A reprise (resposta ao pós-dramático)

19 de março de 2010 Traduções

Vol. III, nº 19, março de 2010

O artigo aqui traduzido por Humberto Giancristofaro foi publicado como introdução à revista Études Théâtrales 38-39/2007 – La Réinvention du drame (sous l’influence de la scène).

“Reprise: I. […] 2º Ação de fazer de novo depois de uma interrupção […]. 4º (1611, “reparação”) Técnico. Reparação de uma parede, de um pilar […]. 5º Remendar um tecido para reconstituir sua tecelagem […] II. 1º O fato de voltar a vida, vigor (planta). O fato de dar um novo impulso após um momento de parada, de crise […] 2º O fato de recomeçar, de voltar.” (Petit Robert)

A obra de Hans-Thies Lehmann recentemente publicada na França (1) e, mais largamente, a moda do nome “teatro pós-dramático” têm ao menos a vantagem de lembrar-nos da dissociação entre teatro e drama: o drama – entendamos a forma dramática – não está mais necessariamente no fundamento do teatro; há todo um teatro que não consiste mais na encenação de um drama anteriormente escrito, um teatro que às vezes vira as costas para o drama. No século XX, notadamente com Craig e Artaud, o teatro se liberta da literatura dramática; já não se coloca como segundo plano em uma operação na qual a peça escrita está em primeiro plano. Chegou ao fim a relação de subordinação do opsis* com as outras partes constitutivas do poema dramático: nós entramos na era da “representação emancipada” e desta “nova aliança” entre o texto e a cena que Bernard Dort teorizou:

Definitivamente, o que nós assistimos hoje é a uma emancipação de diferentes fatores da representação teatral. Uma concepção unitária do teatro, seja ela baseada no texto ou na cena, está em vias de apagar-se. Progressivamente, ela abre espaço para a ideia de uma polifonia, e mesmo para uma competição entre as artes irmãs que contribuem para o fazer teatral. […] É a representação teatral como jogo entre práticas irredutíveis umas às outras e, todavia, conjugadas como momento em que se confrontam e se questionam, como um combate mútuo, no qual o espectador é, no final das contas, o juiz e o que está em jogo, e que a partir de agora deve tentar pensar a si mesmo. (DORT: 1995)

Incompletude do drama

Para nós que trabalhamos no destino da forma dramática após os anos 1880, o que quer dizer depois do início do que Peter Szondi identificou como a “crise da forma dramática”, esta autonomia do teatro em relação ao drama e esta exaltação concomitante da teatralidade – no senso barthesiano do “teatro, menos o texto” e do “dado de criação, não de realização” – não significa em caso algum uma perda para o drama, ou mais ainda, a perda do drama. Ao contrário, nós temos razão para acreditar que a forma dramática tem tudo a ganhar com essa dissociação e que, se ela pôde evitar a petrificação e se renovar consideravelmente ao longo do século XX e nesse início do século XXI, foi ampla e paradoxalmente tendo em conta alguns avanços, alguma ambição de um teatro liberto do textocentrismo, do logocentrismo, da tutela da literatura dramática.

Tudo começou com Antoine, Stanislavski e a invenção da encenação moderna… Certamente nós ainda lidamos nesta época com artistas que se apresentam como os servos da arte dramática, mas essa posição não os impede de se afirmarem como coautores do espetáculo. A partir do momento que Zola declara que agora o cenário deve ter no teatro a mesma função que as descrições têm no romance, e quando Antoine não só contribui com Zola considerando que é com a encenação tomada globalmente que esse papel retorna, mas também especifica que o primeiro gesto do diretor deve consistir em criar o ambiente da ação dramática, a causa é clara: a forma dramática mostra sua incompletude; a encenação não é mais uma simples “arte do espetáculo”, mas sim “um dado de criação”. Em termos (anti-) hegelianos, a encenação traz para uma obra dramática fundada na “totalidade do movimento”, esta “totalidade de objetos”, esta dimensão épica, que a torna defeituosa.

