Se uma janela se abrisse

Crítica de Nada, uma peça para Manoel de Barros, com direção de Adriano Guimarães, Fernando Guimarães e Miwa Yanagizawa

24 de dezembro de 2015 Estudos

Vol. VIII n° 66 dezembro de 2015 :: Baixar edição completa em pdf

Resumo: A radicalidade da dramaturgia de cena em Nada, uma peça para Manoel de Barros evidencia relações intrínsecas entre opções realizadas em processos de criação e qualidades da fruição teatral. Nesse caso, o que é sempre uma dentre muitas condições pensadas para relações próprias ao teatro, aqui opera como eixo para o percurso criativo e orienta a constituição geral da cena. Vestígios, lembranças e relatos sobre os processos servem como materiais para tecer este estudo de caso que considera pontos de vista diversos, e costura memórias próprias da autora às memórias alheias, de alguns dos criadores desta obra.

Palavras-chave: processos de criação, processos de fruição, dramaturgia de cena, Nada, uma peça para Manoel de Barros

Abstratct: The radicalness of Nada, uma peça para Manoel de Barros‘ dramaturgy puts on evidence the intrinsic relationship between choices of creative processes dealing with qualities of theatrical fruition. In this case – something that would be one among many conditions to the theater relationships – operates as an axis for the creative path and it guides the general constitution of the scene. Traces, vestiges, memories and reports over the processes are serving as materials to write this study of case, considering different points of view, and to articulate some memories of the authoress with others’ memories – creators of Nada’ memories.

Keywords: creative processes, fruiton processes, scene dramaturgy, Nada, uma peça para Manoel de Barros

 

E se uma janela se abrisse numa sala preparada para uma festa familiar, onde juntos estão seis atores-anfitriões que atuam como quem pertence a uma mesma família e mais cerca de trinta convidados? E se nesta sala houvesse uma janela para se abrir, e por onde fosse possível olhar as condições do tempo, o céu e seus sinais, se há nuvens pesadas para uma madrugada de chuvas fortes; a rua e seus movimentos às vezes desconexos; se há um passageiro sonhando distraído naquele ônibus que cruzou a rua de trás do edifício; se um cão fareja algo para comer nesta noite; se uma estrela cadente atravessa o céu para ouvir pedidos de felicidade – enquanto aquelas personagens se enredam em causos e tarefas cotidianas? Se uma manifestação popular toma as calçadas e ruas do bairro, enquanto nesta sala um universo inteiro vai se revelando por meio de conversas ora triviais e tensas, ora bastante líricas? Se, afinal, enquanto transcorre esta reunião entre alguns que se conhecem e outros completamente desconhecidos a pretexto de uma peça teatral tivéssemos como ver e, portanto, saber quais outros eventos se dão para além desta sala e destas minúcias de acontecimentos, da intimidade por vezes velada, e por frestas escancaradas desta família; agora que já nos situamos no espaço cênico, e estamos na festa do aniversário de seu patriarca, ritualizado para nós convidados, e conosco, e por nós que resolvemos assistir a este Nada, uma peça para Manoel de Barros, numa noite de agosto ou setembro, no SESC Belenzinho, região leste de São Paulo, capital?

No ano de 2013, a temporada teatral de Nada contou com quase dois meses de apresentações que aconteciam de quinta a domingo. Era recorrente pessoas assistirem e reassistirem repetidas vezes a este espetáculo concebido e dirigido pela dupla de artistas Adriano e Fernando Guimarães (Coletivo Irmãos Guimarães/ Brasília – DF), e criado em processo bastante colaborativo com a participação de Miwa Yanagizawa (direção de atores e atriz do elenco), Emanuel Aragão (colaborador como dramaturgo), Liliane Rovaris, Marília Simões e Adriano Garib (ambos participaram até o término da primeira temporada), Camila Márdila, Otto Jr. (substituiu Garib), Rodrigo Lelis, Lafayette Galvão, Lúcia Bronstein (que substituiu Marília) – integrantes do elenco; além de Ismael Monticelli (colaborador na cenografia e projeto gráfico), e Zelito Souza (responsável por montagem e desmontagem, cenotécnica e contrarregra da peça). A temporada também teve produção local de Luque Daltroso e assistência de Wanda Santos.

Ao longo desse período, alguns espectadores solitários, pequenos grupos, casais, mães e seus filhos assistiam para depois reassistirem uma, duas, três vezes. Pessoas voltavam com novos acompanhantes, traziam alguém da família que ainda não havia assistido, e novamente participavam da comemoração do octogenário avô (interpretado por Lafayette Galvão), ao lado de quem se festeja como quem vai ao teatro, e vice-versa.

Faço uma quebra, e insiro com este parágrafo o espaço para contar das condições de escritura deste ensaio (se este assunto não interessa, vá para o parágrafo seguinte, diretamente). Ao escrevê-lo – ele integra um estudo mais extenso sobre dramaturgias de cena – envolvo-me com a seguinte situação: revisitar um período do passado recente, com ajuda de memórias minhas e alheias, cedidas por alguns dos criadores de Nada com quem consegui me comunicar, realizar entrevistas, receber relatos. Como vivemos em cidades diferentes (São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro), uma parte dessa comunicação foi presencial, e outra parcela mediada, com auxílio de gravação de áudios, telefonemas, mensagens via whatsapp e outros aplicativos, e-mails, e houve até a situação de uma entrevista durante meu trânsito entre cidades. A partir da reunião de muitas lembranças, tento criar um mosaico que, com auxílio metodológico e teórico, monto para analisar aspectos desta obra teatral, e permitir nova aproximação a ela – já que não está em cartaz, acessível ao leitor e ao público na atualidade. E este processo que envolve pesquisa e escrita se dá depois de transcorridos dois anos de uma temporada da qual estive muito próxima, porque trabalhei tanto na curadoria quanto na administração dela (atuando como colaboradora do corpo técnico do     SESC Belenzinho, onde se realizou) e, claro, como espectadora, seguidas vezes. Assisti quatro vezes até onde consigo me recordar. Fora o acesso que tive a outros materiais, entre o final de 2012 e início de 2013: projetos (proposição para realização da temporada, projeto arquitetônico e cenográfico), anotações e sinopses a respeito da concepção desta peça que forneceram informações cruciais; críticas, resenhas, notas publicadas na imprensa; e, já em 2013, oportunidades para conversas com seus criadores sobre questões pertinentes ao Nada, quando esteve em cartaz. O cerne do que aqui se ensaia está no conjunto das memórias, vestígios e versões sobre o que se passou entre os períodos de ensaios (2012) e término da temporada em São Paulo (setembro de 2013). Daí se depreendem linhas, pontos arredores e periféricos que ultrapassam esse período de tempo. E o ponto de vista do qual parto para me aproximar, analisar e recriar impressões sobre esta obra[1] é de alguém que a conheceu por muitos modos e meios. E tento aqui o imbricamento desses meus pontos de vista com os de seus criadores, correlacionando, mesclando e ora até confundindo. Sim, sempre há algum atravessamento de ponto de vista – as divisórias entre o que se lembrar e o que solicitar ao outro que se lembre às vezes são tênues. O tempo, também há que se considerar, age como colaborador essencial ao ensaio: produz distância, abre possibilidade para a maturação de ideias, sensações e noções, cria lembranças (e esquecimentos), empresta cores e sabores novos à experiência vivida no passado. Este ensaio parte da noção de que são instrínsecas aos processos de criação desta obra algumas intencionalidades para os processos de fruição. A fruição a partir desta espectadora que aqui ensaia, e das impressões de outros, que prestaram comentários após sessões da temporada realizada na Sala de Espetáculos I, entre quatro paredes de madeira erguidas para abrigar a cenografia, público e elenco, onde não havia uma janela. Não deixa de ser, portanto, um ensaio sobre muitas memórias.

