Carpintaria – o drama e a cena (apontamentos e dúvidas)

Crítica da peça Incêndios de Wajdi Mouawad

25 de dezembro de 2013 Críticas
Foto: Leo Aversa.

Nota: O texto contém spoilers, ou seja, revelações a respeito do enredo.


A montagem do espetáculo Incêndios de Wajdi Mouawad (traduzido por Angela Leite Lopes) com direção de Aderbal Freire-Filho, em cartaz no Teatro Poeira, traz à tona o debate acerca da carpintaria da dramaturgia contemporânea que se constrói a partir de um eixo dramático nuclear edificador de toda a estrutura da fábula.

Se se entende ainda hoje o drama como um modelo abstrato que une num mesmo ponto o tempo, o espaço e a ação, a peça de Mouawad não deve ser considerada drama. Entretanto, se deixarmos de lado essa premissa radical do que seria o drama absoluto, rastrearemos modelos existentes no qual a unidade da trama da fábula percorre uma lógica causal (atravessando espaços e temporalidades diversos) culminando num núcleo dramático, em que a história acaba se apresentando através da integração de acontecimentos. Assim sendo, Incêndios deverá ser examinado como um drama cuja experiência fragmentária da contemporaneidade se costura em uma coesão dramática.

Parece que quando identificamos em uma dramaturgia qualidades louváveis de sua carpintaria, estamos atentando, sobretudo, para o desenho deste encadeamento lógico-causal das partes, como se o encontro dos fragmentos de tempo(s), espaço(s) e ação(ações) em um alvo abstrato, ligados a um princípio de revelação, sustentasse a qualidade da obra (diz-se melhor, a qualidade do gênero).

Em termos de dramaturgia, tal princípio costuma transformar-se em origem, especialmente quando o sentido abstrato do termo (arché/princípio) se embrenha em mitologias (as tragédias) e psicologias (o drama moderno). Assim sendo, o núcleo da dramaturgia costuma ser a revelação originária de um mito e/ou de um passado de uma personagem. A grande maioria das pessoas crê que quanto mais agudo, claro e pontual se mostrar o eixo de revelação, mais preciosa será a carpintaria – palavra que se vincula, diretamente, ao artesanato dramatúrgico e da cena.

Não sei se concordo completamente com este posicionamento mencionado, um pouco de modo irônico, no parágrafo acima. Mas percebo tanto em conversas de bar quanto em discussões teóricas que o sentido de carpintaria dramatúrgica está atrelado, sobretudo, a estes valores. Como se apenas fosse possível ajuizar criticamente sobre o trabalho de artesania a partir de limites de gênero (o bom drama, o bom poema, a boa prosa).

Seria importante uma reflexão sobre a técnica (como poiesis) em outra direção – percebendo a sensibilidade da construção artística (a relação com o mundo sensível – político, teatral, crítico, etc.) e não tanto o seu arranjo abstrato, que pode cair, a meu ver, num maneirismo tecnicista, e até num formalismo radical que se opera a partir de uma lógica de oposição (que não vejo como dialética) na qual apenas se contempla o dramático e o não dramático, compreendidos sempre por uma lógica sistêmica (a língua/ a não língua/ a gramática/ a não gramática/ o livro/ o não livro, etc).

Logo, vejo a necessidade de se ampliar o sentido de dramaturgia na contemporaneidade, fora da compreensão de que o núcleo sintético da trama seja a garantia da qualidade da obra. Penso que mesmo este eixo sintético pudesse ser pensado mais enviezadamente, sem ser pela lógica linear causal e direta da redução do sentido de princípio a uma origem, ou que a síntese se processasse pela lógica dialética e não pelo princípio gestáltico de causa-efeito – refazendo uma lógica originária que nada tem de original.

Na peça em questão a dramaturgia se edifica a partir de uma bifurcação de tempo e de ação. O tempo e a ação seguem a intermediação de duas progressões lineares fragmentárias: 1º) a tomada de conhecimento dos filhos gêmeos Simon (Felipe De Carolis) e Jeanne (Keli Freitas) acerca do testamento da mãe e o descobrimento, não imediato, mas sequencial de que o pai e o irmão mais velho são a mesma pessoa; 2º) a amostragem dos fragmentos da vida de Nawal (Marieta Severo), sua gravidez de um filho de Wahab, a perda do bebê, o seu encontro com a amiga Sawda (Kelzy Ecard), e sua busca por essa criança tirada dos seus braços contra sua vontade, até tomar conhecimento de que o verdadeiro filho é o carrasco que a estuprava e torturava. Ao fim da peça, duas linhas se encontram mostrando que Abu Tarek e Nihad (Júlio Machado) são a mesma pessoa: filho e carrasco. Eis a herança deixada por Nawal a seus filhos gêmeos: o esclarecimento acerca dos fatos de sua origem.

