Grupos em processo de criação
Artigo sobre o ENCENA – Desvendando o processo, 2º Edição, realizado na Galeria TAC
O projeto ENCENA foi para sua segunda edição mostrando, mais uma vez, os processos criativos de grupos de teatro. A intenção do evento é que grupos apresentem parte do seu processo de criação e/ou linha de trabalho que resultará numa montagem e, em troca, possa ter um feedback do público sobre o que foi mostrado. No dia 18 de outubro, seis grupos se apresentaram, na Galeria TAC, na Lapa.
O primeiro, Lamento e liberdade, de Brunno Vianna, conta a história de duas escravas no Período Regencial Brasileiro. Foi uma cena curta, de duas atrizes negras que representaram com muita autoridade e imbuídas do texto – do próprio diretor – as agruras da vida da época, as brincadeiras entre os seus e o linguajar. A formação acadêmica de Brunno Vianna certamente são fundamentais para a criação do texto mas, além disso, a pesquisa de documentos, música e pontos cantados por escravos e referências propostas por ele e executadas por Cláudia Leopoldo e July enriquecem o pouco que pudemos ver.
Em Vem!, do diretor Marcio Zatta, também criador do Teatro da Estrutura, método no qual a verdade do ator mais a verdade da personagem literária vão em busca da verdade absoluta para a criação cênica, os atores se ordenam de forma geométrica no palco. Talvez seja esta a ideia do espetáculo, a exposição do ser humano transformado em maquinário, em apenas ser mediador do trabalho, desejo, instinto e puro caos da contemporaneidade sem, no entanto, senti-los de fato. Uma cena limpa, com atores fisicamente preparados e com movimentos precisos que se coordenavam em intervalos ou com simultaneidade. Artaud e Grotowski aparentes como processos atorais e Meyerhold e Laban na movimentação de cena – embora estes dois últimos não tenham sido inspiração direta para o grupo. Três atores e seres humanos (Carol Mattos, Diego Sant’ana e Otto Caetano) movidos pela urgência do mundo atual em contraponto com a Mulher Transcendental (Helen Maltasch), uma ‘personagem quase’ mítica e impossível de ser atingida enquanto estivermos imersos na pressa atual. A intensidade e tensão incômoda da primeira parte foi marcada pela ausência de texto, excesso de movimentos e músicas em volumes exagerados. Esse mal estar pertinente à cena foi quebrado pela fala da personagem mítica que, somente pela sua caracterização, não precisaria de texto, mas apenas de gestos e intenções corporais que remetessem ao avesso do que nossos olhos estavam acostumados. Foi bonito de se ver. Mais ainda seria se apenas se compusesse com imagens e música, já que a intenção é nos mostrar e nos reconhecermos como seres ‘mudos’ nessa sociedade.
Eu me amo. Eu me aprovo., texto e direção de Vinícius Arêas. Sim, eles se amam e se aprovam. A comédia escrita por esse jovem autor admite drama, comédia, suspense, terror e o Grupo Atorais, amigos formados pela Univercidade, estão em cena se aprovando como uma unidade para mostrar que o trabalho em grupo é e pode ter um resultado concreto e de qualidade. O texto é feito a partir de temas atuais e suas variações, vezes trágicas, vezes surreais, mas sempre pelo ponto de vista do humor, como o próprio autor diz, humor-negro. A dramaturgia ágil, quase sem pausas, é levada ao palco por atores afiados e com relações bem estabelecidas com seus personagens e o outro. Mesmo que seus papeis sejam do porteiro rabugento à psicóloga (assassina) e ao terapeuta lifecoach. E lembrando que a comédia vem pelo humor do texto e também pelas peculiaridades absurdas das situações, mas que sem dúvida são reconhecíveis pela plateia. Com Dayanna Lima, Bruno Dal Ponte e Vinícius Arêas.