Voltando: a temporada paulistana foi possível dada a arquitetura do espaço cênico que a acolheu, apta a comportar demandas cenográficas e técnicas variadas. Projetada para receber adaptações de acordo com necessidades bastante específicas, adaptou-se para posicionamento de cenário, palco e plateia, bastidores e coxias, maquinarias; e propôs algumas adaptações, que resultaram na construção de uma caixa, disposta no interior de sua caixa preta, concentrando dimensões da área cênica, a fim de estreitar a convivência num retângulo menor que sua área original. A construção permitiu proximidade física, e a condição de intimidade requerida por essa dramaturgia de cena que quer fazer elenco e público se encontrarem para a ocasião de uma festa, sem paredes, sem distâncias e obstáculos que os separem. Nesse interior se acomodou o cenário para a peça, que é uma sala de estar e, simultaneamente, uma instalação cenográfica chamada Rumor – aberta à visitação pública durante todo o período da temporada teatral, em horário alternativo às sessões de Nada.

Nada, uma peça para Manoel de Barros e Rumor formavam um díptico. A cenografia/instalação cenográfica era uma espécie de monumento à fragilidade, ou a uma ideia de beleza construída sobre fragilidades: composta por uma coleção de centenas de frascos, garrafas, pequenos recipientes e bibelôs de vidro, todos dispostos em estantes, numa disposição que fazia fundo à sala, e formando – quando visto à distância – uma espécie de emaranhado vítreo, luminoso e brilhante, de onde se destacava a rigidez com ares de eternidade de um piano de armário.

Rumor. foto: Ismael Monticelli.
Rumor. Foto: Ismael Monticelli.

Para preparar o ambiente de apresentação da peça, pouco antes das sessões semanais, a esta instalação eram acrescidos mobiliários (cadeiras, poltronas, namoradeiras), onde público e elenco estariam acomodados, conjuntamente – além de criados-mudos, mesa de jantar, alguns objetos e utensílios de uso doméstico. Essa nova disposição de coisas, ou recomposição da instalação Rumor para Nada, se transformava no ambiente acolhedor de uma sala residencial. O cenário repleto de vidros e reflexos deles espalhados por toda a parte formava o cômodo principal de uma casa, possivelmente ampla, certamente localizada no interior de algum lugar do Brasil; ou, arrisco dizer, do mundo. Há interiores mundo afora, ou melhor, mundo adentro. Onde houver centro urbano, metrópole, megalópole, haverá, por conseguinte, arredores, interiores, margens e cantos periféricos. Um lugar pressupõe o outro, ou é o próprio outro do primeiro.

Ou, como apresenta a questão dos duplos interior/exterior, Gaston Bachelard em sua Poética do Espaço, “o aquém e o além repetem surdamente a dialética do interior e do exterior: tudo se desenha, mesmo o infinito”; e prossegue, dentro de sua perspectiva fenomenológica: “O ser do homem é um ser desfixado. Toda expressão o desfixa. No reino da imaginação, mal uma expressão foi enunciada o ser já tem necessidade de outra expressão, o ser deve ser o ser de outra expressão” (BACHELARD, 2008, p. 216 -218).

E essa sala esteve posta e pontualmente pronta para receber o público na condição de convidado e para ali acontecer uma comemoração. Seus atores-anfitriões, noite após noite, recepcionavam espectadores para um espaço e situação onde experiências particulares se compartilhariam, algumas experiências previamente pensadas, ensaiadas, outras acidentais, de momento e ocasião. E essa cenografia remetia a muitas outras salas, lugares familiares como casas de avós, ou casas de sonhos e pensamentos divagantes, sempre atávicos. Sua constituição não se fixa (ou se fecha) em referências geográficas, históricas, temporais. Sala de genealogia ampla, de referências dispersas, capaz de remeter aos interiores de casas de São Paulo, do Ceará, de Santa Catarina, ou do Mato Grosso do Sul de Manoel de Barros, ou a qualquer lugarejo do interior do mundo. Havia um tanto de antiquário, de casa de colecionador de vidros também; de sala de jantar, e ainda de um não lugar. Cenografia capaz de despertar (ou adormecer-nos para?) sensações de pertencimento, quase parentesco com essa família.

Não há traços de regionalismo nessa composição cenográfica que mistura origens, materiais, traços de designer dos objetos cênicos. Pistas se embaralham e impedem delimitar um momento histórico. Não cabe pensar nestes termos porque nada conduz a uma temporalidade ou geografia específicas. O ambiente para Nada tenta reconstituir um espaço mais simbólico que histórico, mais arquetípico que regional, e, portanto, tende ao universal. Há intenção artística de universalizar este interior por meio de imagens que nos enviam à sala de nossos interiores, diversos interiores regionais e às regiões de nossas memórias familiares repletas de imprecisão. E, neste âmbito, inicia-se a dramaturgia de cena. A entrada nesse ambiente, bem como o primeiro contato que se estabelece com os atores-anfitriões, propõem a fruição na tríade espaço-tempo-atuação, inseparável neste caso e coração da dramaturgia criada por este grupo de artistas – que são também de diversas localidades.

E a intencionalidade de imprecisão se desdobra nas demais camadas da dramaturgia de cena: tentar um fio condutor para pensar essa criação misto de teatro, festa de família, performance e encontro casual entre conhecidos e desconhecidos, seja partindo de elementos da cenografia, do som e da luz, personagens (ou figuras), da dramaturgia textual, ou figurinos – sempre nos fará chegar a um tempo-lugar nenhum, e que pode ser muitos.

Tudo em Nada parece ser e pertencer a um tempo-espaço em estado remanescente. É como se estivessem coisas e pessoas desde sempre ou para sempre ali, elementos da cena e atores juntos e dispostos para esta ocasião que é festiva, mas cotidiana, tem traços do real e é ficcional, especial e rotineira, simultânea e coordenadamente.

