruição que utilizo certamente não parecem promover nenhuma surpresa, guardam certa proximidade. Porém, as escolhas estéticas da cena de Pindorama produzem um fluxo de percepções de cunho energético, percepções de ordem tátil em que o visível se torna nossa pele, e assim, o que é visto – um nível de violência ora manifesto, ora latente – é percebido no corpo-reflexivo em um processo que abrange a destruição na mesma medida de seu oposto, ou seja, na construção de novas formas de experiência. Minha investida crítica está iluminada pela noção de “caráter destrutivo” do filósofo Walter Benjamin e suas implicações com os regimes de experiência a partir da modernidade.

Em outro mar

Brigam Espanha e Holanda pelos direitos do mar. O mar é das gaivotas que nele sabem voar. Brigam Espanha e Holanda pelos direitos do mar. Brigam Espanha e Holanda porque não sabem que o mar é de quem sabe amar.
(Um cafuné na cabeça, malandro, eu quero até de macaco, Milton Nascimento e Leila Diniz)

A Lia Rodrigues Companhia de Dança (LRCD) foi fundada em 1990 e algumas de suas ações se direcionam a “estimular a reflexão, proporcionar espaços de debate, sensibilizar outros indivíduos para as questões da arte contemporânea, gerar encontros intelectuais e afetivos, além de apoiar e investir na formação e informação de novas plateias”, como diz um texto em seu site. Em 2004 a LRCD consolidou uma parceria com o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, o que significou a transferência de suas atividades artísticas e formativas da zona sul da cidade para a Casa de Cultura da Maré, em princípio numa geografia conflituosa: território de espaços labirínticos, acessado por um lado pela Avenida Brasil (ela mesma uma via tanto de margem quanto de centro de ligação entre bairros e de comunidades-complexos). A jornalista e pesquisadora Adriana Pavlovna aponta em um texto crítico sobre Pindorama que “a escolha da Maré como sede da Companhia, há uma década, já carrega em si muitos simbolismos, sobretudo a ideia de uma nova partilha do sensível entre artista e público” referindo-se ao conceito de Jacques Rancière.

Nos primeiros anos de relação entre a Companhia e a Maré, como escreve Silvia Soter em um texto sobre a função como dramaturgista que exerce desde 2002 junto a LRCD, buscou-se um modo experimental de atuação por meio de um projeto de residência que tinha como um de seus objetivos construir espaços como potências de encontro com os moradores da comunidade. Uma das estratégias foi a realização de aulas e ensaios com as portas abertas, provocando o interesse e a participação de alguns jovens da comunidade que começaram a integrar as sessões como praticantes ou observadores. Outra ação importante foi a de fazer do espaço um lugar de pré-estreias das peças elaboradas durante a residência, como as peças Contra aqueles difíceis de agradar e Encarnado, ambas em 2005. Em 2009, duas novas frentes de criação são abertas, nas quais se materializam a partilha e o diálogo entre a população e as redes institucionais: a elaboração de uma nova peça com estreia no Théâtre de La Ville de Vitry-sur-Seine em Paris e o investimento na adaptação de um galpão, na época alugado conjuntamente com a Redes de Desenvolvimento da Maré na comunidade Nova Holanda, que passou a abrigar a LRCD.

Acredito ser possível afirmar que este desejo-forma em diálogo com “sua população e suas instituições” (SOTER, 2010, p. 145) se afigura como a constituição de uma rede de comunicação nos termos de Anne Cauquelin, em que “a rede é um sistema de ligações multipolar no qual pode ser conectado um número não definido de entradas” (CAUQUELIN, 2005, p. 59). O que toma forma como uma necessidade social é a imbricação efetiva entre as conquistas tecnológico-artísticas e a construção estética junto aos grupos sociais ameaçados de desagregação. Tal unidade, para Cauquelin, trata-se de uma investida da tecnologia em favor de elementos essenciais como o progresso e a identidade.

