Discurso do marquês no dia em que se analisou

Estudo sobre a peça Confidencias del marqués el dia que se murió, de Sergio Arrau

31 de março de 2014 Estudos

Introdução

O dramaturgo chileno-peruano Sergio Arrau (Santiago de Chile,1928) escreveu a peça para um só ator Confidencias del Marqués e dia que se murió [1] em Lima no ano de 1988. Nessa mesma cidade, a peça foi estreada em 1990 sob a direção do próprio Arrau. A personagem única é Francisco Pizarro, um dos três sócios na empresa da conquista do império Inca. A ação da peça ocorre em 1541, no curto período de tempo que transcorre entre o momento em que ele foi ferido no pescoço e a sua morte. Esta peça dramática é uma entre muitas outras em que Arrau dialoga com a história peruana. Nela o autor elabora uma versão pessoal sobre a controversa personagem de Francisco Pizarro e a apresenta sob a forma do monólogo de um moribundo que vê a si próprio nos seus instantes finais.

O presente trabalho se propõe como uma leitura da mencionada peça a partir de conceitos pertencentes à metodologia de análise do discurso. Assim, e sem passar pelo crivo da teoria e da técnica dramatúrgicas, explorar-se-á nas possibilidades que os instrumentos analíticos pelo mencionado âmbito de reflexão oferecem para uma abordagem alternativa ao texto de literatura dramática. As noções de instituição, lugar da escrita, condições de produção, comentário, interdição, tipologia, porta-voz, efeito de sentido e interação (entre o escritor como enunciador e o espectador como enunciatário) serão discutidos a partir das contribuições de Michael Foucault, Eni Orlandi e Pierre Bourdieu. Também, recorrer-se-á aos teóricos teatrais Jean-Pierre Ryngaert e Patrice Pavis, cujas abordagens ao texto teatral entendido como discurso encontram-se em corcondância com os conceitos desenvolvidos pelos mencionados estudiosos. Finalmente, no que se refere à figura de Francisco Pizarro contar-se-á com o aporte do reconhecido historiador peruano José Antonio Del Busto Duthurburu, um dos maiores pesquisadores sobre a vida do conquistador espanhol.

O monólogo, segundo o teatrólogo francês Jean Ryngaert está sempre na procura de um enunciatário, isto é, um destinatário a quem é endereçada a enunciação:

“(…) pode ser analisado como um diálogo consigo mesmo, mas também com o Céu, com uma personagem imaginária, com um objeto, com o público, na medida em que o ator define seus apoios de representação e que toda fala, no teatro, busca seu destinatário como assinala Anne Ubersfeld (…).” (RYNGAERT:1996.102).

A partir desta afirmação considerar-se-á, para a análise de efeitos de sentido na peça de Arrau, a existência de enunciatários tanto implícitos quanto explícitos. Assim, procurar-se-á responder a algumas perguntas que o texto, entendido como discurso, pode suscitar: Qual é o Pizarro que fala em confidência? Quem o constrói? Onde? Quem é esse Arrau que fala em 1988? Qual é esse espectador a quem se fala? Nas páginas a seguir, procurar-se-á estabelecer pontos de contato entre as diferentes instancias e questões que participam na produção de efeitos de sentido.

A morte do conquistador

O início da peça refere à morte do conquistador no século XVI, durante o período que na historiografia peruana se conhece como Guerras civiles entre los conquistadores [2]. O conflito se origina pelas disputas entre os antigos sócios na empreitada conquistadora e agravou-se depois da Capitulación de Toledo [3] assinada em 1529. O dito documento define os títulos, pagamentos e delimitações territoriais da autoridade dos diferentes sócios da empresa da conquista, mas pelas desiguais mercês concedidas a Pizarro acirram-se as rivalidades e os rancores entre estes.

A guerra no início enfrenta a pizarristas contra almagristas (os leais a Diego de Almagro) e a primeira ação de armas é a Batalla de Pachachaca em julho de 1537. Em Abril de 1538 Almagro perdeu a Batalla de las Salinas e dois meses depois foi assassinado por Hernando Pizarro, irmão e aliado de Francisco. Reunificados em Lima e em torno de Diego de Almagro, el mozo (Alamagro Filho), os almagristas (pejorativamente chamados “los de Chile” após terem voltado em farrapos da fracassada expedição ao sul do litoral pacífico) tramam o assalto à casa de Francisco Pizarro. Apesar da inferioridade numérica o conquistador resiste ferozmente numa luta de espadas que só termina com a sua morte por uma estocada no pescoço, no dia de Santo Pelayo Mártir de 1541.