O sugestionável da dramaturgia reside aí: nas muitas referências que proporciona, ou para este lugar indeterminado ao qual nos remete. Porque, no mais, há uma espécie de convite ao espectador para fruir (e usufruir) de um aqui e agora, um presente real, que requer qualidade de presença cênica do espectador.

E essa sala/cenografia tinha uma porta por onde entravam e saíam o público para o início e término das sessões. E havia uma outra porta que interligava espaço cênico aos bastidores, acessada apenas por aqueles que estavam atuando; uma porta mais escondida, ao fundo da sala, atrás do piano. A primeira porta permitia a cada espectador a entrada neste pequeno mundo, interiorano e interiorizado por nós – mesmo que sejamos desde sempre habitantes de grandes metrópoles. Porta de entrada para um pequeno universo disposto e criado para a poesia de Manoel de Barros, para festejar sua poesia.

E não havia nesta sala uma janela. Nem uma referência a uma janela, fosse meramente cenográfica (que nos permitiria a ideia apenas de uma janela, e não uma vista direcionada para um ângulo específico da rua). Janela de fato, real, que permitisse avistar o céu, o exterior da sala. E se houvesse, e se ela se abrisse, relações tão imersivas entre público e personagens, entre todos presentes e as situações, seriam completamente outras, talvez nem seriam. Teriam qualidades outras. Uma janela abriria passagem para acontecimentos outros, distraindo atores e espectadores das delicadezas e desimportâncias dessa festa de gente simples e interiorana, regada a quitutes, cachaça e música caipira. E de sua ficção construída por detalhes, miudezas.

A criação deste ambiente dramatúrgico – anterior, e também simultâneo à criação cenográfica propriamente – se deu durante cinco meses de processos, em 2012, que envolveram ensaios, conversas longas, atividades que totalizavam cerca de cinco horas diárias de trabalho na Casa da Glória (Rio de Janeiro). Buscou-se um estado de imersão para o elenco, e criativa, preparatória ao estado imersivo da ficção, para seu espectador futuro. A noção de “tempo morto” percorre estes processos – termo bastante recorrente nas memórias de Adriano Guimarães. A repetição meticulosa, diariamente em ensaios, desse tempo da vida cotidiana, um tempo tido como inútil, porque pouco produtivo em cena (ou mesmo fora dela), foi essencial ao assentamento das bases para as atuações, dadas por meio de relações construídas entre as personagens – e também para definição dos demais elementos que compõem Nada.

E sobre escolhas de colaboradores, atores e atrizes que integram o elenco, e ainda sobre os caminhos para a criação das personagens, Adriano sublinha seus nortes de percurso:

Interessa se eu estou chamando você pra trabalhar, você me interessa como pessoa, não só como capacidade de produzir personagem, ou de fazer uma voz x, ou de chorar, sejam quais forem as habilidades de um ator. Na verdade, quando eu chamo você, eu estou atrás de uma visão de mundo. E, de uma certa maneira, das experiências que você teve na vida. Se eu descarto isso, para mim não faz sentido, de verdade. Embora faça sentido para milhares de grupos, milhares de atores, isso é muito polêmico na verdade. Então, assim, eu acredito na pessoa e o que a pessoa pode criar.

Por onde eu vou acessar uma Ofélia em você e qual vai ser a Ofélia que nós vamos construir juntos? Não é uma Ofélia que eu vou impor, e nem uma Ofélia em que você vai “chegar e sentar…” A gente vai descobrir como é sua Ofélia no processo de tentar se aproximar da Ofélia de Shakespeare. E eu vou levar um banho de você, porque eu vou te dar uns dispositivos achando que você vai chegar aqui, eu quero que você chegue ali, na cena de loucura de Ofélia. E você com esses dispositivos, lúcida como nunca, presente como nunca, faz outra Ofélia. E aí como é que eu lido com isso, isso é bom, isso é ruim, eu tento me aproximar. Parece que é um processo vivo de relação afetiva entre a gente com aquele material. Então, foi esse o processo de criação dos personagens (depoimento de Adriano Guimarães).

Interesses próprios às pesquisas artísticas do Coletivo Irmãos Guimarães se relacionam aos campos de interesse dos criadores que integraram a ciateatroautonomo (Miwa Yanagizawa, Liliane Rovaris, Emanuel Aragão e Otto Jr.), e dos demais integrantes da equipe de Nada: há uma visão radical e compartilhada entre todos da ideia de experiência em contraposição às noções de representação no teatro. E assim, esse traço marca todas as esferas da dramaturgia de cena. Esteve presente anteriormente em trajetórias individuais e coletivas desses criadores, e – consequentemente – integra a concepção da peça e os comunica artisticamente. É de comum entendimento o teatro como espaço para compartilhamento de experiências e de afeto; ou este entendimento como prioridade nos processos de criação e de realização teatral.

A sinopse de Nada, uma peça para Manoel de Barros, publicada no site do Coletivo Irmãos Guimarães colabora para pensar esse aspecto determinante do percurso artístico dos envolvidos na criação e da própria criação:

(…) radicalizam seu incômodo sobre a representação, criando personagens que respondem a dispositivos de jogo postos em cena muito mais que a marcas e rubricas. Abertos à improvisação, os atores atuam em processo, interagindo e se modificando (qualidade que Deleuze atribuiu ao mapa) ao invés de reproduzirem as relações e modelos presentes na representação em seu sentido tradicional (qualidade que Deleuze atribui ao decalque). São atores-mapa, não atores-decalque. Na peça, o espectador acompanha uma convivência em família durante o aniversário do avô sem se dar conta de que ela esteja exatamente acontecendo. A disposição do público circularmente em cadeiras, como na sala de visitas da casa na fazenda, favorece a atmosfera intimista proposta pelo trabalho e a evolução da dramaturgia, que consiste maiormente nas relações que se estabelecem com esse público e nas respostas às interações ator-ator, ator-público, público-público (disponível em http://www.coletivoirmaosguimaraes.com).

Visa-se a presentificação do espectador potencializada, por essas vias do jogo de improvisação entre atores e com os convidados, porque há disponibilidade ao acaso e àquilo que pode ser proposto pelo outro do espectador, ali em cena, vivamente presente. Este “outro” pode ser envolvido de tal forma e em tal intensidade no tempo presente, que sua saída é sempre uma opção, embora a convenção construída é de entrada e imersão. Essa combinatória é radical em cena e se sustenta em termos de duplicidade e oposição: a correspondência do público se relaciona diretamente à liberdade de não corresponder, e até mesmo de recusar a participação.

Nesse sentido, as relações e suas nuances, pequenos acontecimentos criados por atores ou por espectadores, ganham centralidade. Como não se projeta um fora, como não existe uma janela, tudo se dá dentro de uma dinâmica interior e interiorizada, na qual o andamento de duas horas de peça depende exclusivamente da experiência das fatias, dos momentos e de acasos possíveis, e de planos traçados mais ou menos rigorosos. Há ênfase no jogo de atuações para construir a fruição sobre um “como” viver o presente e suas errâncias, contratempos, sutilezas, absurdos, contrariedades. O teatro como oportunidade para tão somente experimentar a situação corrente, com as qualidades, humor e disposição que se têm ali, naquele momento – e com pessoas com as quais talvez você não se disporia, senão por meio da condição ficcional, da convenção teatral, a compartilhar proximamente duas horas de seu dia.