Apesar de a definição dos gêneros ser herdeira de Aristóteles, em sua formulação filosófica, na célebre obra A poética, criada um século depois do advento das tragédias gregas (o que nos permite vislumbrar um anacronismo de leitura em suas formulações – anacronismo que nos persegue sempre, diga-se de passagem), sabe-se que houve um excesso de apropriações da obra aristotélica a partir de manuais de construção dramatúrgica (roteiros cinematográficos e peças de teatro), que viciaram o entendimento da carpintaria dramática a esses mecanismos de reconhecimento, entendendo a verossimilhança de uma obra dramática pela presença deste núcleo abstrato.

Em Incêndios de Wajdi Mouawad nota-se, deliberadamente, uma tentativa do dramaturgo de realizar uma obra que segue a construção de um axioma universal (a personagem Nawal transforma-se em uma espécie de Jocasta da guerra civil), unindo discurso mitológico em torno da vida de uma personagem individual, explicado pela metáfora da matemática (Jeanne, filha de Nawal, é professora e doutoranda da disciplina, trazendo em sua fala teoremas matemáticos que funcionam como uma imagem emblemática do drama ficcional que se constrói dentro da peça).

No programa de Incêndios, dois textos cuidadosos expõem a operação proposital de Mouawad. Iniciemos, pois, a discussão com o texto do jornalista e professor de Relações Internacionais, Renato Galeno:

A Guerra civil é do Líbano? Descartes meditou e defendeu que somos capazes de chegar a determinadas conclusões racionalmente, em sua resposta ao ceticismo incapacitante com seu “penso logo existo”. Kant descobriu que algumas conclusões são necessárias por sermos racionais. O indivíduo pode chegar a determinadas conclusões necessárias (o tal ”imperativo categórico”), conclusões estas às quais todos podem chegar. Portanto o indivíduo é universal. Desta forma, a guerra civil do Líbano é também universal. Daí a opção brilhante de Wajdi Mouawad, autor de Incêndios, de não usar (com apenas uma exceção) qualquer referencia ao Líbano, a localidades específicas, a facções específicas. A Guerra Civil não é do Líbano, é nossa também. (Galeno. In: Programa da peça)

O parágrafo retirado do programa da peça expõe o desenvolvimento do argumento do professor Renato Galeno que explica a escolha de Wajdi Mouawad de excluir o Líbano (histórico) da escritura de sua dramaturgia, como sendo uma opção pela construção de uma tragédia universal. Na sequência do programa, o professor enfatiza, ao mesmo tempo, que a arte é capaz de realizar o impossível (mais do que a razão), isto é, ela tem o poder de nos tocar e sensibilizar diante do horror. De algum modo, a estrutura da peça segue uma lógica causal de apresentação do absurdo, não explica, mas narra o mesmo a partir de fatos violentos que são trazidos a baila no tablado.

Neste sentido, a metáfora do quebra-cabeça mencionada pelo tabelião Hermile Lebel (Marcio Vito) é importantíssima para se compreender a peça. Vale ressaltar que essa personagem é uma personagem curinga, que movimenta a trama da peça, entregando as cartas de Nawal aos filhos e comentando passagens da peça. Ele diz:

Hermile Lebel – Quebra-cabeça cruel! Passamos primeiro pela aldeia natal da senhora Marwan. O que nos levou até Kfar Rayat. De lá, seguimos várias pistas em função das datas de chegada no orfanato de alguns garotos. Toni Mubarak, mas não era ele, ele reencontrou os pais no final da guerra, personagem bem desagradável e nada afável. Tufic Hallabi, mas também não era ele, ele faz uns ótimos shish tauks lá no norte ao lado das ruínas romanas, ele não é da região, seus pais morreram, foi sua irmã que o levou para o orfanato de Kfar Rayat. Seguimos duas outras pistas falsas depois acabamos encontrando uma mais segura. Essa pista nos levou até uma família Harmanni que hoje está toda morta (…). (Mouawad. In: Incêndios)

Certamente, a fala da personagem não explica o horror que é mostrado na peça. Mas nos deixa atentos para a operação gestáltica do quebra-cabeça, solicitada ao espectador, que, assim como Jeanne e Simon, deve juntar as pistas factuais até alcançar a origem do drama. Outra questão relevante da dramaturgia é o entendimento de história como fato (pista – verdadeira ou falsa), o que de algum modo nos coloca diante de uma concepção de história ainda muito vinculada ao historicismo. Ou seja, basta chegar aos fatos. Eles têm força suficiente de sensibilizar o nosso olhar, visto que guardam em si a verdade.