Para acabar com os conflitos nas terras recém conquistadas, a corona espanhola envia o pacificador Cristóbal Vaca de Castro, que acabou com as Guerras Civiles após derrotar e assassinar em setembro de 1543 o Jovem Almagro, considerado o primeiro governador mestiço do Peru.

“Sinto que me restam poucos minutos. A espada que atravessa meu pescoço não me deixa respirar.” (ARRAU, 2012, 36 trad. nossa)

A figura de um Pizarro que morre nas disputas com os seus pares é bem conhecida, pois tal episódio forma parte dos assuntos tratados nas escolas secundárias peruanas cuja grade curricular está regulada pelo Ministerio de Educación del Perú. Parte-se assim de considerar que tal personagem é reconhecido pela instituição que lhe outorga a importância a partir da qual se aceita sua relevância como parte da história do país. A partir do conceito desenvolvido pelo sociólogo francês Pierre Boudieau pode-se pensar que o texto escolar é porta-voz autorizado pela instituição que decide quais personagens devem ser considerados como parte da história peruana, como e o quê se fala deles. O poder dessa palavra estaria, segundo o mencionado pensador, na ação de delegação de poder que ostenta tal escrita (BOURDIEU, 2008, 60-3). É contrastando essa imagem construída literária e historicamente por uma instância de poder com outra em que se pode questionar não só a própria personagem de Pizarro, mas os valores que estariam embutidos em tal elaboração e propiciar um exercício que permita pensar nas maneiras em que os sentidos são produzidos em e por cada leitor, o caso do livro curricular. No caso da peça de Arrau, pode-se pensar como o discurso do Pizarro que o dramaturgo produz se enfrenta ao produzido a partir da escola e se confronta com o acadêmico.

Desde o início da peça pode se observar um recurso que será constante ao longo do texto: um jogo de ambiguidade entre a fala institucional, isto é, o apelo a referências do espectador médio e o emprego de palavras próprias à língua castelhana da época, e a fala que propicia, a partir do palco, reversibilidade que, segundo Orlandi, caracteriza o discurso lúdico (ORLANDI, 2006, 154): ouve-se falar a alguém que acaba de levar uma estocada no pescoço com o que se abre a inúmeras possibilidades de significado, ou polissemia.

“Personagem: Francisco Pizarro.

Lugar de ação: Múltiplo.

Palco nu ou com praticável.

Pizarro.- (Aparecendo com espada na mão). Que falta de vergonha! Na minha própria casa? [4]. Filhos de indigna mãe, agora vão saber! (Luta com fúria) Bando de mal-paridos! Jamais tive medo da morte. Venham, venham, ralé! (É ferido e cai. Depois de um instante se levanta e se dirige à plateia).” (ARRAU, 2012, 29 trad. nossa)

A ação cênica acontecerá no trânsito entre a vida e a morte da personagem. Pizarro fará um repasso da sua vida para a plateia, começando pelo confusa que foi a sua origem.

O autor e a personagem: Quem é o enunciador?

Segundo o teatrólogo francês Patrice Pavis caso o discurso teatral tem, como uma das suas propriedades respeito da personagem como enunciador que:

“(…) o discurso é umas vezes dominado e outras dominante. No texto clássico coincide quase que perfeitamente com a consciência e a ideologia do herói. Em cambio, a partir do momento em que a verossimilhança psicológica deixa de guiar a elaboração da personagem e do seu texto, o discurso parece superar e por isso desintegrar à personagem. Tornou-se impossível estabelecer uma correspondência harmoniosa entre um discurso plural e contraditório e uma “personagem” no sentido clássico do termo”. (PAVIS, 1980, 143 trad.nossa)

Na peça, a personagem de Pizarro parece mais com o segundo caso que refere Pavis. Não há uma personagem que, a partir de uma psicologia particular, aja, decida e organize a sua fala. Longe de apresentar uma visão coerente da personagem, o dramaturgo apresenta as suas dúvidas e contradições. Que, no fim das contas, são as dúvidas e contradições da própria historiografia respeito de Pizarro em particular e do passado em geral.

