Confidências do marquês no dia em que morreu

Tradução de Manuel Guerrero para a peça de Sergio Arrau

31 de março de 2014 Traduções

A José Roldán

(Confidencias do Marqués el día em que se murió, de 1988, estreia em 1990 sob direção de Sergio Arrau e interpretada pelo ator peruano José Roldán.)

Personagem: Francisco Pizarro.

Lugar da ação: Múltiplo. Cenário nu ou com praticáveis.

PIZARRO: (Aparecendo, espada na mão). Sem-vergonhice! Na minha própria casa? Filhos de ventre ruim, agora vão ver! (Luta furiosamente). Bando de malparidos! Nunca tive medo da morte. Venham, venham miseráveis!

(É ferido e cai. Depois de um momento se incorpora e se dirige ao público.)

O que está dizendo? O que que eu tenho a ver com o meu pai! Interessa se ele foi ladrão ou nobre? Que tenha morrido num convés… ou em casa, rodeado de choronas? A mim isso nem interessa. Jamais o conheci, de maneira que estou, soberanamente, nem aí.

O coitado, fosse ele quem foi, nem sequer me reconheceu. Para mim dá na mesma se foi bandido ou padre, entende?

Acho que nem a minha mãe sabia. Se bem que uma vez me disse: “Sangue nobre corre pelas tuas veias, Francisco”. Estava bêbada, como de costume. Depois disso, preguntei o que ela quis dizer. “Sei lá, moleque, não faça perguntas estúpidas. Tu eis só meu e já.”.

Sou Pizarro. Igual ao monte de irmãos de todas as cores, odores e sabores. De pais de múltiplas cores, odores e sabores. Mas somos todos Pizarro, no fim das contas. Como outro dia eu insisti junto à minha mãe… Queria saber, ora. Zuás!, uma paulada. Para que não andasse perguntando o que a ninguém interessa. Era uma besta a velha! Não sei se foi por afã de aventuras ou por fugir dela que embarquei em Cádiz. Em Cádiz, foi? Francamente nem me lembro.

Mas também, em Trujillo de Extremadura não havia futuro para alguém como eu: Ambicioso, inteligente e trabalhador como boi. Mesmo sendo analfabeto e que não conhecesse nem o A. E então, ia eu ser cuidador de porcos a vida toda? Por esta! Extremadura é dura e seca. Como a velha. Seca e dura. Sinto falta dela. Sinto falta da minha velha e da minha terra. Porque afinal de contas é a minha terra, não é? Minha? Bom, é um jeito de falar. Na realidade, não tinha nada meu. Salvo as roupinhas remendadas que davam lástima. Que cosia e recosia a velha com pedaços que catava por aí. Que faziam das minhas roupas um mosaico pitoresco, em que nenhum fragmento combinava com o outro.

Minha terra…! Soa a ironia. Bom… mas a gente pensa, principalmente quando se é pequeno, que o ar, o sol e os morros são de todos. Que o riacho com salgueiros na beira é da gente. Porque a gente a viu desde sempre. Desde que engatinhava. E a gente sente falta da bendita terra, apesar de ser dura e seca. Ou talvez por isso mesmo. E não úmida e branda como esta Lima, que é minha e não é. Porque não é seca e dura como eu gostaria.

Sabem de uma coisa bem divertida? Estou morrendo. Sim, morrendo. E bem depressa. Talvez por isso me lembro tanto de Extremadura. Em forma tão vívida que parece que estou lá, na beira do riacho, imaginando, sonhando, enquanto os porcos fuçam na lama.

Era um tempo feliz. Escutava ao meu tio Juan, eu com os olhos deste tamanho, contando-me histórias do Rei Artur, de Galaor y Amadís de Gaula… Cavaleiros tremendos que se lançam a mil combates, imbatíveis sempre, lança em riste a toda vela e com a armadura brilhante como um espelho. Eu teria a minha armadura! Melhor do que a de Amadís de Gaula. Jurei que teria. E a tenho! A melhor das Índias. Do mais puro aço toledano. Viu, tio Juan? Tenho tudo o que quis ter. Tudo aquilo que me contavas, enquanto eu te escutava com os olhos redondos como pratos.

– Pedaço de animal! O que faz aí? Dormindo? Assim foi que perdeu dois porcos no mês passado. Roubaram bem na sua frente… Ignóbil, mal nascido!

– Não, Dom Paco…! Juro que…

– Se perder mais um não te deixo osso inteiro.

– Eu juro, Dom Paco, que não estava dormindo. Só sonhava.

– E não é o mesmo, bastardo sem-vergonha? Ai de ti se te vejo sonhando de novo!

Aguentava. O que me restava? A casinha onde morávamos pertencia a Dom Paco. Como todas as terras nas redondezas. Velho sarnento! Se não estivesse morto e podre, juro que voltava para te matar! Porque eu não te matei,… Não é verdade? Não me lembro bem… Não sei… Será por isso que fugi de Trujillo? Não, eu não fugi. Eu fui embora. Fui embora de Trujillo para ser o que sou!