Do ponto de vista da colaboradora Camila Márdila – atriz que já havia participado de outras criações sob a direção dos Irmãos, e atualmente integra o coletivo Áreas (ao lado de Liliane Rovaris e Miwa Yanagizawa) –, contando-nos sobre esse processo de criação por meio de entrevista gravada à distância, algumas memórias sobre as atuações emergem e trazem outras qualidades e relevâncias:

(…) a gente não definia exatamente quais eram os papéis no início. A gente não tinha essa necessidade de “eu sou filha da Miwa, vou chamá-la de mãe”. Então, a gente deixou de fora esses tratamentos específicos familiares e foi construindo a partir da relação, até pra gente não cair nos clichês iniciais de “se eu sou filha é assim, se eu sou mãe é assim, se eu sou marido, se eu sou mulher é assim”… E a gente se orientou muito pelo que surgia ali na convivência. E como a gente não tinha um texto a priori, tinha apenas um argumento da peça, o que a gente sabia era: a Ana (Marília Simões/Lúcia Bronstein) morava ali, foi embora e voltou no dia do aniversário do avô. Então, a gente ficou trabalhando muito o passado desta família, o que acontecia quando a Ana ainda estava lá (…)
Aí a gente levava coisas do Manoel de Barros, o tempo todo a gente lia bastante, trazia piada, histórias, imagens, ou coisas parecidas. Aquela coisa de ser um universo do Manoel; então eu acho que as palavras “aproximação”, “contaminação”, elas fazem parte deste processo (…) (depoimento de Camila Márdila).

O eixo das atuações é calcado em relações primeiramente criadas, a partir das noções de “invenção do passado” e “ações em tempo morto”; depois firmadas, estabelecidas em jogos de improvisação, e mais adiante, disponíveis às transformações de nuances e intensidades provocadas pela experiência de atuar frente às situações com presença participativa do público. O espectador é um provocador de situações, na medida em que não está em cena apenas como um elemento passivo. Ele é parte integrante da dramaturgia, e isso se demonstra desde a disposição espacial até modulações de situações nas quais é convidado a agir, interagir e reagir. E os membros dessa família, características individuais deles, relações coletivas e aquelas que propõem relações ao público formam um conjunto coeso, todo tangenciado por traços e marcas da literatura de Manoel de Barros.

Não se trata exatamente de figuras extraídas do universo literário dele, não passa por aí a constituição familiar, tampouco o seria com outros aspectos da dramaturgia de cena. Nem se faz referência direta a tais materiais. É como se particularidades da poética do escritor brasileiro compusessem uma massa a partir qual são engendradas figuras e ambientes ficcionais.

As ocasiões de ensaios produziram espaço para a intimidade entre as figuras, entre equipe e elenco – visto que não são todos procedentes de um mesmo grupo teatral. Foi ali que descobriram bases reais sobre as quais sustentar relacionamentos, afetos, desafetos, afinidades e discordâncias que emprestariam depois contornos aos membros da família e à cena, de modo geral – coisas não descoladas entre si. Nesse período de criação, investigaram possíveis laços interpessoais para, em seguida, apropriarem-se dessas descobertas como material dramatúrgico. Mas foi somente na presença do público que este material se consolidou, ou adquiriu formas mais definidas.

E antes de chegar ao poeta que é mote, inspira e oferece materiais ao processo de criação que resultou em Nada – e para quem é feita homenagem em dialeto outro, que não a sua literatura em verso e prosa – sugiro um breve passeio por outro poeta, um certo Alberto Caeiro (heterônimo do português Fernando Pessoa), e em “É preciso também não ter filosofia nenhuma” (de Poemas Inconjuntos). Nesse poema, uma curta prosa poética organizada em versos, Caeiro desenha uma janela ao leitor. Ela inexiste em Nada, mas pode ser um exercício de passagem, deriva (e retorno), este debruçar-se nela, antes de seguir:

Não basta abrir a janela

Para ver os campos e o rio.

Não é bastante não ser cego

Para ver as árvores e as flores.

É preciso também não ter filosofia nenhuma.

Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.

Há só cada um de nós, como uma cave.

Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;

E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,

Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

A atmosfera teatral de Nada, misto de festa e peça, se desenvolve em duas dimensões intrínsecas: entre as quatro paredes sem janelas, em meio às belezas do cenário e aos ritos de oração, alimentação, danças e causos; e por “entre” relações. Naquelas duas horas de duração se construíam empatias, proximidades; relações permeadas por pequenas cumplicidades entre atores e espectadores, incidentes, ações desviantes e retomadas do roteiro da peça, imprevistos, e também textos que sugeriam segredos da família, diálogos para pequenas intrigas, fofocas, perturbações de humor das figuras e também do público presente, afetos ensaiados e não ensaiados, momentos de festividade e pequenas rotinas. A textualidade funciona, assim, como se fossem janelas voltadas para um dentro, vias pequenas (e que poderiam ou não ser alargadas, e até mesmo fechadas), por onde transitam relações e afetos vários. Essas janelas seriam pertinentes também a um certo Manoel de Barros, cuja escrita parece transportar o leitor para interiores de si, do mundo, do outro.

Com a ajuda do pesquisador francês Paul Zumthor, a propósito da poesia e de suas funções, cabendo neste caso para entendimento da aproximação desta peça teatral aos escritos de Barros:

A “poesia” (se entendemos por isto o que há de permanente no fenômeno que para nós tomou a forma de “literatura”) repousa, em última análise, em um fato de ritualização da linguagem. Daí uma convergência profunda entre performance e poesia, na medida em que ambas aspiram à qualidade de rito. Utilizo aqui essa última palavra despojando-a de toda conotação sacra. Entre um “ritual” no sentido religioso estrito e um poema oral poderíamos avançar, dizendo que a diferença é apenas de presença ou ausência do sagrado. No entanto, a experiência que tenho das culturas nas quais subsistem tradições orais vivas, leva-me a pensar que essa diferença não é percebida por aqueles partícipes dessas culturas. No caso do ritual propriamente dito, incontestavelmente, um discurso poético é pronunciado, mas esse discurso se dirige, talvez, por intermédio dos participantes do rito, aos poderes sagrados que regem a vida; no caso da poesia, o discurso se dirige à comunidade humana: diferença de destinatário; mas não da própria natureza discursiva (ZUMTHOR, 2007, p. 45-46).

Liliane Rovaris e . Foto. Emília Silberstein.
Liliane Rovaris e Rodrigo Lelis. Foto. Emília Silberstein.