A mitologia é absurda. Contudo, ela nos ensina acerca de nossa humanidade. A matemática é capaz de formular a partir de sua base lógica equações absurdas. Fixado neste passado originário desta personagem que lutou numa guerra civil contra milicianos, a peça se ancora numa ambiguidade entre o drama individual e a tragédia. Creio que, na peça, toda dinâmica social e política ganha, ao contrário da tragédia grega, um esvaziamento onírico (como um pesadelo sombrio e sentimental), enquanto a estrutura do drama individual toma um relevo maior do que a dimensão pública da tragédia, caso nos ancoremos no modelo grego para repensar as tentativas de revisão do trágico na contemporaneidade.

Acerca desta relação com a tragédia ática, a filósofa e professora Luísa Buarque diz o seguinte:

Entre a Atenas do quinto século a. C e o mundo contemporâneo, um abismo. Ainda assim, Wajdi Mouawad é capaz de perceber exatamente onde, na atualidade, podem ser verossimilmente forjadas as diversas possibilidades de encontros, desencontros, perdas e reencontros, tão características do drama ático. (BUARQUE. In: Programa da peça)

Interessante percebermos na fala da professora a consciência da verossimilhança forjada por Mouawad na obra. Logo, a peça se constrói dentro desta tradição contemporânea que se adestrou dentro de um modelo classicista de releitura da tragédia, entendendo história como fato e seguindo o desenvolvimento de uma dramaturgia mais fixada no modelo de homem universal, como o professor Galeno bem observa – o indivíduo moderno que está certo de que o sentido de sua existência está na descoberta factual de sua biografia. Há, certamente, uma contemporaneidade, que apesar de entretecida numa experiência em “rede”, como mencionada por Buarque na sequência de seu texto, ainda se quer vinculada a essa construção historicista – que tão bem notamos nessa vontade de narrativas coesas que organizam a fragmentação da contemporaneidade.

Há toda uma tradição de releitura do pensamento e das obras clássicas, que passa tanto por algumas obras de Sartre, Pasolini, Heiner Müller, entre outros, que, diferente de Mouawad, embrenha-se numa elaboração não atida tão fortemente ao sujeito, mas que quer repensar o trágico da tragédia grega em sua dimensão política e arcaica e não tão personalista. Sim, vê-se, na peça, uma guerra civil acontecendo, ouve-se a narração de mortes espetaculares. Entretanto, o lume dramatúrgico se dá a partir de uma perspectiva fundamentalmente individual, elegendo o sujeito (no caso Nawal) como foco narrativo.

Na obra de Mouawad, além do uso de cartas para solucionar o mistério da trama, muitas metáforas como a do quebra-cabeça, ou “a luz do trem no fim do túnel” (dita também por Lebel), reforçam essa construção linear que se explica pela parábola quase completa em torno da vida de Nawal. Há, contudo, uma abertura intrigante e louvável na trama: a presença de Sawda (a mulher que canta), amiga de Nawal, que aprende a escrever com a mesma, passando-lhe, extraordinariamente, a alcunha de a mulher que canta.

A duplicidade entre elas produz uma lateralidade oblíqua que talha (levemente) a linearidade iluminada dos fatos principais. Observa-se nesta operação um mistério insondável de uma humanidade que se edifica na amizade, no canto, na escrita e na leitura de um alfabeto; vínculos amplamente repletos de cumplicidades não atreladas à lógica burguesa falida de uma genealogia trágica (pois parece que nos atemos ao sentido arcaico da tragédia sempre por meio de uma visada genealógica e familiar – bem criticada na peça pela figura monstruosa deste pai-filho).