De certo, esta “totalidade de objetos” será uma forte diferença para Antoine e para Lugné-Poe: ela se fixará, no teatro naturalista, na reconstituição do ambiente, mobiliários e acessórios e, no teatro simbolista, na atmosfera, na influência do cosmos, nos objetos invisíveis… É por isso que nós não podemos compartilhar com o ponto de vista de Hans-Thies Lehmann segundo o qual “mesmo com uma intenção naturalista – na qual aparece o meio com seu poder particular sobre o homem – o contexto cênico funciona no teatro dramático, por princípio, só como moldura e pano de fundo do drama humano”. Nós não pensamos, como este brilhante teórico, que a encenação “do teatro da época moderna” não é “em geral, mais que declamação e ilustração do drama escrito”.

Mas a divergência não para por aí, ela está no que faz desse livro uma obra com duplo fundo, com duplo discurso: por um lado – no qual é preciso reconhecer que ela é essencial – uma notável exploração destes teatros geralmente exteriores ao drama que são os de Abou Reza, de Jan Fabre, de Robert Wilson, de Maguy Marin, etc.; por outro lado – e é aí que nós nos levantamos contra – as considerações sobre a obsolescência e, por assim dizer, sobre a morte do drama.

Compreenderemos que o que nós temos a intenção de contestar na noção de pós-dramático é justamente que ela se defina historicamente como pós… dramático.

Uma morte anunciada

É grande a tentação de pensar que a forma dramática viveu e que, de agora em diante, ela é obsoleta. O drama seria o ramo morto da árvore do teatro. Na melhor das hipóteses, ele continuaria a produzir alguns frutos anêmicos, desprovidos de qualidades essenciais da arte: a novidade, a atualidade, a contemporaneidade… Existe hoje uma tendência a por em pane a dialética de um presente aberto ao passado e ao futuro e, a ele, preferir uma concepção abusiva da contemporaneidade: erigir esta contemporaneidade como um valor em si, que se substitui pela antiga noção de “vanguarda”. “Autenticamente contemporâneo”, “extremamente contemporâneo” são os rótulos cada vez mais correntes. De sua parte, Lehmann invoca a “verdadeira contemporaneidade”: “a questão seria saber se a estética de certa prática teatral testemunha uma verdadeira contemporaneidade, ou se ela não estaria apenas perseguindo modelos antigos com bom domínio das técnicas”.

É preciso dizer que Lehmann não é o primeiro a decretar a não-contemporaneidade do drama. Nessa via, Adorno o precedeu amplamente, decretando, nos anos sessenta, que o drama não revela mais que um gesto último: sua própria autópsia, tal como Beckett a praticou em Fim de jogo:

Os constituintes do drama aparecem após sua morte. Exposição, complicação (Knoten), ação, peripécia e catástrofe retornam como elementos decompostos de uma autópsia da forma dramática: a catástrofe, por exemplo, é substituída pelo anúncio de que não há mais calmantes. Aqueles elementos constituintes naufragam juntamente com o sentido que outrora fazia parte do drama. (ADORNO: 1984)

Para Adorno, a morte do drama é consubstancial à sua incapacidade – salvo sobre o modo de ironia (oposto ao escárnio), da paródia, enfim da autópsia beckettiana – de dar conta do mundo depois de Auschwitz e Hiroshima: “Todo pretenso drama da era atômica seria o escárnio de si mesmo, simplesmente porque seu enredo já falsificaria de modo reconfortante o horror histórico do anonimato ao transpô-lo em personagens e ações humanas…”. Adorno não considera em nenhum momento a possibilidade de que os autores de teatro possam elaborar formas de diálogo e tipos de personagens que expressem este anonimato (no entanto, isto eles fizeram em coro – polifonia do anonimato – cada vez mais presente nas peças). Manter o curso do drama – mesmo neste oxímoro, o drama épico brechtiano –, seria, portanto, segundo Adorno, dedicar-se ao infantil (as parábolas brechtianas) ou à “pueril ficção científica”.

