Ativo/reativo – um par da escrita paradoxal de Barthes

Uma proposta de estudo dos ensaios do livro “Escritos sobre teatro” de Roland Barthes sob a luz da crítica de Antonio Candido.

9 de abril de 2008 Estudos

O livro Escritos sobre teatro reúne ensaios de Roland Barthes, tanto como crítico quanto como freqüentador de teatro, ao longo da década de 1950. Barthes é quem escolhe o ensaio de abertura da coletânea: um texto de 1965, que faz uma espécie de síntese de sua crítica em relação ao teatro, uma crítica que perfaz o trânsito entre o objeto e o gosto.

“Sempre gostei muito de teatro e, no entanto, quase já não o freqüento. Essa é uma reviravolta que me intriga. O que aconteceu? Fui eu que mudei? Ou o teatro? Será que deixei de amá-lo, ou o amo demais? Quando era adolescente, desde os quatorze anos, freqüentei os teatros do Cartel. Ia regularmente aos Marthurins e ao Atelier assistir aos espetáculos de Pitöef e adorava Dullin como autor, por que ele não encarnava seus papéis: era o papel que se integrava ao fôlego de Dullin, sempre o mesmo, qualquer que fosse o papel que representava.”

Roland Barthes começa pelo fim. É uma opção a se considerar. O livro Escritos sobre teatro (2007) reúne ensaios de Roland Barthes, tanto como crítico quanto como freqüentador de teatro, ao longo da década de 1950. Barthes foi procurado, no final da década de 70, por um estudante de teatro dos seminários da École Pratique dês Hautes Études, que estava resolvido a reunir seus ensaios sobre teatro publicados em vários periódicos e principalmente no Théâtre populaire, do qual Barthes era um dos fundadores. O mestre aceitou, não sem relutância, o trabalho de reler todo o material, que já julgava ultrapassado e um tanto datado, para colocar em ordem, corrigir, cortar, editar algumas coisas, dar forma ao livro que o estudante considerava como obra importante a ser editada. Durante os trabalhos, Barthes precisou parar para se dedicar ao novo livro que escrevia, A câmara clara, que acabou sendo seu último livro, de cunho autobiográfico, que fala da morte num gênero indefinido que mistura expressão e objetividade. O autor morreu atropelado no caminho que percorria todos os dias entre o Colége de France e seu apartamento, antes que pudesse voltar ao trabalho nos Escritos. O fim e o começo estão sempre em tensão na vida do escritor, tanto em sua forma, quanto em seu conteúdo, se é que podemos fazer esta licença em separar tais conceitos para garantir uma apreensão metodológica que nos possibilite a análise.

Segundo Antonio Candido, temos o costume de pensar a obra como algo incondicionado, nascida da qualidade própria do autor, de sua capacidade e legitimidade criativa. O exame dos fatores que constituem a obra revela a fragilidade desta noção idealizada, noção que encontra um campo fértil na resistência da recepção, ameaçada de ver também sua própria autonomia de sujeito pulverizada. A análise que Candido propõe distingue dois fatores fundamentais para a criação autoral, o primeiro, de ordem interna, margeia os processos criativos, e é o espaço do inominável, da surpresa, de um sentido ainda não realizado; o segundo, de ordem externa, secundária, no qual elementos dos âmbitos antropológico e sociológico constituem materiais contrastáveis, que não se opõem à verdade ficcional, mas oferecem subsídios para as verdades factuais. A obra de Barthes expõe a flutuação de seu raciocínio em relação aos objetos e percebe que estes são apreendidos pelo afeto.  Mas essa característica não faz desaparecer o sentido histórico. Mesmo na distância afetiva, como no caso explícito da revelação brechtiana em Paris, a inteligibilidade conferida aos objetos é permeada pela tematização da pulsão que vai tomando conta do pensar.