Liliane Rovaris (que atuou como tia Dalila) se lembra do processo e das apresentações feitas com presença do público – este outro participante, que fundamentalmente ajudava a delinear contornos e situações que durante os ensaios não eram possíveis de se estruturar:

E a gente já estava chamando gente pra assistir lá no Oi Futuro (RJ) mesmo, onde ia ser a festa, a festa, (olha só que ato falho), a peça. E pra mim era muito louco, que parecia realmente que eu ia pra uma festa, que eu gostava muito de fazer aquilo, me divertia demais fazendo a Dalila (depoimento de Liliane Rovaris).

Como o espectador é inserido na cena, e as relações e situações estão bastante abertas para serem construídas com sua participação, elas dependem absolutamente do envolvimento deste outro da cena. E, para tal, a impressão de estarem em festa, todos juntos, é chave para tal condição se dar e se estreitar. A textualidade esteve sempre sujeita à ação inesperada do público, e aos jogos que os atores manejavam em resposta a ele. Por isso, o texto teatral aqui em questão se assemelha a um roteiro, é poroso, com frestas para a entrada do público, e propenso ao ruído, à intromissão do acaso, à alteração súbita e improvisada. Como janelas.

Sobre a criação desta textualidade, a atriz recorda ainda alguns pontos importantes:

(…) as relações foram se estabelecendo, e às vezes era pedido que incluísse algum causo, uma história do Manoel de Barros, isso no inicio, depois foi bastante especifico, principalmente pra mim, e para Rodrigo [Lelis]. Era cada vez mais requisitada essa coisa de colocar algumas coisas do Manoel de Barros.

E aí foi se criando a relação da mãe com a filha que vinha de longe. Então, às vezes elas não podiam se falar, e aí começou isso, criar família, relações, e o Manu [Emanuel Aragão], que é autor, não ia aos ensaios. Até que um dia ele mandou um texto, e era um texto literário, lembrava Gabriel García Márquez, e a princípio não foi usado. Mas tinha uma coisa depois, que ele trouxe da árvore genealógica que era quase o início do espetáculo, depois que a gente apresentava, o público chegava, e a gente ficou muito tempo ensaiando essa coisa da árvore genealógica e o texto foi se criando… Às vezes, nós atores, no final do ensaio, junto com o Adriano [Guimarães], sentávamos e escrevíamos o que tinha sido falado. Então, aos poucos, a figura do dramaturgo foi inserindo coisas dentro do que a gente já tinha e aí chegou um texto, da história da chuva, não sei se você lembra, que era a coisa da tempestade, do vô, do dia da morte que o vô morreu… Enfim, ali foi um texto mesmo. Mas foi muito bom esse processo, porque o Adriano conduzia indicações, tudo era tão sutil, tão delicado e ele deixava eu propor muita coisa e eu me divertia muito, e aos poucos, assim, eu fui tendo uma autonomia total do texto, porque o texto da Dalila não tinha muito ali dentro da dramaturgia da família, então eu fui criando as histórias, peguei uma história do Beckett, que eu adaptei para o vestido, as histórias do Manoel de Barros… E eu era quase uma inserção ali, eu meio que atrapalhava, quebrava, eu tinha essa função de quebrar o assunto, de repetir, ou de falar uma coisa que não tinha nada a ver, e eu me inspirei muito em mim mesma, eu acho que eu sou assim… Ah, e do interior, da minha vivência em Bragança [Paulista], essas coisas (…) (depoimento de Liliane Rovaris).

O que se mantém como constante, a todo custo, é o roteiro de ações para a peça-festa acontecer, com episódios de festividade e algumas interrupções previstas, coordenadas por seus anfitrões, e aos quais o público de certa forma se submete. E textos, claro. Mas mesmo estes estão sujeitos à improvisação.

Se o espectador chegava com o pressuposto de simplesmente assistir a algo, porque em geral desconhecia a situação que o aguardava – logo era tomado de alguma surpresa, se alterava, alterava expectativas. Há convencionais atribuições que lhe são dadas no teatro, recorrentemente – e que pressupõem, com bastante frequência, uma qualidade de presença passiva diante da cena, ou a integração intelectual, porém silenciosa. Em Nada, ele é convidado a participar conforme maior ou menor grau de abertura apresentado pela cena e pela situação, com qualidades outras de sua presença, com tomada de decisões, escolhas, concordâncias ou discordâncias. Afora as predisposições de cada espectador à participação mais ou menos ativa, já que, ao final, cada qual participa como quer, com o que pode, e conforme se dispõe. Ou, por outro lado, não participa e não atua: ao espectador também é reservada a opção de nada fazer, recusando-se a festejar e a colaborar com a cena.

E, se houvesse uma janela interligando espaços cênicos e/ou este com espaços urbanos, ou quer a ausência desta janela evocasse a alguns espectadores a presença hipotética de uma janela, provavelmente a cada sessão não se dariam relações tão intensas como aquelas presenciadas durante temporada em São Paulo; como, por exemplo, quando espectadores se agitavam para tentar acalmar a intempestividade de uma personagem durante uma briga; ou quando, ao rezar ao redor da mesa de jantar, muitos fechavam seus olhos para adentrar a situação proposta, e alguns espectadores até mesmo choravam durante esta ação.

Fato é que tanto há algo de Caeiro em Barros, como há “janelas” passíveis de serem abertas para dentro de Nada – voltadas para o interior das relações construídas entre todos os presentes, em função destas relações e em prol das quais a dramaturgia criada por estes artistas se engendra e se articula.

Muitas janelas interligando lembranças, interiores, casas memoráveis e pequenos mundos, famílias particulares, famílias de todos nós.

Se a peça remete a um encontro em casa familiar, uma casa que nos habita, enquanto espaço arquetípico – e esta é uma outra suposição da qual parto para tecer comentários aqui –, há que se realizar um pequeno exercício de imaginação e pensar este detalhe, e porque detalhes ínfimos são janelas para Manoel de Barros, e como bem poderia se falar do mesmo modo da poesia de seu precursor português, Caeiro. Das insignificâncias, dos nadas, das ignorâncias, das miudezas, dos poucos saberes, dos ciscos, dos silêncios e desapercebimentos. E porque não houve janela para se abrir para um “fora”, como queria Pessoa – aquilo que se vê, ou se veria, ao abri-la, não seria o que se pretenderia antecipadamente à abertura, porque não há espaço para antecipações em um ambiente assim construído e sujeito aos eventos e acasos de uma festa-performance. E porque há janelas voltadas para dentro, e para a poesia repleta de negativas e pequenices do autor homenageado, ali se entrelaçavam, para além de um encontro literário entre poetas não conterrâneos nem contemporâneos (o que é sugestão minha, apenas), outros encontros, como aquele em que desde Beckett se avista Barros, ou em que, nesta mesma obra, de Barros se avista Beckett (voltaremos à Beckett mais adiante).