Para Adorno, para Lehmann, para certo número de teóricos do teatro, a crise da forma dramática, que se manifesta a partir dos anos 1880 e da qual Peter Szondi se fez teórico, seria – Denis Guénoun a afirma – uma crise terminal:

Tentemos formular três questões que se colocam, entre outras, para a escritura dramática hoje. 1. A primeira: escrever depois do fim da crise do drama […] Ela balançou a forma dramática da escritura teatral com uma brutalidade crescente. Esse processo crítico chegou a seu ponto extremo nos anos cinquenta ou sessenta, com sua maior radicalidade em Beckett […] Nossa questão seria então: como escrever depois de Beckett? […] Depois de pressupõe que alguma coisa aconteceu e parou. Quais são os campos abertos por essa travessia? Eles são diversos, cada um a seu modo. Abolição dos gêneros e cruzamento entre as artes; constituição de um objeto cênico global, no qual o texto é como roteiro, como partitura; dobraduras nos escritos de distâncias interpretativas. Em todos os casos, trata-se de uma escritura problemática na sua relação com o externo, no seu envolvimento com o outro, o corpo, o jogo, a cena, a beneficente babelização das línguas. (GUÉNOUN: 2005)

A via parece livre então para o pós-dramático. Lehmann enfia-se nesse “depois de Beckett” um tanto mitológico: não somente ele alia ao pós-dramático, baseado em critérios bastante disparatados, certos autores que nós poderíamos considerar como “dramáticos” – numa concepção realmente alargada do dramático – tais como Handke, Duras, Deutsch, Koltès…, mas também anexa o próprio Beckett, que ele afirma “ter evitado a forma dramática”. Em seguida, começamos a suspeitar que o pós-dramático é um cavalo de Troia destinado a destruir – ou a demonstrar o que já está destruído (depois dos anos sessenta) – o dramático:

O novo texto de teatro […] é frequentemente um texto de teatro que deixou de ser dramático. A aposentadoria da representação dramática na consciência da nossa sociedade e na dos artistas é, em todo caso, inegável e demonstra que com esse modelo nada mais toca a experiência. é preciso constatar que o ímpeto para o drama desapareceu – pouco importa se a razão disso está no seu desgaste, no fato de que ele afeta um modo de agir que não se  reconhece mais, ou no fato de que retrata uma imagem obsoleta dos conflitos sociais e pessoais. (sem referência no original)

Mutação do drama: o novo paradigma

Reler a Teoria do drama moderno, elaborar uma crítica da teoria szondiana da crise do drama, de seu hegelo-marxismo, de suas perspectivas teleológicas de ultrapassagem do drama pelo épico, tais foram até agora os esforços feitos por mim e também pelo Grupo de Pesquisa Sobre  a Poética do Drama Moderno e Contemporâneo” [1]. Uma das questões que nos colocamos hoje consiste precisamente em pôr em dúvida o modelo “crísico” – quer a crise seja ou não terminal – sustentado por Szondi. Não se trata de pôr esse modelo em dúvida no contexto dos anos 1950, quando ele foi aplicado com sagacidade, mas hoje, nos anos 2000, ele realmente não dá mais conta das evoluções das escrituras dramáticas em casamento com o seu devir. Em vez de crise – uma crise só pode ser breve e só pode conduzir a uma resolução, e a morte do drama seria efetivamente uma resolução – eu preferiria falar de mutação, até mesmo de mutação lenta, e de uma mudança de paradigma do drama. De fato, constatamos que as questões dramatúrgicas novas, que aparecem por volta do século XX em Maeterlinck, Strindberg, Tchekhov…, tais como a fragmentação, e até a hiperfragmentação da fábula, a desconstrução do diálogo e da personagem, estão sempre nas obras atuais de dramaturgos como Kane, Fosse ou Koltès.