Se se entende por ideologia o sistema de ideias que organizam a visão de mundo, e tal operação se da mediante a linguagem, o traço que aparece no texto de Arrau respeito deste ponto se refere ao questionamento da figura de Pizarro como figura com um só referencial significante, seja o da dominação espanhola que pressupunha a supremacia do europeu sobre o indígena, ou a do bandido aventureiro que iniciou o saque dos tesouros de um império. Na peça, o autor apresenta um conquistador que oscila entre a afirmação de uma linhagem nobre e a bastardia, e que chega a afirmar “Acho que nem a minha mãe sabia” (ARRAU, 2014 ,29 trad. nossa) de quem ele era filho. Isso se reproduz de maneira amplificada na sua negativa a voltar e fincar na Espanha, pois sabia que lá levaria o estigma de ser plebeu, enquanto na América poderia se tornar o que ele quisesse. É esse aspecto do conquistador que o autor salienta na metade da peça: um Pizarro que num lugar estranho e alheio consegue se afirmar, se construir a si próprio a partir da apropriação da terra conquistada e a fundação de uma outra origem sua: “Não, eu não fugi. Eu fui embora. Deixei Trujillo para ser quem sou!” (ARRAU, 2012, 32 trad.. Nossa). Assim, pode se pensar, menos na celebração da conquista como empreitada de seres que vencem pela sua superioridade natural, e mais na confiança de Arrau na força da vontade humana para fazer o próprio destino. Fora da dicotomia conquistador-conquistado como única relação possível para se pensar na conquista do império Inca, cabe afirmar que o dramaturgo destaca a capacidade do homem que não seria exclusiva a um grupo humano em particular. Porém, Arrau problematiza o esforço de Pizarro colocando a personagem numa situação de infelicidade embora celebre a própria façanha:

“Porque é preciso reconhecer, afinal estou morrendo e é bom ser sincero como corresponde perante os arcanos incógnitos, como dizem os cultos. Eu não sou gênio nenhum. Só sou um homem esforçado, perseverante, teimoso como um burro, que chegou até onde chegou sem ser Amadís nem Galaor [5]” (ARRAU, 2012, 53 trad. nossa)

Essa força toda não o deixa orgulhoso do conquistado e manifesta seu desprezo pela cidade que fundara como a capital das posses da coroa espanhola nessas novas terras, e a decisão de ficar só corresponderia ao seu desejo de deixar atrás o passado plebeu na península:

“Lima! Cidade de merda! Suja sem remédio, pois jamais cai chuva decente para limpar tanta imundícia espessa. Mal cai uma garoinha insignificante. Como odeio essa maldita terra! Lima é minha, eu a fundei, mas mesmo assim a odeio! Claro que nem a pau voltaria para Espanha. (…) Na Espanha seria mais um. Um “tal das índias” a quem todos desprezam, embora façam louvores e reverencias, só pelas pratas que tem. Um bastardo enriquecido. Já aqui sou o primeiro (…)” (ARRAU, 2012, 36 trad nossa.)

A caracterização que Arrau faz de Pizarro vai além da falta de escrúpulos documentada pela historiografia peruana mais autorizada, especialmente em relação ao seu sócio, Diego de Almagro. O sentimento de frustração que invade a quem conquistou um império e não conseguiu fruir a glória é tão evidente na peça como o amor que revela pelas terras e pela população que submeteu. Essa outra visão de Pizarro permite a Arrau se instituir como um escritor que, em diálogo com dados e informações legitimadas pela historiografia autorizada sobre o conquistador, é capaz de problematizar àquela figura controversa até os dias de hoje. Assim, a comunidade acadêmica pode ser considerada um dos enunciatários implícitos [6] e só poderia ser questionada por outra voz instituída.

O enunciatário explícito, a plateia da época em que o texto foi escrito, é levada a se confrontar com uma imagem de Francisco Pizarro que falará em primeira pessoa e se dirigirá a ele mediante uma fala que pressupõe que mais ninguém escuta. Daí o título de “confidência”. O dramaturgo cria em cena uma realidade que possibilita a revelação de uma versão do conquistador que se diferencie das apresentadas em livros de pesquisa histórica acadêmica. A arte do palco faz com que Pizarro apareça na frente do público como dono da própria fala e se estabelece a ilusão de uma instituição. Pode-se pensar no poder que o palco teria para instituir. A partir da noção de instituição desenvolvida por Michael Foucault (FOUCAULT,1992,62) pode-se perceber o artifício teatral na sua capacidade para buscar um efeito de verdade: cria-se a aparência de um eu que fala de si. Assim, o palco permite que Pizarro “fale de si mesmo”. Poderia alguém mais instituído?