E era notável como, após o término das sessões realizadas em temporada paulistana, muitos espectadores demoravam a sair do espaço cênico, como quem demora a perceber o final de uma peça com horário marcado para findar. E mais: como quem demora a retomar a ideia, ao princípio original que o levou até ali: o de ter sido esta imersão a fruição de uma ficção teatral, que foi ali encenada e que termina, como é próprio a esta modalidade mais performática de experiência, sem a convencional “cena” dos aplausos e agradecimentos mútuos entre público e elenco.

Tudo em Nada converge para a experiência imersiva do espectador nas condições teatrais criadas. Como relata Adriano Guimarães, sobre as condições próprias a esta ambientação, que são o sustentáculo da dramaturgia criada coletiva e colaborativamente:

Ela vem de uma interpretação de como seria um procedimento do Manoel de Barros na poesia. (…) Então a maneira como esse procedimento foi feito para pensar em algumas coisas, como por exemplo, a importância que o poeta dá para o quase invisível, mas não invisível, o que você não está vendo, porque não é uma coisa protagonista para a gente, tipo esse cigarro no chão. Para ele isso aqui (e sobre isso tem até um livro que se chama Gramática expositiva do chão) é um universo de coisas, de histórias, de afetos, mas a gente está preocupado com o café, com a nossa conversa… Então o protagonismo do “cisco” transformado numa catedral: uma coisa que é um cisco, uma coisa desimportante, uma coisa abandonada, como esse cigarro, com toda potência que esse cigarro pode ter, e ele está ali abandonado, esquecido no chão e a gente está preocupado com outras potências. Daí vieram os vidros, daí vieram várias coisas que estão coladas nisso, na cenografia… E você (espectador) vai ter que fazer escolhas: onde você sentar, você vai ver uma coisa um pouco diferente do que você verá se outra pessoa… Uma pessoa que senta aqui vai ver uma coisa diferente de quem senta ali (…) (depoimento de Adriano Guimarães).

Também há muita performatividade em Nada: desde a proposta de experiência propiciada ao público até os meandros de seus processos colaborativos de criação – analisando em regressão.

O processo de criação foi orientado pelo uso de dispositivos que usam de situações reais, como tarefas domésticas e pequenos eventos, pretextos para convivência e oportunidades para descobertas mútuas entre atores, que irão, paralelamente, alimentar relações diretas entre seus respectivos personagens e gerar material dramatúrgico em geral. Esse expediente criativo visa, em última instância, a embaralhar noções da representação, proporcionando ao espectador impressões nubladas acerca de quem está de fato atuando como ator, naquela sala e durante tal festa, mesmo que tenha um roteiro prévio, contendo falas e marcas de cena. Para quem está ali na condição de espectador e convidado, e um tanto desavisado, viver a experiência pela primeira ou segunda vez, e experimentar essa dramaturgia que é situação, ou jogos de situações, parecerá sempre sê-lo, dado o material de improvisações e vivências criado por seus colaboradores, e algumas indeterminações e aberturas de suas estruturas aos acontecimentos de cada apresentação.

Tais dispositivos de criação e improviso são expedientes centrais para os estudos e experimentos realizados durante os ensaios. Orientados por Miwa e Adriano – sendo a primeira uma artista dedicada a pesquisá-los e sistematizá-los há alguns anos, desde longa experiência como integrante da companhia carioca ciateatroautônomo (dirigida por Jefferson Miranda), e de sua direção de Breu (SESC Belenzinho/ maio e junho de 2012).

Os dispositivos operam a trajetória de criação dos personagens, dos textos, da visualidade, e em função da constituição de relações e situações, tentando antever a imersão do público numa ficcionalidade que seja convidativa para tal. São pensados assumidamente por e a partir de características dos atores-criadores, que em nenhum momento são orientados a ocultarem traços pessoais (como dicção, trejeitos, modos de se mover no espaço etc.). São atores-criadores porque eles mesmos foram responsáveis por gerar e eleger materiais (textos, ações, decisões), a partir da provocação da direção que planejou e propôs tarefas e motes para situações de inter-relações. Vale ressaltar que não há direcionamento para o trabalho de caracterização, ou verticalização de atributos de um personagem nesse exercício guiado por dispositivos. Há algo próximo do que se pode chamar de uma não representação de outrem, por parte dos performers que buscam tecer estados propícios a atuações apoiadas em atividades fluidas, com tônus e estados de disposição corporal para se relacionar com situações ensaiadas e também com toda sorte de acontecimento não previsto, acidente de cena, erro, caco e até com situações mais radicais, como a ausência não planejada de um dos atores, numa determinada sessão de apresentação da peça – como ocorreu em São Paulo.

Como conta Miwa Yanagizawa, em relato e organização de suas memórias por escrito, e intitulado Pedaço de nada, sobre o período de ensaios, eles pretendiam: “gerar passado, passado construído durante o processo, o próprio processo como experiência de passado. Improvisações expandidas que geraram experiências de um tempo fora do circuito urbano”, apesar de terem sido realizados ensaios na cidade do Rio de Janeiro, no espaço cultural Casa da Glória. Foi ali, aproveitando recursos da arquitetura dessa construção do século XVIII, que possui amplo quintal, largas janelas, e cozinha equipada para preparo de alimentos, e de sua localização numa pacata ladeira do bairro da Glória, que a família e suas relações foram artesanalmente construídas durante os ensaios.

Após o percurso de ensaios, Nada estreou em 2012 no centro cultural Oi Futuro (RJ). Após esta temporada, duas alterações no elenco, e uma série de experiências transformadoras, próprias às convivências com os espectadores diversos que por ali passaram, Nada voltou a ser ensaiado para novamente estrear em Brasília, no CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil). Sem alteração posterior em seu elenco, estreia em São Paulo, em agosto de 2013, sua terceira e última temporada.

Tarefas de uma rotina familiar, como o preparo de um bolo, ou a limpeza do quintal eram propostas como dispositivos, conforme conta a diretora e atriz, e “foram criando contorno para as figuras, e os afetos surgiram desta ‘convivência’ de até 4 horas diárias de trabalhos, onde acho que não dá nem mais pra falar em improviso e sim de algo como construir um espaço de experiência para surgimento de relações e afetos” (depoimento de Miwa Yanagizawa).

Da convivência de trabalho – considerando a duplicidade semântica da palavra trabalho aqui empregada: como próprio processo de criação e também o manejo das tarefas-dispositivos – e com a colaboração da escrita de trechos e falas pelo dramaturgo colaborador, Emanuel Aragão; e após dinâmicas posteriores, próprias às experiências diretas quando a peça foi apresentada ao público durante as primeiras temporadas, resulta a peça Nada apresentada no SESC Belenzinho, a partir da qual escrevo este ensaio. Esta foi a única versão a que tive acesso pessoalmente, além de vídeo de registro da primeira temporada, realizada no Rio de Janeiro.