Para dar conta dessa mutação, eu propus um modelo sensivelmente diferente da dialética elaborada por Peter Szondi. Em Teoria do drama moderno, Szondi chama “drama absoluto” a forma aristotélico-hegeliana que repousa sobre o tripé “acontecimento interpessoal no presente”. Quanto ao drama da crise, quer ela esteja em curso (por Ibsen, Tchekhov, Srtindberg pré-Inferno e alguns outros) ou em vias de se superação (graças ao Strindberg do pós-Inferno, a Brecht e a alguns dramaturgos de tendência épica), Szondi não dá nome a essa categoria de drama. Eu faço o contrário. Eu dou nome àquilo que me parece ser, na contramão do critério aristotélico-hegeliano do “belo animal” que supõe ordem, extensão e completude, o novo paradigma do drama a partir dos anos 1880: eu chamo drama-da-vida. Quanto ao antigo paradigma – o “drama absoluto” de Szondi –, eu proponho de nomeá-lo drama-na-vida.

O drama-na-vida remete a uma forma dramática fundada em uma grande reversão do destino – passagem da felicidade à infelicidade ou ao contrário –, em uma grande colisão dramática, provido de “um início, meio e fim”. Enfim, um desenvolvimento por vezes orgânico e lógico da ação. O drama-da-vida não se limita àquilo que Sófocles chama de “um dia fatal”, ele arruína as unidades de tempo, de lugar, e até de ação e sua extensão cobre toda uma vida. Para abarcar uma existência inteira, o drama-da-vida recorre à retrospecção – até agora privilégio do épico – e a processos de montagem. De fato, o drama-da-vida marca uma mudança profunda na medida do drama, ou seja, na sua extensão, mas também no seu ritmo interno. O drama-na-vida corresponde intimamente a um momento da existência dos heróis; a extensão do drama-da-vida é inversamente proporcional à intensidade da existência do homem ordinário. À época de Ibsen, Strindberg, Maeterlinck, Tchekhov, Schopenhauer deu um nome ao drama-da-vida: ele o chamava “tragédia universalmente humana”.

A minha impressão é que Hans-Thies Lehmann, a partir do momento em que ele taxa de pós-dramáticas certas escrituras dramáticas – de Handke, Koltès, etc. –, ele passa ao largo desse novo paradigma do drama.

O infradramático

Luckács – de quem Adorno, Lehmann, e até certo ponto, Szondi, são devedores – não tinha palavras suficientemente duras para denunciar a influência nefasta de Schopenhauer sobre os destinos do drama, particularmente em Strindberg. Para ele, a “tragédia universalmente humana” não faz mais que exprimir “a inanição da vida em geral” e “exprime aqui filosoficamente uma tendência que […] adquire cada vez mais importância na literatura dramática e conduz cada vez mais seguramente à dissolução da forma dramática, à desintegração dos seus elementos realmente dramáticos.” (LUKÁCS: 1965) Sem aderir a essa ideia de uma “dissolução”, é preciso reconhecer que a dramaticidade do drama-da-vida é fortemente diferente daquela do drama-na-vida (ou, para retomar uma expressão de Szondi, do “drama absoluto”), que ela se encontra principalmente naquilo que podemos chamar de infradramático.

Para falar como Tchekhov, o drama-da-vida parece, ao lado de outros mais salientes, todos estes eventos minúsculos, ao final insignificantes, que fazem uma “vida plana”. No drama-da-vida, nós já vimos maiores reversões do destino: felicidade e tristeza não param de se alternar e às vezes de se confundir. No regime do infradramático, nada de heróis, mas personagens muito originais; nada de mitos, mas fatos cotidianos, como já visto em Büchner. A divisa do drama-da-vida poderia se sustentar em uma fórmula de Beckett: “tudo segue seu curso”. Nada de progressão dramática, mas enlace e desenlace, nada de grandes catástrofes, mas uma série de pequenas catástrofes. A dramaturgia entrou nesta era – e nesta área – do cotidiano que faz Tchekhov dizer que “nada acontece” nessas peças e na qual Lukács, que não se resigna à “tenra banalidade da vida” que os dramaturgos se contentam em expor, lamenta seu poder de dissolução:

O drama moderno no período de declínio geral do realismo segue a linha da menor resistência. Ou seja, ele acomoda seus meios artísticos aos aspectos mais insignificantes de sua matéria, aos momentos mais prosaicos de sua vida cotidiana. Assim a tenra banalidade da vida torna artisticamente o tema que é figurado; ela sublinha precisamente os aspectos do sujeito que são desfavoráveis para o drama. Produzimos peças que do ponto de vista dramático se situam a um nível inferior ao da vida da qual elas participam. (sem referência no original)