Tomando a liberdade de substituir o termo progresso por transformação (no sentido de particularizar o pensamento do trabalho em questão em sua forma intempestiva), um elemento importante a ser considerado em relação às formas das peças da LRCD encontra-se no seu processo de criação juntamente com a interlocução da figura de um dramaturgista. Como já dito acima, em 2002 a pesquisadora, teórica e crítica de dança Silvia Soter inicia uma parceria com a LRCD a convite de Lia. Inicialmente elas se dedicaram à criação de uma peça em homenagem a Oskar Schlemmer, em que “buscou-se falar não sobre ele, mas a partir dele”. O trabalho de Soter toma lugar junto às discussões, aos ensaios, às conversas com os artistas, o que torna sua pesquisa parte integrante do processo de criação, ao mesmo tempo em que delineia intelectualmente a função que exerce: “O dramaturg é, de algum modo, um crítico. Um crítico que injeta essa crise num processo ainda em curso” (SOTER, 2010, págs. 129 e 131). A crise posta pelo trabalho parece ter a força de estilhaçar os espaços entre as culturas e as pessoas, promovendo um novo mar a ser habitado em que um material originário de outro tempo-espaço (como Schlemmer) quando transformado em ideias “se espalham pelo mundo” tecendo “redes que nos atravessam sem pedir autorização”. Soter ainda esclarece que o método de criação de Lia se assemelha a um lago. Tomo a liberdade de reproduzir aqui um trecho do texto de Soter, por sua beleza e precisão inspiradoras de Pindorama:

“Primeiro, o grupo joga nesse lago um monte de peixes. Pistas por onde o trabalho poderá circular. Em seguida, durante vários meses, as leituras, ideias, conversas freqüentes, improvisações e discussões que acontecem durante os ensaios servem de alimento para esses peixes. A próxima etapa será a pesca. A peça será formada por apenas alguns dos animais lançados no lago, lá permanecerão. Poderão ser alimentados e pescados durante o processo de uma próxima criação. Ou não.” (op. cit. pág. 138)

Foto: Sammi Landweer.

O sublime e o caráter destrutivo

No Centro de Artes da Maré, um extenso chão de cimento liso com marcas desenhos-coreografias – como memórias do uso. O espaço exibe sua nudez apenas interrompida por paredes essenciais. Sensação de sublime vinda de uma construção que nos convida com sua dimensão provocando uma força vertical em nossos corpos. No espaço propriamente de exibição o chão está limpo, um cimento limpo e liso que me lembraria o quintal da infância, não fosse tão vazio e imenso. Marcas impressas do trabalho meticuloso das mãos.

A verticalidade entra em tensão com os primeiros gestos dos bailarinos ao trazerem um grande retângulo de plástico translúcido com o qual revestem cuidadosamente o lugar central ao longo do espaço – horizontalização dos sentidos. Seus gestos mínimos e calculados nos colocam de sobreaviso: existe um risco no paraíso. Espalham, com a mesma qualidade quase religiosa em que o sublime avança, uma série de bexigas transparentes cheias de água. Bexigas-camisinhas cheias de água em seu limite viram seios extirpados, mas ainda cheios de uma vida imobilizada. Imagem paradoxal: restos de um momento original de abundância e sobrevivência dos elementos primários que nos constituem e insistem em aparecer.

Em seguida, entra uma bailarina que derrama sobre seu corpo nu toda a água que traz em uma garrafa PET. A performer inicia um lento movimento sutil e indefinido sobre o plástico dando a ver um corpo debilitado (ou originário – um devir-larva – que parece atravessar toda a cena e reaparecer no terceiro ato) procurando as bexigas-seios. Nas extremidades do plástico estendido, os demais bailarinos iniciam uma pequena ação com as mãos, que paulatinamente vai ganhando um ritmo intenso até que o corpo da bailarina seja jogado com força para todas as direções, tendo sempre o plástico como limite que acaba por parecer tomar todo o espaço. As bexigas de água arrebentadas criam a indistinção do lugar em que os resíduos de destruição não podem ser puramente localizados, mas estão por toda parte. O meio toma forma, mas sem uma forma que se antecipe a si mesma.

