Inventário de afetos viventes
Crítica da peça Estamira – Beira do mundo, com Dani Barros
O espetáculo Estamira – beira do mundo, em cartaz no Porão da Casa de Cultura Laura Alvin, é uma criação em conjunto da diretora Beatriz Sayad com a atriz Dani Barros a partir do filme Estamira de Marcos Prado. Tanto o filme quanto o espetáculo nos mostram singularidades que surgem na vida por meio de atitudes sempre em desvio. Modos de estar que são atravessados pelas determinações dos sistemas e instituições, porém teimam em criar seus próprios percursos de transgreção e de constituição de sentidos inesperados. Assim é que parece se formar a ideia de personagem – e o motivo pelo qual somos atraídos ou distanciados dele – porque são evidências de ações. Talvez seja nossa constante maneira de significar a subjetividade em um endereçamento ao mundo. Entendo que a força da peça Estamira está em sua composição que deixa entrever a conflituosa região de convívio entre as construções ficcionais e o que normalmente consideramos o real. Esse movimento criou um potente uso do material original do filme.
Pensando no processo de construção, revelado no texto da atriz que está no programa, existe um momento chave em que Dani Barros assiste o filme de Marcos Prado e é afetada por ele, tanto que compreende de modo íntimo que ali se encontra uma material artístico que consegue dar forma a algo importante de sua própria vida e que é motor de seu trabalho. Tomo esse momento e as nuances de seu desdobramento na composição cênica como um lugar, uma zona de invisibilidade de onde parecem surgir os impulsos para a operação daquilo que denominamos arte. Então me parece que existe aí uma instância de não saber, de indiscernibilidade, de desejo, de um devir alguma coisa que se encontra com a construção da personagem Estamira do filme, com sua própria estrutura narrativa, com as especificidades da linguagem visual, fílmica e técnica, com a investida de outras subjetividades como a de Prado e toda uma equipe de trabalho. Na base desse encontro entre o que afeta a atriz e o filme (pressuposto como linguagem elaborada) está a relação entre os gêneros documentário e ficção e ainda a noção do texto fílmico como alteridade para a construção do texto da peça, o que se afirmou como um mecanismo produtor de distanciamento, ou seja, dificultando uma atuação que reconstitua os sujeitos dos discursos autobiográficos. O filme reverbera como materialidade reprodutível que entra em atrito com qualquer pressuposto de interpretação e reconstrução, tanto da personagem Estamira quanto da vida da atriz. Seguirei com algumas tentativas de verificações.
O título coloca um personagem à margem. No momento da entrada dos espectadores já se instala essa mesma qualidade de distância com a atriz em uma atitude sem traços de representação e sentada em uma espécie de banco comprido estofado de marrom. O banco está encostado na parede do espaço e não há como se voltar. Se aqui podemos considerar o mundo às suas costas, ele está vedado, barrado e é a peça que vai propor um modo de conhecê-lo. Uma qualidade da frontalidade na qual Dani Barros se coloca. A platéia toma conta da frente e das laterais do espaço e nos oferece a atriz sem lugar para onde ela possa se deslocar. É como se ela estivesse na borda, em um limite entre sua corporalidade e alguma outra coisa à sua frente que, se por um lado se mostra reconhecível como significantes do Aterro Sanitário do Jardim Gramacho, onde a Estamira do filme trabalhava e vivia, por outro lado é captado pela cenografia, elaborada por Aurora de Campos (com colaboração da diretora e da atriz), por meio da leveza dos sacos plásticos vazios. Então, é possível caminhar por esse lugar limite, por que é aéreo, por que não oferece resistência. Uma bela transmutação da cena do filme de Prado que nos faz olhar um vento forte no lixão. Lembro aqui do Angelus Novus de Klee observado por Walter Benjamin. O filósofo nos diz que esse é o anjo da história, que parece se afastar de alguma coisa que olha fixamente – os acontecimentos – mas que são para ele uma catástrofe que acumula ruínas. O anjo quer parar para juntar os fragmentos, mas é impedido pela tempestade que sopra do paraíso. O vento cenográfico não tem truques, vem de dois ventiladores dispostos simetricamente no chão e revolvem os sacos plásticos que se dão a ver como os fragmentos do anjo. E a atriz funciona como o anjo da história e pode recolher seus restos de memória que perfazem a dramaturgia em montagem com as falas da personagem Estamira.
O aspecto de montagem da dramaturgia está materialmente concretizado na atuação da atriz que perpassa sem transição psicológica entre os fatos da personagem e os de sua própria memória. O que faz a diferença nesse caso e que transforma sua atuação em elementos de pura afetação para o espectador, dificultando uma rememoração melancólica, é o procedimento de assumir a perda, ou seja, assumir que não é possível qualquer reconstituição de coisas vividas, o que faz com que a atriz não “interprete” a personagem e nem tenha a intenção de mostrar um discurso autobiográfico, um depoimento pessoal. Mais do que a imbricação textual entre as falas de uma e de outra (personagem Estamira e atriz) – que por vezes aparece como recurso – Dani Barros oferece um estado físico e psíquico em ambiguidade constante, sem crença absoluta ou apego aos clichês de representação. O que se mostra é uma presença em desvio de si, uma pessoa que vive uma experiência ali no tempo da apresentação. E é isso que afeta, que cria condições para que a peça seja obra que reverbera para além do tempo de contato com ela. A arte não aparece como suporte, mas como uma resposta que nos faz suportar os acontecimentos de nossas vidas.
Dinah Cesare é doutoranda em Artes Cênicas pela UNIRIO, atriz, professora de training físico para atores e é integrante do Instituto do Ator no Rio de Janeiro.