Mas o infradramático não reside somente na pequenez dos personagens, dos acontecimentos e outros microconflitos, mas também está ligado à subjetivação e, portanto, à relativização que marca esses acontecimentos e microconflitos. Em outros termos, estamos lidando com um teatro íntimo e com conflitos muitas vezes intrasubjetivos e intrapsíquicos. O fato de que o drama é  demasiadamente voltado ao subjetivo e ao cotidiano não significa que os grandes conflitos históricos desapareceram, mas que foram absorvidos por este “anonimato” de que fala Adorno.

O infradramático não substitui o dramático: ele alarga seu espectro, desloca o centro do dramático da relação interpessoal para o homem sozinho, para o homem separado. O resultado disso é que a “ação” dramática é muito menos uma ação “ativa” que uma ação passiva.

O argumento decisivo daqueles que endossam a ideia da morte do drama é que drama significa “ação” e hoje em dia praticamente não há ação no teatro. Joseph Danan relativizou essa crise da ação: “é quando a possibilidade se desvela no final do século XIX, é a ‘grande ação’, tal como foi imposta pelo modelo dos trágicos gregos durante milênios: uma ação, inicialmente projetada, se engatilha no começo da peça e encontrará sua realização no final”. (DANAN: 2005)

Ao mesmo tempo, Danan propõe, para o drama contemporâneo, noções de substituição tais como “micro-ação”, “princípio ativo”… Contudo, poderíamos conservar o termo ação num sentido expandido. Lembremos que nesse contexto o conceito da ação não tem, em Aristóteles, o sentido unilateral, puramente ativo, que lhe atribuímos. Na sua introdução à Poética, R. Dupont-Roc e Jeans Lallot escrevem acertadamente:

Mantida por falta de um termo melhor, a tradução de práxis por “ação” não é boa: práxis, em grego, abrange um campo mais amplo que “ação” e designa também, para um sujeito humano, o que nós qualificamos por “estado” – felicidade ou tristeza por exemplo. A definição de tragédia como “representação da ação” se refere a esse sentido estendido de práxis. (ARISTÓTELES: 1980)

Sempre teremos interesse, quando tivermos que lidar com a questão da ação na dramaturgia moderna e contemporânea, a nos reportar a uma tal concepção estendida da ação. É nessa concepção que Nietzsche nos engaja vigorosamente:

Concepção do “drama” como ação./ Esta concepção é em sua raiz muito ingênua: o mundo e o hábito do olho decidem aqui./ Mas o que finalmente – se pensarmos de uma forma mais espiritual, não é ação? O sentimento que se declara, a compreensão de si – não são ações? (NIETZSCHE: 1977)

Por outro lado, o que está em questão é o que Szondi faz do critério da ação no seio do drama absoluto, a saber, a decisão. Nas dramaturgias modernas e contemporâneas, não é o homem ativo que está no centro da ação, mas, antes de tudo, o homem que sofre, um homem em Paixão – essa “Paixão do homem”, da qual Mallarmé fez a medida do drama novo. Joseph Danan nos dá as razões dessa reversão da ação ativa para ação passiva:

“Agir é primeiro querer agir. A crise da ação encontra sem dúvida sua origem na crise do sujeito, nas falhas do eu e de sua capacidade de desejar. Certo número de dramaturgos do final do séc. XIX e do séc. XX, de Tchekhov a Beckett, tem essa capacidade de tornar problemático o próprio tema de suas obras.” (sem referência no original)

Síncope da ação não significa ausência de ação. Temos agora uma ação descontraída, de um drama desdramatizado.