O lugar de produção e as interdições:

É pertinente destacar que o texto foi escrito Lima em finais da década de 1980, quando a capital peruana vivia, como o resto do país, uma das piores crises econômicas que se registra e a violência política produto da militarização da segurança pública como medida de defesa do estado frente à ameaça dos movimentos subversivos que estava nas portas de Lima. Também, que estava muito próxima à comemoração pelos quinhentos anos da chegada de Colombo ao continente que veio a se chamar de América.

Esses dois fatos se constituíram se constituíram como limites inegáveis no contexto de produção do texto. O primeiro se relaciona com a perseguição feroz por parte do aparelho repressivo do Estado peruano a qualquer forma de questionamento à ordem oficial e a origem andina do movimento Sendero Luminoso [7] fez com que se associasse toda e qualquer manifestação indígena de reivindicação com a subversão [8]. A segunda estaria na posição contrária, pois a proximidade do quinto centenário fez com que na América-Latina houvesse inúmeras e fortes críticas à própria noção de descobrimento, por ser considerada como uma leitura euro-centrada de tal sucesso. Assim, a fala de Pizarro como instância para se refletir nessa conjuntura era oportuna, mas incômoda.

Na peça de Arrau, pode-se perceber a complexidade do encontro de dois continentes tão diferentes a partir do olhar de um Pizarro que não compreende o que vê. Sem passar pela celebração da conquista nem pela vitimização dos indígenas vencidos, aponta para a limitação de uma leitura da realidade feita a partir do repertório de referências e que seria o limite para qualquer conhecimento. Isso, não só para criticar ao espanhol conquistador que não pode aprender a partir da diferença de costumes no Inca Atahualpa, mas támbém dos escritores de uma história que acaba por criar mitos [9] encima de um sucesso histórico.

“A matar, a matar que o mundo já vai acabar! Somente mortos esses índios aprenderão a viver.

Atahualpa? Atahualpa…! Bem sabia que iam mexer no assunto! Que se fizemos amizade… Que se jogamos xadrez… Que se lamentei ter que matá-lo… Querem saber? Matei com prazer. Sim, com prazer. Por que? Por maricas. Maricas consumado, depilado e perfumado que dava nojo. Quando o vi em Caxamarca quase me da um desmaio. Parecia uma pássara cheia de penas coloridas. Como escutam. E era igualzinho à Ramona, uma puta que em Panamá me roubou cinquenta dobrões (…) E lá estava essa outra Ramona em Caxamarca, cheio de joias o desgraçado! Se prendou de mim assim que me viu. Como brilhavam seus olhinhos puxadinhos e libidinosos! Então foi que decidi cobrar os dobrões que tinha me tirado em Panamá. Cobrar com ótimos juros: cem mil milhões por cento! E depois veio a história do quarto do resgate: até onde chegasse a Ramona em pontas de pés, até ali encheriam de ouro. Cumpriu. Mas, igual o mandei matar. Não aguento maricas. Menos quando se prendam de mim. Da tanta vontade de rir quando se fala da estratégia genial que usei na eliminação de Atahualpa (…) Estratégia genial? Que nada! Puro acaso, intuição ou palpite (…)” (ARRAU, 2014, 35 trad. nossa)

A citação pode ser analisada a partir do conceito foucaultiano de comentário se se pensa na maneira em que o autor teatral se relaciona e coloca na fala da sua personagem outras versões sobre Pizarro. Num exercício intertextual, faz-se referência a episódios entre o Inca e o conquistador que são amplamente difundidos mediante as narrações históricas e ficcionais. Uma delas é a do mito do Incarri [10], a cujo respeito o cientista social e historiador Alberto Flores Galindo refere como a leitura andina da conquista: a aniquilação de um deus andino pelo invasor. A isso pode ser associada a fala do Pizarro de Arrau. Como estratégia poderia ter sido um elemento importante no processo de conquista, mas na peça se expõe como sendo puramente fortuito. Estas construções textuais históricas e anedóticas [11] foram problematizadas e relativizadas pelo dramaturgo para, a partir da sua escrita para a cena, produzir outros efeitos de sentido.