Teatro Curupira, com Um samba para Plínio Marcos. Nesta apresentação, embora seja uma peça ainda em acabamento, a escolha foi mostrar como chegaram a cenas já prontas a partir de estudos e pesquisas do vocabulário corporal das duas atrizes. O texto é baseado em Dois perdidos numa noite suja, de Plínio Marcos e a cena, diferente do que estamos acostumados, é apenas um reforço de que textos não precisam e nem sempre requerem atuações e concepções realistas ou ilustrativas de suas escritas. Além do processo em dupla, a direção de Ronaldo Ventura é feita de São Paulo. As diretrizes da cena e dos ensaios e do andamento da criação são dadas por ele e elas, Ana Cecília Reis e Caju Bezerra, aqui no Rio, se comprometem a trabalhar física e concretamente exercícios corporais de ação e reação, equilíbrio e desequilíbrio, direções, sentidos, oposições não apenas do corpo, mas de papeis do opressor-oprimido, ameaçado, impositor, queda e suspensão. A dupla cria partituras físicas e as desenvolvem e aperfeiçoam de acordo com o trecho do texto, com cadências musicais e números circenses. O que podemos ver como espetáculo é uma cena preenchida de pesquisa e resultado de um processo investigativo. Isso fica claro, justamente, por essa inadequação entre o gesto: corpo e movimento na relação das duas e a relação com o material dramatúrgico. O que poderia ser injusto ao texto ou ao entendimento de uma obra dramatúrgica a partir da encenação se esvai numa cena em que, além de uma obra montada, temos escancarado o processo de chegada até lá. Mas em Um Samba para Plínio Marcos, isso não é reflexo de precariedade ou material de ensaio mal escondido, mas ao contrário, de expor e deixar a ser apreciado o que era experimentação e se torna real e concreto, aos nosso olhos, quando vemos em cena as escolhas feitas por elas, assim como as escolhas que elas deixaram de lado.
Em Não sou feliz, mas tô tentando…, de Bárbaro Heliodoro, Filomena, uma senhora mineira, narra episódios de seu passado enquanto aguarda a chegada de seu neto. Dona Filomena tem uma interlocutora, uma boneca, com quem fala sobre, entre tantas coisas, a época em que morou com sua filha e seu genro no Rio de Janeiro. Marcos Andrade incorpora a senhora com sotaque mineiro e linguajar bastante informal. Na estrutura do texto, percebe-se uma cronologia e linha de narrativa da história, mas que se perde na encenação e em apartes. Talvez em frases longas que diluem seu significado e afrouxam a narrativa. Dois atores representam o genro – em poucas inserções ilustrando partes da história de Filomena – e o neto que retorna para casa da avó. Renato Correia e Márcio Nogueira completam o elenco.
Para finalizar a noite, Ciça Ojuara e Rodrigo Guedes, em Breve – um pequeno conto de Romeu e Julieta, de Rodrigo Brand, transpuseram Shakespeare para a atualidade. O conteúdo temático permaneceu, mas sua estrutura dialógica e formalidade deram lugar às gírias e relações afetivas de jovem cariocas. A cena é a discussão entre o casal, pois ele, Romeu, sumiu por dias enquanto Julieta, apaixonada, tenta em vão mandar mensagens no celular, deixar recado e nada. A reconciliação de Romeu e Julieta acontece com a ajuda do público que interage com os atores. Como todo romance, final feliz, o casal faz as pazes e vão curtir uma noite na Lapa.
Um evento como ENCENA é de grande importância no Rio de Janeiro, principalmente. É raro termos a oportunidade de compartilhar espaço para opinião, demonstração do trabalho e troca com o meio artístico. Além de mostrar o processo de grupo, é importante frisar e perceber que há grupos que apresentam seus primeiros trabalhos e de certa forma se testam também como companhia. A validade desse encontro de grupos e sobretudo da classe teatral iniciante e de primeiro passo no circuito das artes é fundamental, pois atesta a capacidade de ser fruto de um trabalho coletivo e crítico e a possibilidade de se concretizar em algo transformador. Mesmo que isso comece dentro do próprio grupo e se prolifere depois.
Encena-Desvendando o Processo é uma mostra de processos criativos em artes cênicas idealizada e produzida por Luciana Guerra Malta, autora, diretora e produtora teatral e conta com apoio institucional da Oz Comunicação e Gestão de Pessoas.
Link para o evento: http://processoencena.blogspot.com.br/