Colapso e reprise

Incontestavelmente, a forma dramática se tornou, no decorrer do século XX, cada vez mais difícil de identificar, cada vez mais móvel e difusa. Sobretudo, cada vez mais complexa. Entre o novo paradigma e o antigo, a ruptura se fez sobre a rejeição da dialética hegeliana do dramático como ultrapassagem do lírico (objetivado) e do épico (subjetivado). O que dava movimento ao drama é agora considerado como um falso movimento. As novas dramaturgias libertam-se dessa dialética e procedem por ajuntamento, pela integração de elementos refratários uns aos outros – dramáticos, épicos, líricos, argumentativos, etc. Cada elemento se ajusta ao outro – ou melhor, o transborda – e deste transbordamento provém o próprio movimento da obra.

Na tradição hegeliana, o dramático não existe em si; ele não é nada além do produto conceitual da dialética da épica e do lírico. O que explica que nós não encontramos nenhuma definição do dramático na obra de Hans-Thies Lehman, salvo esta, talvez um pouco limitada:

“Se o drama moderno se baseia sobre um homem que se constitui nas suas relações interpessoais, o teatro pós-dramático, ao contrário, implica um homem para quem mesmo os conflitos mais graves não tomam mais a forma do drama […] Certamente, podemos num ou noutro momento reconhecer uma “expressão dramática” no tal combate de dirigentes, mas percebemos de novo, razoavelmente cedo, que no fundo todo conflito se decide em outro lugar – nos blocos de poder.”

Nesta concepção, que parece resumir o dramático às cenas agonísticas, reconhecemos, pela alusão aos “blocos de poder”, a influência de Adorno e, mais geralmente, uma rejeição não somente da forma dramática, mas do dramático por ele mesmo. Na nossa concepção, o dramático, mesmo difuso, primordial, retorna a este acontecimento específico, primordial: o reencontro catastrófico com o outro – ainda que o outro seja ele mesmo.

As duas concepções são inconciliáveis?… Não parece, pelo menos se nos fiarmos a esses incidentes da obra de Lehmann segundo a qual o teatro pós-dramáico “significa antes de tudo o desenvolvimento e a eclosão de uma potência da desintegração, da desmontagem e da desconstrução do drama”. Por uma tal observação, o autor não está longe de dissolver o próprio conceito de pós-dramático no que Volkner Klotz teorizou como a “forma aberta” do drama que ele define como “livre, ‘atectônica’, tendente à dissolução da estrutura” (KLOTZ: 2005). Não muito longe de estar de acordo com o que eu proponho, em O futuro do drama (com os seus desenvolvimentos sobre o coro e sobre o monólogo, categorias julgadas muito “pós-dramáticas” por Lehmann), a forma “rapsódica” do drama – que concluo ser “a forma mais livre, mas não ausente de forma” (SARRAZAC: 1999).

Tal como a consideramos, a forma dramática moderna e contemporânea é o terreno extremamente móvel de mutações e experimentações incessantes. Ao longo do tempo, o romance (notadamente na época naturalista) e a poesia (em particular com o movimento simbolista) exerceram sua influência: “romancização” ou “poetização” do drama. Hoje, as artes exteriores tais como o cinema, o vídeo, a performance, a dança contemporânea, penetram no drama e tendem a transformá-lo.

Esta intervenção das artes exteriores participa dessa pulsão rapsódica que trabalha a forma dramática. Pulsão permanente de renovação, de emancipação em relação à norma – o drama-na-vida. Pulsão de irregularidade, que se manifesta de forma mais forte, até imperativam no período do barroco, das luzes, do Sturm und Drang, na virada do século XX e, indiscutivelmente, na época atual. Pulsão rumo ao heterogêneo, à assimilação de elementos díspares que também concernem aos grandes modos de expressão como o dramático, o épico, o lírico, o argumentativo e, além disso, a combinação do cômico, do trágico, do patético. Ou ainda a inclusão da oralidade na escritura.

Obviamente, estando o campo sempre aberto, a multiplicação das experiências fragiliza o drama-da-vida e dissipa os contornos. Victor Hugo já havia constatado que, a cada criação dramática, ele deveria repensar a forma dramática – sendo cada peça, ao mesmo tempo, modelo, protótipo e obra única. Da forma dramática moderna e contemporânea, podemos dizer que ela está sempre à beira da evanescência, do colapso. Sempre a ponto de esgotar-se sobre si mesma. Quanto mais incerta de sua própria perpetuação, mais as transformações que ela não cessa de conhecer a tornam difícil de identificar e não coincidente com ela mesma. Mas, ao mesmo tempo, não podemos deixar de constatar que a renovação, a vitalidade da forma dramática, tem esse preço. O preço de uma permanente desterritorialização.