Dessa maneira se mostra um Pizarro que não pode ver majestade no soberano Inca, incapaz de um olhar que o afaste do conhecido e lhe revele um outro fora do seu limite. A pobreza na comparação de Atahualpa com a Ramona, puta de Panamá, faz referência à cobiça do conquistador cujo desejo principal é o de possuir e a elaboração de um discurso justificador desse ato baseado em preconceitos que Arrau enxerga na sociedade a que pertencia quando escreveu a peça: a supremacia do homem, a sua incapacidade de perceber também a perplexidade do outro para quem ele mesmo é também um estranho, a aproximação desse outro (Atahualpa – Ramona) como um objeto de satisfação a ser possuído e depois aniquilado. O riso que lhe provoca a história do quarto não deixa de ter também tom de deboche perante as narrações que, de tão repetidas, acabam sendo consideradas como certas.

Por outro lado, de modo similar a Pizarro, as principais cidades peruanas na década de oitenta constituíam sociedades que experimentavam circunstâncias desconhecidas e espantosas. A denúncia da incapacidade para enxergar o outro como um limite na tentativa de aproximar universos que não encontram conciliação pode ser uma chave para entender como e quando emerge esse Pizarro arrauciano.

Um recurso cênico que reforça essa impossibilidade de Pizarro a respeito do Inca é que a personagem interpreta mediante a citação possibilitada pelas lembranças que narra, a outras que são semelhantes a ele: sua mãe, seu tio, seu patrão, seus sócios na conquista. Mas, em momento nenhum faz o próprio com Atahualpa, pois isso seria deixar que ele fale pela sua boca, dar-lhe uma forma a partir dele e essa experiência traria um conhecimento que lhe seria impossível para a maneira em que é construído por Arrau.

Porém, a questão inegável dos indo-americanos como herdeiros também dessa Espanha aparece quando Arrau faz com que Pizarro fale dos seus afetos e da sua descendência:

“(…) amo esta terra. Amo-a entranhavelmente. À terra e às que foram as minha mulheres, índias todas elas. Ah, meus filhos! Lá estão Francisca, Gonzalo, Francisco e Juanito… Meus mestiços queridos. Espero que me lembrem com carinho. Aqui ficarei e serei um corpúsculo mais da terra, desta pachamama [12] que foi tão generosa comigo. Que tem me dado todo” (ARRAU, 2012, 37 trad. nossa)

O cruzamento entre o conquistador e a terra, com a carga de feminino que o artigo lhe imprime, oferece a imagem para uma colocação explícita de Arrau: há um outro que surgiu, inevitavelmente e mesmo sem se saber concebido por dois estranhos entre si, que mais do que uma mistura se ergue como um distinto. De maneira paralela, pode-se ler na escrita este autor a afirmação da sua voz diferenciada no meio teatral peruano, como uma voz que procura se instituir a partir da relação com o público.

Tipos de discurso na peça de Arrau

O texto monologado impede, em primeira instância e a simples vista a troca dialógica necessária ao exercício reversivo do diálogo, como conceitua Eni Orlandi. A personagem cuja voz em primeira pessoa se ergue no palco como única e solitária, sem explícita interlocução poderia caraterizar-se como o traço marcadamente autoritário do texto dramático do ponto de vista da análise de discurso.

Ainda que o texto parecesse não permitir reversibilidade nenhuma por parte do destinatário final, seria inexato tipificá-lo como um discurso autoritário, pois a própria contextualização-caraterização deste como construção ficcional abre possibilidades ao espectador, como enunciatário, a multiplicidade de efeitos de sentido na sua atividade interpretativa como receptor do texto teatral. A participação do espectador na produção de sentidos a partir do que é desenvolvido no palco remete diretamente à noção de interação trabalhada por Orlandi e assim se revela a sua pertinência na análise do texto teatral como discurso.

A tendência à polissemia a partir da relação particular entre cena e espectador confere o principal traço lúdico. A reversibilidade, entendida como resultante do diálogo sem qualquer vontade de verdade na produção de sentido e que se estabelece entre enunciador e enunciatário (autor e espectador) encontra no fenômeno teatral um particular espaço de ação. Porém, se se pensa no espectador que poderia procurar no texto de Arrau uma informação teatralização a partir de conceitos que excedam os limites textuais, então o traço dominante seria o polêmico, sempre partindo da tipologia de Orlandi. O embate produzido entre a personagem teatral e a personagem histórica colocaria o autor dramático e o historiador numa relação polêmica no momento de produção de sentidos.