O mundo contemporâneo traz em si essa fissura trágica da morte paterna (do Deus) que se camufla na monstruosidade infantilizada de uma cultura cada vez mais filial e carnífice. Vejo que a dialética da peça só se dá a ver quando expandimos o sentido desta figura midiática do filho (americanizada), vendo-a como um palhaço espetacular – ou seja, uma alegoria do mundo contemporâneo. É possível que o dramaturgo tenha feito uso de uma estrutura abstrata dramática para apresentar esta mitologia política acerca das guerras do mundo atual, ampliando a pugna local do Líbano à imagem de uma batalha mítico-contemporânea, atando-se, a meu ver, ainda à lógica do sujeito.

Tenho dúvidas se o virtuosismo dramático da peça não acaba por engolir a reflexão política, deixando-a submetida a um domínio de carpintaria do dramático, a um sensualismo da história muito bem contada (assim como vemos, por vezes, nos quadros tão extraordinariamente bem pintados por Adriana Varejão, o triunfo da sensualidade da técnica obscurecendo a dimensão crítica da obra).

Talvez eu esteja repleto de uma crença no distanciamento da linguagem, tão defendido por teóricos do teatro do século XX, e que a discussão contemporânea não seja mais do palatável versus o distanciado. Não faltarão exemplos de comerciais na televisão e editoriais de moda que usam com requinte a técnica de distanciamento para vender seus produtos. Ocorre que vivemos num grande dilema de crise do universal, em um mundo repleto de diferenças no qual o direito universal à vida fica se debatendo perante as diferenças religiosas, ideológicas e teóricas, e, principalmente, no qual o pensamento crítico tornou-se arriscado, entretanto, ultra-necessário.

A respeito desta peça, lembrei-me do filme iraniano A separação de Asghar Farhadi, no qual a questão social de diferença de classes entre os dois casais do filme se resolve eticamente diante do Alcorão, pois a fé da esposa religiosa a impede de proferir uma mentira diante do livro, para servir ao testemunho falso do marido desempregado. Ou seja, um valor arcaico religioso, tão questionado por nós niilistas contemporâneos, impossibilita uma manobra falsa e mercenária do marido.

Por isso, eu concordo com Galeno no que tange a necessidade de refletirmos ainda hoje num lugar mediado e nunca autoritário para o universal, e creio também que a arte seja um campo de investigação sensível da condição humana, pois ela possui este poder de, por meio da ficção, adentrar nos dilemas humanos e éticos, investigando os limites da própria ética, a fim de expandi-la como debate.

Cabe agora situar outra característica do trabalho de Mouawad. Angela Leite Lopes acentuou, numa entrevista dada à revista Questão de Crítica, um aspecto crucial da dramaturgia do autor que ainda não foi discutido aqui. Trata-se de certas “estranhezas propositais” nas quais a cena teatral é solicitada apesar da presença do constructo dramático, demonstrando o quanto o texto é feito partindo de uma consciência do aqui-agora da representação – e, fundamentalmente, erigido na sala de ensaio.

Dentro deste prisma da representação, nota-se o uso dos objetos cênicos e a recorrência de cruzamentos de planos que pertencem a uma diversidade de temporalidades. Esses recursos potencializam, mesmo que de modo centrípeto dentro do enredo dramático, o aspecto performático, trazendo possibilidades de jogo à cena.

No mesmo programa da peça, o diretor Aderbal Freire-Filho cita a fala da personagem Sawda que diz: “Que mundo é esse onde os objetos têm mais esperança do que cada um de nós?” A fala da personagem, além de belíssima, traz um sentido vigoroso à peça, pois expõe o quanto os objetos possuem um poder de permanência que ultrapassa a vida.

Logo no início do testamento, lê-se:

A meu amigo, o tabelião Hermile Lebel, lego minha caneta tinteiro preta.

A Jeanne Marwan, lego o casaco de brim verde com a inscrição 72 nas costas.

A Simon Marwan, lego o caderno vermelho.

Os dois objetos dados aos filhos acompanham a trajetória de descobrimento dos mesmos acerca de sua origem. O casaco trazia o número de Nawal quando prisioneira, assim como o caderno vermelho traz o seu relato sobre a experiência do estupro, em seu testemunho diante do tribunal. O balde é outro objeto que entra em cena diversas vezes. Na obra, ele praticamente compõe uma coreografia simbólica que vai desde conter a função de recipiente de água até trazer dentro dele os filhos de Nawal. Isso sem falarmos do nariz de palhaço do filho-carrasco, que é um objeto cênico por excelência.