A imagem é como a de um rio em expansão de mar, num movimento de tormenta sobre o corpo provocando inúmeras mutações em que a sensação deste se dá como mais um elemento, na medida em que imprime este mesmo corpo como dado sensível. O corpo é entendido ele mesmo como um objeto que não existe sem o sujeito. Em outras palavras, só por meio da precisão em relação ao corpo como objeto de conhecimento sensível é que se pode dar a ver o nível de improvisação, da surpresa e de novidade que ele é. A consciência do espectador não se fixa em uma análise do corpo como objeto cristalizado, mas transborda para além da ideia objetiva, possibilitando uma relação entre sujeito e objeto que se realiza em cada momento. A existência possível é a da resistência contra o fluxo da tormenta arrebatadora.

Lembremos que para Kant, na Analítica do sublime contida na Crítica da faculdade do Juízo, o sublime resulta de uma operação reflexiva, pois se tal conceito em uma de suas definições “é aquilo em comparação com o qual tudo o mais é pequeno”, por outro lado, “o que é absolutamente grande não é, porém, o objeto dos sentidos, e sim o uso que a faculdade do juízo naturalmente faz de certos objetos para fim daquele (sentimento), com respeito ao qual, todavia, todo outro uso é pequeno” (KANT, 2005, pág. 96). Kant usa como parâmetro a relação do homem com o poder destrutivo da natureza em que tal reflexão só pode acontecer uma vez que estejamos protegidos observando fenômenos, tais como rochedos ameaçadores, “nuvens carregadas (…) avançando com relâmpagos e estampidos, vulcões em sua inteira força destruidora, furacões com a devastação deixada para trás, o ilimitado oceano revoltoso, (…) uma alta queda d’água de um rio poderoso” (op. cit. p. 107). O caráter anti-natural das ideias é o importante elemento que permite um vínculo sempre desterrirorializante entre o sublime e o ânimo para sua receptividade, desenvolvida numa perspectiva infinita pela faculdade imaginativa.

Este lugar protegido (outro território), que em princípio o espectador de Pindorama ocupa, possibilita uma margem para que se estabeleça a percepção estética do sublime, porém a violência sobre o corpo, que o torna dado sensível, na mesma medida implica num chamado à consciência do corpo no espectador. Isso cria uma tensão irreversível entre corpo e pensamento. Creio que seja possível aludir aqui ao que José Gil denomina “espaço do corpo” em todo seu paradoxo:

“Diferente do espaço objetivo, não está separado dele. Pelo contrário, imbrica-se nele totalmente, a ponto de já não ser possível distingui-lo desse espaço: a cena transfigurada do ator não é o espaço objetivo? E todavia, é investida de afetos e de forças novas (…). O espaço do corpo é a pele que se prolonga no espaço, a pele tornada espaço. Daí a extrema proximidade das coisas e do corpo.” (GIL, 2013, pág. 45).

No segundo ato a resistência sentida no espaço é um debater-se novamente contra o fluxo impositivo e constelado. Tal operação, agora contando com um número maior de performers-bailarinos, implica ainda a potência dos corpos que encontram resistência no movimento em direção ao outro. O encontro dos corpos se dá por meio do choque. Sua provocação é a quebra das moléculas, dos nichos, das certezas, da imobilidade dos sentidos e dos territórios determinados entre antigo e novo, entre dominadores e dominados, entre determinismos de um eu e de um outro – só nos conhecemos no encontro com o outro.