Não há maneira de comprovar informações mencionadas na peça como o jogo de xadrez, os sentimentos de Pizarro pelos filhos, ou aquilo que poderia pensar o conquistador na hora da sua morte. Porém, o que se apresenta na peça se coloca como cena no contexto ficcional e a polêmica só encontraria cabimento se se discutisse a partir do confronto da cena com documentos históricos. Esse espectador assim determinado pela relação polêmica constituiria um enunciatário implícito a quem se dirigiria Arrau, como seria também aquele espectador que confrontasse a personagem com conceitos e técnicas dramatúrgicas: o crítico teatral, o olhar crítico, impediria a relação lúdica entre enunciador e enunciatário, e isso limitaria as suas possibilidades polissêmicas.

A morte como interditora: O dizer do “não-dizer” e o silêncio final que encerra a peça, mas não a confissão

“Que dor há meu peito como agonizando. Resta pouco, devo me apressar. O transcendente se deixa sempre para o fim, certo? Para que fique permanentemente na lembrança. E eu quero que me lembrem. Assim não morro, compreendem? Escutem… Prestem muita atenção…

Eu, o marquês Francisco Pizarro, conquistador do Peru, abro meu coração e lhes entrego o mais valioso da minha vida. Gravem-no em seu espírito com letras de fogo. Eu… quero lhe dizer… que… (MORRE). PANO” (ARRAU, 2014, 38 trad. nossa)

O que Pizarro não tem tempo de dizer coloca à própria morte como sendo um definitivo interditor do discurso. Aquilo que o impede de seguir falando. Se se leva em consideração novamente, que o sentido é produzido também pela ação do espectador, este poderia ser o momento de maior ludicidade da peça, justamente no seu final.

Assim pode ser pensada também a troca dialógica destes enunciador e enunciatário específicos ao fenômeno teatral. Inclusive, no caso do leitor extemporâneo. Todavia, esses papéis podem se pensar como passíveis de serem intercambiáveis, pois o autor teatral (falado no palco pelo ator que carrega de maneira irrenunciável a própria subjetividade) é também atravessado pelas condições e circunstâncias da sociedade e tempos que compartilha com a sua plateia. Aliás, esta também se constitui numa voz a ser ouvida pelo dramaturgo, pois é para ela que escreve e por isso deve encontrar as maneiras de a ela chegar. A interação dessas subjetividades, cada uma a partir das suas condições de produção (produção de enunciação e produção de recepção), configura o âmbito interlocucionário imprescindível ao discurso.

O texto teatral de Arrau neste monólogo estimula densos e variados processos de construção de sentidos cujos efeitos são produzidos no âmbito interacional (de modo particular na relação cena-espectador). Assim, o autor possibilita que um Pizarro venha a dialogar com os Pizarros que cada um foi formando para, no exercício analítico, se revelar como um discurso, feito e refeito constantemente. O não-dito pelo conquistador constitui precisamente o seu legado: Pizarro deixa a sua fantasmagoria quando a sua fala inconclusa coloca o espectador no dilema de completar a frase. Assim, a interdição da morte será quebrada pela ação lúdica do enunciatário que chamará a seu próprio Pizarro, para pegar a deixa colocada pelo dramaturgo.

Notas:

[1] Confidências do marques no dia que morreu. Em: ARRAU, Sergio. Dieciséis obras teatrales en busca de un lector. Lima: Fondo Editorial . UAP, 2012. pp. 29-38. Tradução de Manuel Guerrero disponível em http://www.questaodecritica.com.br/2014/03/confidencias-do-marques-no-dia-em-que-morreu/

[2] O cronista Pedro Cieza de León (Llerena, 1518-Sevilla, 1555) refere os conflitos surgidos entre os conquistadores Francisco Pizarro e Diego de Almagro como Guerras civiles del Perú, crônica publicada em 1877 CIEZA DE LEON, Pedro. Guerras civiles del Perú, I. http://www.cervantesvirtual.com/obra/guerras-civiles-del-peru-tomo-primero–0/

[3] A rainha de Portugal, Isabel de Avis e Transtâmara, na sua qualidade de rainha consorte e em ausência do rei Carlos I de Espanha, assinou no nome do seu esposo a Capitulación deToledo em 26 de julho de 1529. Posteriormente, deu a um dos Pizarro o título de Hidalgo, e concedeu a Almagro direitos sobre o territórios ao sul.