Do ponto de vista do cruzamento de planos, observa-se desde a simultaneidade da fala de Jeanne sobre a teoria dos grafos com o diálogo de Simon e Ralph nos preparativos para a luta, aos acontecimentos do passado de Nawal e Sawda ao lado da presença de Jeanne, ouvinte do silêncio da matriarca. Tensão temporal que pode tanto ser alcançada através de uma teoria da relatividade – comum àqueles que veem a cisão do homem contemporâneo pela crise epistemológica das ciências – quanto como uma ambiguidade metafísica e fantasmagórica.

Num momento rico de estranheza da peça, a personagem de Sawda se dirige a Jeanne e diz: Você não viu uma moça chamada Nawal? A fala não chega a ser ouvida, mas reforça a potência de jogo, e, certamente, Mouawad constrói em seu tablado uma metafísica quântico-ficcional (que recorda os filmes de Kieslowski), pois o palco torna-se um espaço por excelência de fusão de tempos e espaços. Entretanto, ainda assim, observaremos a progressiva linearidade de causa-efeito como um conjunto macro que coordena esta grande “‘sinfonia” dramática.

Se Incêndios é uma grande sinfonia, Aderbal Freire-Filho é, sobretudo, o maestro que conduz com domínio os objetos, as bifurcações do tempo e das ações numa montagem de muito êxito. As marcas, o ritmo e o controle da montagem como um todo revela uma carpintaria experiente diante dos contrastes de tratamento do texto, explorando marcas simbólicas como o encontro corporal dos gêmeos e momentos de atuação mais performática (o canto Pop de Júlio Machado e a belíssima cena de Fabianna de Mello e Souza interpretando a mãe e a avó de Nawal), misturados a registros absolutamente cotidianos. São muitas notas dissonantes, variados timbres, e, felizmente, Aderbal não desafina diante do grande risco de encenar todo esse compêndio de materialidades.

Vale ressaltar que o elenco experiente transita desde o virtuosismo da máscara, como é o caso da atriz Fabianna de Mello e Souza (Jihane, Elhame, Nazira, Marie, Fotógrafo), que vive personagens arquetípicos do passado de Nawal entre outros mais cotidianos, até o requinte de construção introspectiva de Kelzy Ecard (Sawda). Isaac Bernat (Wahab, Médico, Guia, Abdessamad, Fahim, Malak, Chamsedinne) não chega a executar com o virtuosismo técnico de Fabiana de Mello e Souza os seus personagens-tipo, mas por outro lado consegue equilibrar mais o seu trabalho em todo o leque de personagens interpretados, marcando suas composições com vivacidade desde os papéis mais cotidianos aos mais pitorescos. O tratamento cotidiano de Marcio Vito ao tabelião, apresentando-o como um homem comum e sofrido de ironia doída, erige uma espécie de película fina que nubla, inteligentemente, por meio de uma quarta parede ambígua e vazada, o caráter quase esquemático da personagem na peça. Já Júlio Machado (Ralph, Miliciano, Nihad) impõe sua presença física e carismática sem se perder no próprio carisma. Felipe De Carolis (Simon) e Keli Freitas (Jeanne) estão bem na construção da cumplicidade dos irmãos, e talvez a atriz tenha mais plasticidade em sua emoção. Já Marieta Severo não pareceu estar num bom dia quando eu fui ao espetáculo. Cheguei a achá-la no início da peça um pouco dispersa e a maior parte do tempo fria. Mas, apesar da frieza, soube apresentar a sua personagem de modo claro e técnico sem comprometer o espetáculo. Contudo, não fui capaz de ver a frieza exposta como um enrijecimento de caráter da personagem. Soou-me uma dificuldade de entrega da atriz ou um mau dia.

A carpintaria clara e coesa de Incêndios solicita, me parece, um tratamento mais técnico e preciso da encenação – técnica como domínio de um saber. Essa, não resta dúvida, deve ser apreciada no espaço do Teatro Poeira. Afinal, a lógica da carpintaria quando pensada como um saber requer, igualmente do observador, o registro de suas impressões mecânicas e opinativas (o bem feito e o mal feito), o que dificulta em muito o exercício crítico e reflexivo. Mas no âmbito vago das opiniões, sempre vale a pena a divergência em vez do consenso.

João Cícero Bezerra é crítico teatral, dramaturgo e teórico de arte, formado em Teoria do Teatro, mestre em Artes Cênicas e doutorando em História Social da Cultura.

Leia também a conversa com Angela Leite lopes sobre a tradução de Incêndios :: http://www.questaodecritica.com.br/2013/12/modos-de-dizer/

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