Não seria possível dar conta da totalidade desta e de qualquer obra de arte, qualquer que fosse o caso. Um esforço com esta pretensão esbarraria em dificuldades de muitas ordens, além de incorrer na ideia perigosa de possessão – possessão tanto de um saber capaz de abarcar a totalidade de uma obra, quanto sobre seus aspectos intrínsecos, sobre seus contornos e potências, características e interlocuções com outras obras e autores etc., como se houvesse meios para fechamentos e delimitações. Contudo, esta é uma obra bastante aberta, nada sujeita a qualquer movimento no sentido de encerrá-la em poucas considerações afirmativas.

O que aqui é chamado de “aproximação estética” (conforme exposto em seminário[2] realizado em São Paulo, pelo pesquisador e professor de estética, curador e fotógrafo François Soulages), é adotada como perspectiva e ferramenta, adaptada para esboçar entendimento de aspectos da relação dialógica entre criação e fruição desta peça.

E se o percurso criativo de Nada parece cronologicamente condensado, a gênese do projeto remonta ao ano de 2010, quando Adriano e Fernando Guimarães iniciaram pesquisas a respeito da obra e biografia de Manoel de Barros, e coordenaram exercícios de leitura e cena, baseados nestes mesmos estudos, com estudantes da Faculdade Dulcina (Brasília), onde atuam como professores. Foram dois exercícios paralelamente realizados: sob a direção de Adriano Guimarães, uma espécie de estudo de personagens e figuras que povoam a literatura de Barros se organizou para a realização de uma peça com traços de regionalismo e com referências diretas ao tempo e ao espaço de criação do autor. Com a direção de Fernando Guimarães, alunos realizaram uma espécie de sarau, em que o público participava ativamente de leituras e como ouvinte.

Dessa primeira etapa, foram aproveitados sobretudo materiais de pesquisa, argumentos, e fragmentos da experiência de ambos formatos cênicos. Permaneceram as figuras do avô octogenário (Lafayette Galvão), central na peça, e da neta que sai de casa e retorna muitos anos depois, para reencontrar a família; e, mais fortemente, o desejo de retomar o encontro com a obra de Barros.

Lafayette Galvão. Foto: Emília Silberstein.
Lafayette Galvão. Foto: Emília Silberstein.

Miwa Yanagizawa, por sua vez, relata que havia desejos comuns aos grupos que, numa segunda etapa, se unem para esta criação: a de trabalharem conjuntamente, a partir do “Interesse pelo processo, pensamento de Manoel, perder a inteligência das coisas para vê-las, aprender a capinar com enxada cega, de esfregar uma palavra até chegar a outras origens, e não criar um recital de suas poesias. De lavar a roupa no tanque e ver o que resta na água da espuma” (depoimento de Miwa Yanagizawa).

Esta segunda etapa se deu quando do encontro de coletivos (Coletivo Irmãos Guimarães/Brasília e ciateatroautonomo/RJ), porque participaram de um projeto para intercâmbio artístico (Rumos – Itaú Cultural/ 2011). Deste projeto, resultaram performances, instalação, conversas e registros de processos, intitulados “Pra daqui a 100 anosum estudo sobre ambientes cênicos a partir da obra Cem anos de solidão, de Gabriel García Marquez”.

Por um lado, o intercâmbio proporcionou um primeiro imbricamento entre modos de pensar e fazer a cena que, até então, não haviam se contaminado mutuamente.

Como publicado em blogue de registro das experiências, o coletivo brasiliense já apresentava uma trajetória definida de pesquisa e criação, circunscritas em zonas de diálogo entre artes e saberes distintos:

Adriano e Fernando Guimarães vêm desenvolvendo projetos híbridos, indisciplinados, de difícil classificação, há mais de 20 anos. Sempre transitaram pela contaminação entre linguagens artísticas: muitas das peças que montaram não partiram de um texto dramático, mas de escritos literários. Exposições em galerias e museus consolidaram também diálogos com outras áreas. A proposta plural de arte, debitária das artes cênicas tanto quanto das artes visuais, do audiovisual, da música e da literatura, pode ser apontado como o principal traço estilístico dos irmãos.
(em “O que há a dizer”, https://ciateatroautonomoirmaosguimaraes.wordpress.com/page/2/2011).

Outra marca de percurso dos irmãos Guimarães é o estudo aprofundado da obra de Samuel Beckett[3], que atravessa parte significativa de suas criações e que também resultou, entre outras tantas ações e projetos especiais, num conjunto de atividades apresentadas ao público, que incluíram espetáculos teatrais e de dança, performances criadas pelo coletivo, além de conversas com especialistas, reunidas na Ocupação Sozinho Juntos (SESC Belenzinho/maio e junho de 2015). A presença do autor irlandês em Nada é algo com que se deparar, sobretudo quando se pensa o díptico que a peça estabelece com Rumor (a instalação continha, dentre os demais elementos de seu ambiente, uma gravação em off, feita pelo ator Luiz Mello, de trecho de O Inonimável, de Beckett, que podia ser ouvida no interior da sala numa atmosfera de pouca iluminação e diante do monumento em vidro). Esta questão emerge da memória de Fernando Guimarães, ao colaborar com entrevista para este estudo:

(…) o Beckett está tão impregnado na gente que é muito difícil se separar dele. Porque você começa a pensar o dispositivo, você pensa… Não tem como, já são mais de 15 anos trabalhando com a obra desse autor, então é muito difícil isso ser dissociado. E a gente começou a trabalhar e como a peça foi acontecendo e eu achava que aquilo tinha uma coisa muito beckettiana. O cenário, ele foi concebido a partir de uma frase do Manoel de Barros, que ele fala “é preciso monumentalizar o cisco”. E o que é que acontece, ambos falam sobre prestar atenção ao que ninguém olha, por isso até que essa instalação, exposição, foi criada conjuntamente, que teoricamente pra gente era o encontro entre os dois autores (depoimento de Fernando Guimarães).

E sobre o encontro entre os coletivos do Rio de Janeiro e de Brasília – outras janelas – ou detalhes que os comunicam: ambos iniciaram suas atividades em 1989.

Jefferson Miranda, diretor da ciateatroautonomo, assim definiu o percurso e caracterizou os modos de criar de seu grupo, no mesmo blogue de registro do intercâmbio:

Penso o teatro como escrita da vida, para a vida, na vida. Nunca meu interesse foi fazer peças. Ou seja, é um caminhar constante, ou um surf… não tem onde se chegar, tem o ato… Não estamos buscando chegar a determinado lugar, mas, sim, queremos construir lugares, lugares de passagens, transitórios, precários (em “Em busca de um lugar para se aquecer a alma; mas que não para”, https://ciateatroautonomoirmaosguimaraes.wordpress.com/2011/01/26/em-busca-de-um-lugar-para-se-aquecer-a-alma-mas-que-nao-para/).

Além de Miwa Yanagizawa, Emanuel Aragão, Liliane Rovaris e Otto Jr. integraram a cia dirigida por Miranda.