Nossa intenção, na presente obra, situada sob o signo da “reinvenção do drama”, é de seguir uma entre outras linhas de fuga da forma dramática da virada do séc. XX para o séc. XXI. De abarcar um aspecto ou um momento entre outros desta desterritorialização que apontamos mais acima: quando aquilo que penetra a forma dramática, aquilo que a permite destacar-se do colapso, encontrar uma energia, se recolocar em tensão, sobressair-se, não é nada além do teatro em si. Este teatro diferente do drama, destacado do drama, autônomo em relação ao drama, às vezes hostil ao drama.

Chamaremos este momento de reprise – que é o contrário de uma restauração – onde o drama se reconstitui, se regenera sob a influência de um teatro que se tornou seu próprio Estrangeiro.

Invenção do teatro, reinvenção do drama

Dos anos 1880 aos dias de hoje, o teatro liberto de seu assujeitamento à literatura dramática produziu certo número de invenções que poderíamos qualificar de utopias de teatro. Algumas são famosas, outras são discretas, mas todas tiveram um duplo efeito: por um lado, permitiram o desenvolvimento de uma arte do teatro e da encenação independentes; por outro, foram o motivo de uma reprise por parte de autores dramáticos em prol da sua própria concepção de drama. É sobre este segundo tempo, o tempo da reprise do drama, que decidimos centrar nosso estudo.

Sintoma desse processo de apropriação a posteriori das utopias polidas pelos diretores e teóricos – ou poetas – do teatro, o fato que vários autores dramáticos preferem ser chamados de “autores de teatro” ou “escrivões de teatro”. Como se eles quisessem abordar a escritura pelo viés da cena. Não no objetivo de saturar sua escrita com rubricas e outras prescrições de encenação, mas, pelo contrário, com a ambição de participar da liberação do teatro e de inscrever sua própria escritura neste(s) espaço(s) utópico(s). Isto quer dizer que, em nosso espírito, a reinvenção permanente do drama é profundamente solidária à invenção – ou às invenções – do teatro.

Estabelecer um vai-e-vem entre algumas dessas utopias e as escrituras dramáticas de 1880 e dos dias de hoje: foi esse o objetivo da pesquisa coletiva cujo resultado está aqui presente.

Primeiramente, seguindo um movimento que vai “do teatro ao drama”, uma dezena de sínteses: identificação de uma dessas invenções utópicas, por exemplo, a “supermarionete” de Craig ou o “teatro de andróides” de Maeterlink, depois o recenseamento de certo número de peças que, com o passar do tempo, foram alimentadas por essa invenção. Também será a bordada a utopia – é preciso aqui compreender a “utopia concreta”, no sentido de quando o utopista sonha “o castelo na Espanha, ele dá os planos” (Ernest Bloch) –; a utopia da “obra de arte total” de Wagner; a utopia daquele “despejo do vivente” comum, através dos tempos, por Maeterlick e Kantor, como um teatro “fora das palavras” portado por Artaud e revisitado por certo número de autores gestuais e/ou de glossolalias, ou que esta consistindo em Piscator numa “encenação do evento”, reprisado e transformado por Brecht ou, mais tarde, por um Peter Weiss ou um Heinar Kipphardt, ou ainda aquela do “teatro de imagens” de Robert Wilson que vai esbarrar com a escritura de Heiner Muller, etc., etc.