Nos Escritos, o ensaio que inicia o livro sinaliza também o fim de um ciclo. As primeiras linhas parecem conter toda a força das palavras de todos os escritos. Barthes é quem escolhe o ensaio de abertura da coletânea: um texto de 1965, que faz uma espécie de síntese de sua crítica em relação ao teatro, uma crítica que perfaz o trânsito entre o objeto e o gosto. Mas não é puramente uma questão de gosto. O gosto e a crítica andam juntos, “não gosto que um ator se disfarce”, mas sim que um ator trabalhe a linguagem com uma “qualidade constitutiva” que não seja “nem a emoção nem a verossimilhança, mas uma espécie de clareza apaixonada”. Seus motivos estão dados, seu gosto como estímulo e o interesse de sua análise indicam que, como disse Merleau-Ponty, o artista não pode separar-se de sua vida para realizar a obra. O homem está fadado a estar presente a cada momento. É como se estivéssemos sempre diante do Etant donnés de Marcel Duchamp (o artista que faz a crítica do mito da crítica), e, olhando através do buraco da porta vemos um corpo de mulher sem rosto, alguns galhos, uma lamparina e uma cascata, e procuramos como entrar naquele lugar. Basta encontrar uma chave que diga respeito àquilo que o afeta, e de lá, deste lugar, com esta chave na mão, o homem (e o crítico?) pode cumprir sua tarefa de existir. A chave de Barthes nestes ensaios, de algum modo como a de Duchamp, é a matéria. É a esfera que reúne os fatores internos e externos, onde a história se inscreve e se dá a ver a partir de vários pontos de vista. A materialidade é a obra, e, me permitindo aqui uma analogia, é assim como o corpo de um travesti que não oculta seu interior. Sua composição do feminino mostra o paroxismo de sua condição, e se sua genitália está oculta, ela sobrevive no pensamento de quem olha, provocado pela composição (como a Conjugação) que se mostra. Sabemos que se trata de um travesti justamente pelo feminino levado às últimas conseqüências que o exterior revela. O travestimento em nossa Praça Paris é que configura a imagem atual que temos dela. Nossa apreensão da Praça não diz respeito ao jardim replicado do estilo francês, mas de uma aparência em disfarce, que contém na superfície a tensão do feminino/masculino, do dentro e fora em um mesmo plano. E creio que esta procura por uma superfície que fala do interior, que se disfarça enquanto forma definitiva, ou melhor, onde não há limites entre dentro e fora, é que alimenta o gosto de Barthes, e que o faz escrever. Só que esta superfície é complexa, pois o travestimento não quer ocultar – mas revelar – mas não revelar de todo, ainda existe algo oculto que é o objeto de desejo.

E do daquilo que se pode ver de matéria é que Barthes retira a imagem que alimenta sua análise de recusa ou de aceitação, composta por uma perspectiva ligada à visualidade. Pessoal, mas não passional, sua crítica parece revelar o indivíduo que se constrói ao escrever. No exercício ensaístico de pensar o objeto aparece o pensamento do sujeito do ensaio, nos verbos acompanhados da primeira pessoa.

Eu estava no “galinheiro” e, do alto da minha montanha Chaillot, avistava um espaço afundado na noite, cheio de um ar exterior que fazia tremer as tochas e de onde me chegava, conforme o momento, o vento da guerra ou o frescor de um palácio sem conforto.

O que o faz amar o teatro é o que também o faz perder o interesse. Quando o Berliner Ensemble chega a Paris, com um espetáculo dirigido por Brecht, a dramaturgia material “ofusca” o modo de representação psicológico do teatro francês A performance dos atores trabalha com suas pessoalidades para além de um registro de representar um personagem. A linguagem visual, a escrita estampada nas tabuletas, são mecanismos de distanciamento que não deixam o público sair do presente e se aventurar em nenhuma catarse identitária. Elementos dessa ordem se revelam como um estrato material último para o crítico. Para Barthes o teatro não é uma questão de identificação, é mais uma questão de leitura, como se para cada acontecimento o homem pudesse realizar um d’après (numa referência afetiva à língua do crítico). Este é seu pensamento político carregado de história, um pensamento que relê, que procura uma arte “que observe rigorosamente seus signos […] uma dramaturgia que esteja no cruzamento de um pensamento político com um pensamento semântico”. Se a fundamentação teórica de sua crítica parte do conhecimento concreto do objeto, existe nela também um desejo de interlocução com a história. Esta tensão se estabelece e não se resolve facilmente, mas permanece criando um problema na formulação semântica de cada conceito, como “arte burguesa”, “vanguarda”, “distinção”, ou “brechtismo”.

A crítica de Barthes era elaborada também como lugar de discussão das condições de produção dos espetáculos. Nos ensaios que escreveu para a revista Thèatre populaire (1936), “foi possível, então, levantar os problemas em grande escala, ao mesmo tempo teoricamente e por crítica regular dos espetáculos que eram encenados na França: economia das salas, composição dos públicos, dramaturgia, repertório, arte do ator”.

O modo reativo da elaboração de sua escrita que implica sempre na convivência/oposição, subjetividade/objetividade, é similar ao choque que levou ao ver o teatro de Brecht pela primeira vez. O teatro deveria ser dominado pela estética brechtiana. Mas se lemos com calma os Escritos, percebemos que o desejo por esta estética se manifesta desde sua preferência por Jean Vilar, ator com uma interpretação dissociada da noção de verossimilhança. Daí sua recusa ao ator psicológico e ao teatro fundado neste fator, pois relega o público a um estado estático onde ele “é somente o olhar passivo ao qual se oferece o desvendamento de um segredo passional”, que vem de um lugar que não está na superfície.

Referências bibliográficas:

BARTHES, Roland. Escritos sobre teatro. Trad: Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2007;

CANDIDO, Antonio. “O escritor e o público”. In Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006.

CANDIDO, Antonio. Tese e antítese. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006;

MERLEAU-PONTY, Maurice. “A dúvida de Cézanne”.  in Textos escolhidos. Marilena de Souza Chauí e outros. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

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