É possível verificar uma apreensão que se dá pela formação paulatina de um espaço do corpo em que os bailarinos promovem um estilhaço celular com a violência de suas corporeidades. A potência política do corpo que vai de encontro ao outro em um caráter destrutivo não revela pura literalidade que recairia numa imagem melancólica pelo que não existe mais, mas uma guinada de apropriação de si que intenciona o chamado de uma memória dos possíveis, das sobrevivências, de linhas de fuga – elemento transformador para uma autopoiese saudável. Se por um lado o sentimento que nos ligaria à ideia de Pindorama ou Terra das Palmeiras, nome dado pelos nativos às terras brasileiras quando da chegada dos portugueses, possui um teor melancólico, no espetáculo ele se transforma em vias para novas possibilidades de existência pelo encontro.

A sensação do sublime deste espaço-mar violento que mostra corpos-em-choque me parece fazer pertinente um pensamento de análise que se aproxima do que Walter Benjamin denominou de “caráter destrutivo”. Para o filósofo, a destruição é como a condição de possibilidade para relações diferenciadas (novas) com o que ele define filosoficamente em sua obra como experiência da verdade, constituinte de sua noção de objeto:

“Poderia acontecer que alguém, olhando sua vida em retrospectiva, chegasse à conclusão de que quase todos os vínculos mais profundos que nela lhe aconteceram partiram de pessoas cujo “caráter destrutivo” era unanimemente reconhecido.” (BENJAMIN, 2013, pág. 97).

O caráter fundamental dessa destruição é inseparável de uma experiência recuperada, não em termos melancólicos no sentido de sua perda, mas enfrentando ou se quisermos, colidindo com a perda da experiência em sua forma tradicional. Para alguns de seus comentadores, o que define o sentido melancólico em Benjamin está no fato de se ater aos detalhes do real, sempre de modo a sentir um certo deslocamento em relação a ele, o que resulta numa interminável busca pelo particular das coisas. O sentido moderno da experiência não se estabelece por uma relação de continuidade, mas pelo choque com as novas estruturas visuais disponíveis no mundo moderno, implicando um movimento mental que se dá por saltos em que o intempestivo prevalece. Tal operação mental é avessa ao se deixar levar pelo ritmo dos acontecimentos, figurados na noção de natureza, mas por outro lado se alimenta de sua noção de ritmo quando se antecipa a ela imprimindo necessariamente a disposição para o trabalho que se abre com a perda da experiência tradicional.

Em Experiência e pobreza, texto de 1933, Benjamin entende o trauma moderno na inflexão da Primeira Grande Guerra como fundador de uma barreira que cria impossibilidades para a vivência e consequente transmissão de experiências profundas. O efeito de choque, ocasionado pela interrupção contínua e súbita do fluxo das associações, substituiria a contemplação tradicional, traçando perspectivas estéticas com potencial revolucionário – um comportamento renovado do ponto de vista perceptivo, dando ênfase ao modo tátil de percepção. Se existe uma tarefa para a arte, seria a de desfazer a alienação corpóreo-sensorial como, por exemplo, realizam os meios técnicos, cujo principal expoente é o cinema com a capacidade de sua aparelhagem para testar, explorar o meio ambiente e apresentá-lo ao homem. Este procedimento seria comparável à psicanálise que interrompe, interroga e perscruta o analisando até atingir o conhecimento de algo que permaneceria ignorado.

O caráter destrutivo preserva a falha, o lugar do não controle, daquilo que não se sabe e que não se pode saber. O choque dos corpos em Pindorama faz com que a superfície de contato entre eles se transforme em fragmentos, em cacos, em pequenas superfícies de contato como possibilidades micropolíticas de metamorfoses sensíveis. Nesta mesma intenção a composição estética dos corpos em choque como encontro com o outro ainda se direciona para a pergunta de como o corpo pode criar suporte e residência para o estado de existência. Mas o corpo se organiza e se desorganiza pelos choques constantes tornando o sentido da palavra destruição ainda mais próximo da noção de Benjamin para quem “O caráter destrutivo só conhece um lema: criar espaço; apenas uma atividade: esvaziar” (Op.cit.). Aqui destruição é transformação: “O caráter destrutivo é inimigo do homem-estojo. O homem-estojo busca seu conforto” (Op.cit.pág. 98).