Foto: Emília Silberstein.
Rodrigo Lelis e Otto Jr. Foto: Emília Silberstein.

Otto Jr., ator-criador de Nada, e que ingressou no ano de 2002 na ciateatroautonomo, quando a companhia iniciava ensaios para Uma coisa que não tem nome (e que se perdeu) – apresenta em seu relato ao blogue de registros do intercâmbio de grupos algumas características peculiares às linhas diretrizes para a atuação deste coletivo carioca, que são muito presentes nesta peça:

Os nossos truques todos não faziam mais efeito algum. Ao contrário, gritavam o quanto já não serviriam mais para o que estávamos tentando. Entrávamos então num limbo e fomos criando resistência para conseguir suportar, permanecer e transitar nesse lugar até que algo verdadeiramente novo surgisse. Não era fácil. O que mais me intrigou naquele momento foi abrir mão da nomenclatura, do conceito de personagem. Como não fazer personagem? Antes, muito antes de tentar “ser” alguma coisa, um personagem, é preciso “estar”. Eu até conseguia “estar”, e sentia que era muito diferente de tudo o que já tinha feito até então, mas não tinha consciência exata de como havia chegado naquela qualidade de atuação. Acho que só em Deve haver algum sentido em mim que basta, portanto dois anos depois, fui entender e perceber esse abismo que difere o “ser” do “estar” em cena e as milhares de portas e possibilidades que se abrem a partir daí (idem).

As “portas”, como diz Otto Jr., ou as “janelas” para adentrar imersivamente nesta condição teatral bastante performática, e criada em função de relações de proximidade entre cena e plateia, já eram objeto de estudo e experimentos desde então para estes atores-criadores.

No ano seguinte ao intercâmbio, inicia-se a terceira etapa, quando os Irmãos Guimarães retomaram materiais e estudos começados na Faculdade Dulcina, e se uniram aos artistas do Rio de Janeiro para nova integração. Convidaram atores e atrizes de outros grupos e coletivos para integrar a equipe que criou Nada, uma peça para Manoel de Barros.

Nessa fase, havia a perspectiva de direcionar os processos de criação para a composição da dramaturgia como um espaço de pertencimento, como ambiente para compartilhamento de experiências entre atores e espectadores, como conta Miwa:

A escolha de um espaço poético sem fronteira entre intérprete e espectador foi exercitada em todo o processo, desde o início dos ensaios. Usávamos quem estivesse por lá, o Adriano, o Fernando [Guimarães]; sempre tinha alguém para a gente usar de cobaia, num lanche da tarde, nos aniversários, em alguma conversa mais divertida e familiar ou nos aniversários que promovíamos. Foram nessas tentativas de construção de existência e convivência que as cumplicidades, os diálogos mais sutis, olhares, gestos velados, abismos foram criados entre nós, alargados depois com a presença dos espectadores, um espaço sempre em construção, onde a qualidade dialógica era motivo de reflexão diária para a cena, determinante para um modo de presença do ator, presença de um presente que traz consigo as camadas vividas durante o processo de criação e que faz da cena ainda a continuidade desse processo. O fazer de novo durante a temporada significava fazer de novo, juntos, atores e espectadores, naquele lugar, considerando cada acontecimento (depoimento de Miwa Yanagizawa).

Elementos da dramaturgia de cena cooperam para o estabelecimento de um ambiente teatral que é ao mesmo tempo ficcional – sem querer afirmá-lo em cena, e que provoca qualidades de presença aos atores e ao público –, ou em prol de um nível tal de imersão e convivência reais.

Também, para isto, para que houvesse uma experiência com a poesia, divertida e festiva, se vivia esta peça para Manoel de Barros. Como quem vai ao teatro. Ou vice-versa.

E, finalmente, partindo da perspectiva kantiana, há tipos distintos de beleza. Dentre estas categorias criadas pelo filósofo, existe uma certa “beleza livre”, qualidade que não requer conhecimento sobre e não pressupõe fins determinados para uma coisa – denominada pulchritudo vaga (KANT, 2005, p. 76).

Desta liberdade é feita a beleza de Nada, uma peça para Manoel de Barros. Ela não está em busca de perfeição, não é para tal que se mostra, se está, ou é. Em função de nada, de coisa alguma, a não ser do sermos e estarmos no único lugar que podemos ser e estar sempre: no presente.

 

Referências bibliográficas e sugestões de leitura

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

BAUDELAIRE, Charles. Escritos sobre arte. São Paulo: Hedra, 2008.

BARROS, Manoel. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010.

BERGER, John. Modos de ver. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1999.

CAEIRO, Alberto/ PESSOA, Fernando. Poesia completa de Alberto Caeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

ECO, Umberto. Obra Aberta. São Paulo: Perspectiva, 2012.

ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

FÈRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. São Paulo: Sala Preta, 2008.

FERNANDES, Sílvia. Teatralidades Contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2010.

GIANNOTTI, J. A. O Jogo do Belo e do Feio. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2014.

KANT. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2005.

LACAN, Jacques. Escritos. São Paulo: Perspectiva, 2011.

ORTEGA Y GASSET, José. A ideia do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2014.

PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo: Perspectiva, 2014.

PHILLIPS, Adam. O Flerte. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2011.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2009.

RANCIÈRE, Jacques. O inconsciente estético. São Paulo: Editora 34, 2009.

SALLES, Cecilia Almeia. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Intermeios, 2011.

SOULAGES, François. “Estética e método”. In: Revista Ars, n.4, dezembro de 2004. São Paulo: Editora 34, 2004.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

 

Natália Nolli Sasso atuou como jornalista (Rede TV!, SBT, Revista Imprensa e agências de comunicação). Trabalha desde 2004 como programadora e curadora, integrando o corpo técnico do SESC SP, e como autônoma em projetos relacionados à performance. Atua também como poeta e pesquisadora. É mestranda em Artes-Teatro na Universidade Estadual Paulista – Unesp.

 

[1] De fato, aquele que realiza sua pesquisa em estética deve, primeiramente, ter uma relação sensível com o objeto. Esse tipo de relação nutre a dimensão existencial da estética e pode se dilatar na aproximação criadora. O pesquisador é, então, criador. Ele pode, como Husserl, fazer a épochè da pesquisa, colocá-la entre parênteses, diga-se em estado de sono, para retomá-la depois, enriquecida de sua criação; ele pode também fazer atuar sua criação experimentando-a em ligação com e em função de sua pesquisa (SOULAGES, 2004, p. 25).

[2] “Estética e Método” (SOULAGES, 2004), material resultante da participação do pesquisador francês em seminário realizado pelo Departamento de Artes Visuais da USP, em São Paulo.

[3] Ver artigo publicado por Luciano Gatti nesta Questão de Crítica, Vol. VIII, nº 65, agosto de 2015 (http://www.questaodecritica.com.br/2015/08/ocupacaosozinhosjuntos/).

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