– Mãe… O que era meu pai? Ciador de porcos? Soldado?

– Marquês.

Disse uma noite em que estava de bom humor, comunicativa, quase parecia uma mãe normal, enquanto catava meus piolhos ao lado do fogo.

– Marquês, mãe? De verdade…?

Mas, não me respondeu, os olhos remelentos fixos nas brasas. Marquês? Mais do que Amadís de Gaula? Mais do que Galaor?

– Tio Juan, Marquês é como ser Rei? Menos? Como Vice-rei? Isso? Então vou ser Vice-rei. O que digo! Sou! Sou Vice-rei do Peru! Não mentistes, mãe: sou de sangue nobre.

Me dói o pescoço, caramba…! Maldito Almagro! Tomara que te queimes no inferno pelos séculos dos séculos, amém!

– Quem quiser ser rico e não seguir como pobres coitados farrapentos, que passem desta linha. Quem não se atrever à grande aventura, que volte ao Panamá. Talvez encontrem um empreguinho em algum Ministério, esquentarão a cadeira durante trinta anos e se aposentarão. Isso se tiverem sorte. Porque o mais seguro é que acabem como vendedores ambulantes.

Ruiz, Peralta, Cuéllar e uma dúzia de aspirantes a suicidas passaram da linha que traçei na areia com a minha espada, lá, na Isla del Gallo. Passou a pior ralé da Espanha. Que digo! Não, senhor: a melhor! Os que engoliram o desespero, voltar atrás? Jamais! A ser ambulantes, arrastando carretas? Avancem meus bravos! Cagando em nossas calças perante o desconhecido. Mas, tenho certeza de que também Amadís de Gaula cagou nas calças quando se lançou contra os mouros.

É aqui o grande Império do Sol! ¡Requete diablos! Ouro, ouro, por São Lúcifer! Como proceder? Diplomaticamente, como amigo? Que nada! Com esses seres cor de terra que fogem como coelhos quando nos veem chegar? O padre Valverde quer cumprir com o seu ofício. Evangelizar e ganhar almas para os céus. Mas, de quais almas estão falando? Esses aí não tem alma. Mais tem o meu cabalo, por qualquer parte.

Para dominar é preciso escarmentar, não é verdade? Claro. Nada de palavras bonitas. Pau neles! Animal se domestica a pauladas. Como fiz com o meu cavalo. Incrustei as esporas nas carnes até que quase saíram suas tripas. Me derrubou sei lá quantas vezes, mas não ia me vencer. Mas, lá vou eu, de novo, e apertando as pernas com fúria. E afundando as esporas e batendo na cabeça, onde mais doí!. Eu matava, mas dominava. Até que cedeu. Se deu! O bruto compreendeu que eu era o amo. Isso é o que os índios têm que entender: Que eu sou o amo! E me ajudas padreco Valverde ou vá à…! É preciso dar um bom escarmento. A matar, a matar, que o mundo logo vai acabar! Só mortos é que esses índios vão aprender a viver.

Atahualpa? Atahualpa. ! Bem sabia que iam mexer no assunto! Que se fizemos amizade… Que se jogamos xadrez… Que se lamentei ter que matá-lo… Querem saber? Matei com prazer. Sim, com prazer. Por quê? Por maricas. Maricas consumado, depilado e perfumado que dava nojo. Quando o vi em Caxamarca quase desmaio. Parecia uma ave cheia de penas coloridas. Como escutam. E era igualzinho à Ramona, uma puta que no Panamá me roubou cinquenta dobrões. Como me xingou o padre Luque por andar perdendo o dinheiro da expedição! Contou ao caolho Almagro e este me veio com tremenda cara de cachorro.

– O que foi, compadre? São minhas pratas, né? E faço com elas o que me dá na telha.

– São as pratas da conquista, Pizarro. E nos custou muito consegui-la para que desperdice assim porque sim.

– Vamos, Diego, tranquiliza-te…

– Se não procedemos com seriedade tudo vai parar no maldito caralho.

– Está bem, está bem, não esquente. Depois descontam dos meus ganhos futuros e pronto.

– Mas isso não é certo, ora, homem.

– Chega, compadre!

Caolho desgraçado, mas já vai me pagar. E também o frei punheteiro, que se faz santão porque não consegue. Mas, a Ramona bem que valia a pena, ladra e tudo. E lá estava essa outra Ramona em Caxamarca, cheio de joias o desgraçado! Gostou de mim assim que me viu. Como brilhavam seus olhinhos puxadinhos e libidinosos! Então foi que decidi cobrar os dobrões que tinha me tirado no Panamá. Cobrar com ótimos juros: cem mil milhões por cento!

E depois veio a história do quarto do resgate: até onde chegasse a Ramona na ponta dos pés, até ali encheriam de ouro. Cumpriu. Mas, assim mesmo o mandei matar. Não aguento maricas. Menos ainda quando gostam de mim.