Se podemos aqui sentir e falar da história de um tempo veloz (na velocidade imposta aos corpos dos bailarinos pelo movimento violento do plástico), então talvez seja possível sentirmos e falarmos de uma desaceleração da própria história que se dá nas ruínas do presente em seu caráter destrutivo. O corpo se faz paradoxal, justamente na medida em que é construído entre conflitos passados e sua ideologia de futuro – uma resistência em continuar a ser.

No terceiro ato o corpo originário, tendo passado pela tormenta e pelo encontro, retoma mais explicitamente sua forma larval, porém num aspecto que agora se assemelha a corpos abismados, que mostram estruturas profundas em movimento, algo que nos faz lembrar por proximidade da noção de “corpo sem órgãos” de Artaud. Na leitura de Deleuze e Guattari sobre a noção original de Artaud, o corpo aparece desterritorializado do organismo, de uma constituição programada por funções, ou como um referente para os padrões de subjetivação social. A ideia de CsO é contrária à do corpo organizado, “a essa organização dos órgãos que se chama organismo” (DELEUZE e GUATTARI, 2008, pág.21). Contrário ao corpo organizado, o CsO só acontece por intensidades que para Deleuze estão associadas à criação contínua da existência. A coreografia da performance dos corpos resulta em corpos em experiência, promovendo um olhar igualmente experimentador do público que desfaz os imperativos de um olhar interpretante. O público, agora desalojado de seu lugar inicial e misturado ao espaço, compõe igualmente todo o lugar, tensionando a recepção sentida por um corpo como organismo, ou seja, a um exame formulado por uma sociedade ordenada por padrões de modalidades estabelecidos.

Lembremos que a escrita é de algum modo um processo de fora e que neste caso tenta dar conta de um acontecimento cênico que é como um grito, um levante concreto, um movimento de paixão. Como nos disse Antonio Negri em uma de suas últimas conferências na cidade, e que me parece caber para pensar Pindorama, as forças capitalistas, ao investirem nas subjetividades a partir das relações do trabalho e do mercado, criaram também as condições para irreversíveis aglutinações de indivíduos em paixão de um nós.

Referências bibliográficas:

BENJAMIN, Walter. “O caráter destrutivo” in Imagens do pensamento/Sobre o haxixe e outras drogas/ Walter Benjamin. Edição e tradução: João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

________. “Experiência e pobreza” in Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.

CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea, uma introdução. Tradução: Rejane Janowitzer. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

DELEUZE, Giles e GUATTARI, Félix. “Como criar para si um corpo sem órgãos”, Tradução: Aurélio Guerra Neto in Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia Vol. 3. São Paulo: Ed. 34, 1996, Coleção TRANS.

GIL, José. Movimento total, o corpo e a dança. São Paulo: Iluminuras, 2013.

KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Tradução: Valério Rohden e Antônio Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

ROCHA, Thereza. “The show must GO on: uma conversa de dança com Jérome Bel” in Temas para a dança brasileira. Organização: Sigrid Nora. São Paulo: Edições SESC SP, 2010.

SOTER, Sílvia. “Um pé dentro e um pé fora:passos de uma dramatug” in Temas para a dança brasileira. Organização: Sigrid Nora. São Paulo: Edições SESC SP, 2010.

Site da (LRCD): http://www.liarodrigues.com/

Recomendação de leitura:

Crítica de Pindorama por Adriana Pavlovna:

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Dinah Cesare é teórica do teatro, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (EBA- UFRJ) dentro da Área de Teoria e Experimentações em Arte na Linha de Pesquisa Poéticas Interdisciplinares e mestra em Artes Cênicas pela UNIRIO.

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