[4] Referência à sede do governo peruano e residência presidencial que ainda é chamado “Palácio de Pizarro”.

[5] Referência ao romance de cavalaria Amadís de Gaula, de autor anônimo, impressa na Espanha em 1508.

[6] Outro enunciatário implícito pode ser a crítica especializada em teatro do meio local e a própria classe teatral, mas para efeitos da discussão sobre a relacao entre teatro e história, só se abordará a questão do embate, a partir do monólogo de Arrau, que pode se estabelecer entre a fala instituída pela academia e a fala da personagem teatral que não se pretende como única nem absoluta.

[7] Partido Comunista del Perú – Sendero Luminoso. PCP-SL.

[8] Para maior informação recomenda-se: FLORES GALINDO, Alberto. Buscando um Inca: Identidad y Utopía en los Andes. Lima: Horizonte, 1994.

[9] A noção de mito empregada é a colocada por Barthes. Por outro lado, na presente pesquisa, a Mitificação é entendida como o processo de elaboração de uma mensagem. De acordo com o estudioso francês Roland Barthes, um mito é uma forma de significação com capacidade e propósito imobilizante. Noção de mito emprestada de Roland Barthes para quem o mito seria, antes de mais nada, um sistema de comunicação, um sistema semiológico, uma mensagem. Continuando na sua linha de pensamento, não haveria mitos eternos. Mesmo que duradouros, é a Historia que transforma o real em discurso. Assim, o mito não surgiria da “natureza das coisas”, mas é uma fala escolhida pela História. A mitologia só pode ter um fundamento histórico.

[10] Inkarri vem a ser uma elaboração a partir da conquista espanhola: a conquista teria arrancado a cabeça do Inca. Esta permaneceria, desde então, separada do seu corpo. No momento em que as sua partes se reuniram, o Inca acabará com o tempo de caos e obscuridade iniciada pelos invasores e os homens andinos recuperarão a sua história. Essa espécie de ciclo mítico articula com outras manifestações da cultura popular andina. (FLORES GALINDO:1994,19). Faz parte deste mito a crença de que a conquista foi uma luta entre deuses e não entre homens. Esta teria sido vencida pelo deus estrangeiro.

[11] É conhecida a anedota, nunca comprovada, de que o Inca Atahualpa estando cativo aprendera a jogar xadrez e que consegiu ganhar de Francisco Pizarro que, com medo da inteligência do seu prisioneiro, ordenou seu assassinato. Recomenda-se ver: PALMA, Ricardo: Los Incas ajedrecistas. In: Tradiciones Peruanas. Lima: URP, 1999.

[12] Mãe terra, em quéchua, a língua que se falava no império Inca e que é um dos idiomas oficiais no Peru.

Referências bibiográficas:

ARRAU, Sergio. Dieciséis obras teatrales en busca de un lector. Lima: UAP, 2011.

BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: DIFEL, 2007.

BOURDIEU, Pierre. ¿Qué significa hablar?: Economía de lós intercambios linguísticos. Madrid: Akal, 2008.

DEL BUSTO, José Antonio. Francisco Pizarro, el marqués gobernador. Lima. Brasa, 1993

FOUCAULT, Michael. Orden del discurso. Buenos Aires: Tusquets,1992.

FLORES GALINDO, Alberto. Buscando um Inca: Identidad y Utopía en los Andes. Lima: Horizonte, 1994.

ORLANDI, Eni. A linguagem e seu funcionamento. Campinas: Pontes, 2006

PAVIS, Patrice. Diccionario del Teatro. Buenos Aires: Paidós. 1980.

RYNGERT, Pierre. Introdução à análise do teatro. São Paulo: Martins Fontes, 1995.


Leia a peça Confidências do marquês no dia em que morreu, de Sergio Arrau, nesta edição da Questão de Crítica: http://www.questaodecritica.com.br/2014/03/confidencias-do-marques-no-dia-em-que-morreu/

Vol. VII, nº 61, março de 2014

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