Dá tanta vontade de rir quando se fala da estratégia genial que usei na eliminação de Atahualpa. Suprimindo o deus dos índios porcos, seriam manipulados ao meu bel prazer. Porcos! Pelo visto sigo com os porcos, exatametne como era em Extremadura. Fazer o quê, é meu destino! Agora bem: Matando o deus deles, eu passava a ser mais do que um deus, que tal? Estratégia genial? Que nada! Puro acaso, intuição ou palpite. Porque é preciso reconhecer, afinal estou morrendo e é bom ser sincero como corresponde perante os arcanos incógnitos, como dizem os cultos. Eu não sou gênio nenhum. Só sou um homem esforçado, perseverante, teimoso como um burro, que chegou até onde chegou sem ser Amadís nem Galaor.

Que chegou com trabalho. Com muito trabalho. Esfolei as lombadas desde que tinha três anos, sem conhecer jamais o descanso. Agora vou descansar finalmente. Fazer o quê! Mas ninguém me tira o que eu vivi. E, no mínimo, terei uma boa estátua minha na praça de armas de Lima!

Lima! Cidade de merda! Suja sem remédio, pois jamais cai chuva decente para limpar tanta imundície espessa. Mal cai uma garoinha insignificante. Como odeio essa maldita terra! Lima é minha, eu a fundei, mas mesmo assim a odeio! Claro que nem a pau voltaria para a Espanha. Por mais que com todo o ouro que tenho viveria como os deuses. Em Trujillo seria um grande senhor. O maior que já houve em Extremadura.

Mas não. Na Espanha seria mais um. Um “tal das índias” a quem todos desprezam, embora façam louvores e reverências, só pelas pratas que tem. Um bastardo enriquecido. Já aqui sou o primeiro. E prefiro arrebentar aqui!

Te vingastes, Almagro. Mas, caiu na minha, miserável! (Ri.) Querias Cusco, não é? Vejam só a pérola! Um momento compadre, Cusco me corresponde. Não vedes que a ti corresponde mais ao sul, sócio? Assim decidiu o Rei da Espanha. Queixa-te com ele, ora. Aconselho que vá ao teu, compadrinho: ao Chile. Dizem que esse lugar é uma maravilha. Que tem um montão de ouro. Que está por todos os lados. Que lá está El Dorado. O que está esperando? Também dizem que os índios são gente boa. Que não matam uma pulga. Ao Chile, caolho bonito, e vá pela sombrinha! (Ri.)

Pensei que não veria mais. Eu já estava informado do inóspito daquela terra e dessa gente. Mas, resultou bem duro o caolho e voltou com seus rotos, raivoso que nem uma fera, a me fazer a guerra.

Liquidei o velho Almagro. Mas o seu filho, esse franguinho meio enfeminadinho que me chamava de “tio”, tão hipócrita como seu pai, por sua vez, me matou. Ele não… como poderia! Seus cúmplices, esses malditos traidores.

Sento que me restam poucos minutos. A espada que atravessa meu pescoço não me deixa respirar.

Como eu gostaria de estar na beira do riacho, deitado embaixo dos salgueiros, lá em Trujillo de Extremadura! No final das contas, Dom Paco não era um homem tão mal. E a minha mãe… E o meu tio Juan… O entardecer lá, com suas mil cores incendiando e o céu, é algo incomparável.

Já por outro lado: Lima e seus céus aguacentos… Que porcaria! Porcos, porcaria, sempre os porcos… Haverá porcos no inferno? Se houver, com certeza que vão me mandar a cuidar.

Mas, sabem? Depois de tudo e apesar de tudo… amo esta terra. Amo entranhavelmente. À terra e às minhas mulheres, todas elas índias. Meus filhos… Ah, meus filhos! Aí estão Francisca, Gonzalo, Francisco e Juanito… meus mesticinhos queridos. Espero que se lembrem de mim.

Aqui ficarei e serei um corpúsculo a mais da terra, desta pachamama que foi generosa comigo. Que me deu tudo.

Acho que devo fazer algo mais por esta gente. Entregar a eles os meus tesouros? Não, claro que não! Algo muito mais valioso, que sirva para sempre. Algo… como explicar…!, que lhes sirva de norma, de guia, de motivação. Legar a eles a essência do que venho bradando ao longo da minha esforçada existência. Isso mesmo. Tenho que fazer de imediato. Não levem a sério o que contei. Foram só minúcias anedóticas sem importância. Agora vem o importante. Abram bem seus ouvidos.

Que dor há no meu peito agonizante. Resta pouco, devo me apressar. O transcendente se deixa sempre para o fim, certo? Para que fique permanentemente na lembrança. E eu quero que me lembrem. Assim não morro, compreendem? Escutem… Prestem muita atenção…

Eu, o marquês Francisco Pizarro, conquistador do Peru, abro meu coração e lhes entrego o mais valioso da minha vida. Gravem-no em seu espírito com letras de fogo. Eu… quero lhe dizer… que… (MORRE).

PANO


Leia na Questão de Crítica o artigo de Manuel Guerrero, tradutor da peça: http://www.questaodecritica.com.br/2014/03/discurso-do-marques-no-dia-em-que-se-analisou/

Vol. VII, nº 61, março de 2014

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