Num segundo momento, adotaremos o movimento inverso, “do drama ao teatro” e remontaremos, em uma dúzia de análises, de uma peça (excepcionalmente de duas) até a utopia (ou utopias) de teatro que pode fecundá-la(s). Será, por exemplo, a ocasião de identificar em O Caminho de Damasco de Strindberg a presença da utopia de um retorno à teatralidade do mistério, da Paixão Medieval cara a Mallarmé e a muitos outros inventores do teatro, de remontar duas peças de Yeats ao teatro sonhado por Craig, de seguir a evolução de Duras dos Viadutos de Seine-et-Oise a A amante inglesa a fim de daí extrair a influência do teatro segundo Régy, de encontrar em Rodrigo García-dramaturgo o traço do Rodrigo García-performer…

Assim esperamos (ajudar a) compreender melhor, pelo processo da reprise – que sucede a “crise” – as (razões das) mutações da forma dramática na virada do século XX ao XXI. De resto, temos consciência dos limites de nossa intervenção num domínio complexo e ainda pouco explorado, aquele das relações entre o texto e a cena ou, mais precisamente, entre o teatro e o drama. É aí que estamos persuadidos de que não resolveremos o problema invocando uma pretensa morte do drama, ou colando num certo número de obras – que intitulamos muito abertamente de a reprise do drama – uma etiqueta de “pós-dramática”, que todos sabemos que se descolará em breve. A propósito, alguns parecem se dedicar a isso, notadamente Thomas Ostermeier, que estima que “a teoria do teatro pós-dramático é hoje em dia ultrapassada, pois os conflitos devêm novamente tão fortes nas sociedades contemporâneas quanto o drama revém em força na vida, e o teatro deve ser seu eco” (OSTERMEIR: 2006).

Talvez o diretor alemão reenvie o balanço muito longe em direção ao passado – e em direção ao drama-na-vida -; ele tão pouco aponta para a necessidade do drama hoje em dia.

Notas:

*[nota do tradutor] Opsis: o que é visível, oferecida para o olhar, portanto, suas conexões com os conceitos de espetáculo e performance. Na Poética de Aristóteles, o espetáculo é um dos seis elementos constitutivos da tragédia, mas está abaixo de outras consideradas mais essenciais… O lugar na história do teatro atribuído posteriormente ao opsis, o que hoje chamaríamos de encenação, determinou o modo de transmissão e do significado global da performance. Opsis é uma característica específica das artes do espetáculo. In PAVIS, Patrice. Dictionnaire du Théâtre. Paris: Editions sociales, 1980.

[1] A revista Études Thèâtrales relatou uma parte dessas pesquisas: Mis-en-crise de la form dramatique 1880-1910 (n. 15-16), L’avenir d’une crise. Écritures dramatiques 1980-2000 (n. 24-25), Dialoguer. Um Nouveau partage des voix, vol. I e II (n. 31-32 e 33).

Referências bibliográficas:

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DORT, Bernard, Le Spectateur en dialogue. Paris: P.O.L., 1995.

ADORNO, Theodor, “Pour comprendre Fin de partie”, in Notes sur la littérature. Paris: Flammarion, 1984.

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SZONDI, Peter. Théorie du drame moderne. Trad. de Sibylle Muller. Belval: Circe, 2006, coleção “Penser lê théâtre”.

LUKÁCS, Georges. Le roman historique. Paris: Payot, 1965. coleção “Bibliotèque historique”.

DANAN, Joseph, Actions(s), in Jeans-Pierre Sarrazac (dir.), Lexique du drame moderne et contemporain, Beval: Circe/ Poche, 29, 2005 (a edição original foi publicada pelos Éthudes théâtrales em 2001).

ARISTÓTELES. La poétique, texto, tradução, notas, de R. Dupont-Roc e J. Lallot. Paris: Seuil, 1980, coleção “Poétique”.

NIETZSCHE, Friedrich. Fragment posthume [90] in La naissance de la tragédie. Paris: Gallimard, 1977, coleção “Folio essais” 32

KLOTZ, Volker, Forme fermée et forma ouvert dans le théâtre européen. Belval: Circe, 2005.

SARRAZAC, Jean-Pierre. L’avenir du drama. Balval: Circe/ Poche, 24, 1999 (a edição original é de 1981).

OSTERMEIER, Thomas. Introduction et entretien par Sylvie Chalaye. Arles: Actes Sud-Papiers, 2006 coleção “Mettre en scène”

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Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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