Modos de dizer

Conversa com Angela Leite Lopes sobre a tradução da peça Incêndios

27 de dezembro de 2013 Conversas
Incêndios. Foto: Leo Aversa.

A peça Incêndios, de Wajdi Mouawad, esteve em cartaz no Teatro Poeira no segundo semestre de 2013, com direção de Aderbal Freire-Filho. A seguir, Daniele Avila Small e Dinah Cesare conversam com a tradutora da peça, Angela Leite Lopes.

DINAH: Wajdi Mouawad, na apresentação da dramaturgia de Incêndios, nos diz que escreveu seu texto aos poucos, por meio de relações que estabeleceu com dados que surgiam dos atores durante os ensaios. Tal aspecto encontrou alguma ressonância em sua tradução? Os atores da produção brasileira entraram em contato de algum modo com a tradução durante o processo?

ANGELA: Melhor eu contar como foi o processo de tradução da peça… O Felipe de Carolis, idealizador do projeto, me procurou para encomendar a tradução. Ele ainda não tinha nada fechado em termos de criação do espetáculo: direção, elenco etc. Fiz uma primeira versão da tradução e enviei pra ele. Sempre faço assim: termino a primeira versão e organizo uma leitura durante a qual eu acompanho no original. É o momento de conferir se pulei alguma frase, pedaço de frase ou palavra… É o momento de ouvir o texto em português e testar a partitura rítmica. É o momento também em que alguns sentidos se revelam com mais clareza e que se começa a verificar se algumas opções de estilo estão funcionando e de ir limpando os galicismos. É muito importante pra mim nas primeiras versões (porque é necessário fazer várias revisões da tradução) permanecer o mais próximo possível das opções estilísticas do autor, não ir transformando logo tudo no “em português se diz assim ou se usa isso” porque em teatro muitas vezes algumas expressões idiomáticas são na verdade momentos em que o texto se coloca como elemento de jogo mesmo, como um contracenar, e não está ali simplesmente para expressar uma ideia… Enfim, essa primeira leitura é importante por todos esses motivos. No caso do Incêndios, eu comecei a tradução em março de 2012 e em maio enviei a primeira versão para o Felipe, que já estava procurando montar o elenco e a equipe de criação do espetáculo. Na correria em que todos nós vivemos, ele só conseguiu marcar uma leitura em agosto e tudo ficou resolvido muito em cima do hora em função dos compromissos dos atores por ele contatados. Acabou que eu não consegui estar presente nessa primeira leitura. Pelo que contaram, o texto fluiu, o elenco se emocionou muito… e ali o Felipe já começou a reunir parte do elenco do espetáculo, inclusive e principalmente a Marieta Severo. Foi então marcada uma leitura no final de agosto já no Poeira e já com o Aderbal. Foi aí que eu consegui acompanhar no original e ouvir o texto pela primeira vez. A partitura rítmica estava ali, a emoção que o texto provoca também. Havia algumas expressões e algumas brincadeiras de estilo a ajustar, principalmente no personagem do tabelião. Aderbal fez algumas observações pontuais mas ali eles ainda estavam fechando a escalação do elenco. Em outubro, nos reunimos, Felipe, Marieta e eu, e relemos a peça cuidadosamente, discutindo e ponderando vários aspectos. É sempre muito interessante ver de que maneira cada um estabelece a sua relação com um texto. A Marieta é muito cuidadosa com a clareza, com a fruição do espectador. O Felipe é também roteirista e é alguém que tem uma boa noção de estrutura dramática. Eu sempre embarco na viagem do autor. Wajdi Mouawad, justamente por escrever suas peças ao longo do processo de ensaios, é um autor que faz o texto entrar no jogo e na brincadeira do teatro. Então ele cria algumas estranhezas propositais. E eu vou sempre defender essas estranhezas porque são os momentos em que o texto pede cena. Depois desse trabalho que fizemos nós três, ainda assisti a uma leitura e voltei a mexer na tradução, enviando então a versão com a qual iniciaram os ensaios. Acabei, por diversos motivos, não podendo acompanhar esse processo. De todo modo, quando direção e elenco começam a criar o espetáculo, as apropriações vão ocorrendo, nos cortes, no jogo dos atores e nos achados da cena, e isso se torna possível porque a partitura do texto sua estrutura rítmica está amarrada.

DINAH: Lembro de um texto seu em que você esclarece o trabalho de encontrar as palavras que mais se aproximam da noção presente no original. Você usou um dos exemplos das traduções que realizou de Valère Novarina, que lhe deu ensejo para a criação de um termo de caráter original também no português. Você identifica uma operação semelhante em algum lugar da tradução de Incêndios?

ANGELA: Bem, nos textos de Novarina, som e sentido estão muito ligados… Você deve estar se referindo ao “la lumière nuit”, que é algo que volta muito, volta em quase todos os textos dele e que depois de vários anos buscando, acabei traduzindo por “a luz noitinha”… No caso do Mouawad, a operação com o texto é diferente. Eu tive que, em primeiro lugar, me aproximar das gírias do Québec, que são completamente diferentes das gírias da França. Depois manter os registros: mais poético nas falas de Nawal e Wahab; mais agressivo e com muita gíria nas falas do Simon; e o lado cômico, com expressões propositalmente truncadas, com um estilo entre o grave o bufão do tabelião. A tradução de textos assim, que contam uma história com início meio e fim e que se colocam diante da História, são delicadas porque, como falei acima, o interessante, a beleza de um texto como esse reside nas brincadeiras com os registros de linguagem, fazendo dele um texto teatral, um texto para a cena, para o jogo do ator. Então são nuances, são opções sutis que têm que ser encontradas e mantidas. Digo isso porque às vezes a tentação é grande, por parte do ator, mais tarde por parte do editor, de ser mais direto, de trazer expressões mais usuais para transmitir o que se está querendo dizer e isso ocorre muitas vezes em detrimento do teatral. Mas teatro não é o que se está querendo dizer, mas modo de dizer… Nesse sentido, o Aderbal fez um lindo trabalho enfatizando justamente esse lado teatral: o espetáculo começa com a filha da Nawal entrando num teatro procurando a antiga enfermeira da mãe que agora trabalha nesse teatro. E aí ele emenda com a primeira cena da peça que é o tabelião chamando os gêmeos para entrarem em seu escritório. O Aderbal colocou o tabelião se dirigindo à plateia, num convite a entrar na história, na peça, no teatro. O interessante nesse texto é essa dimensão do teatral, reforçada no final da peça quando o Nihad revela sua identidade ao mostrar o nariz de palhaço. Ali ele junta tragédia e comédia e faz um elogio ao teatro.

DANIELE: Uma coisa me chama a atenção em Incêndios, algo que aparece em alguns momentos do espetáculo e especialmente na atuação da Marieta, que é uma certa dimensão do trágico. Você acha que há algo, na linguagem do texto, talvez uma cadência, um ritmo, uma economia da palavra, que coloque essa possibilidade em jogo? Há, em Incêndios, uma formalização da fala, uma elaboração na lida com as palavras, que aponte na direção do trágico?

ANGELA: Sim, exatamente o que eu estava dizendo acima. Incêndios traz muitas referências claras ao Édipo na história da mãe que tem filhos com seu próprio filho, sem saber. Mouawad gosta de fazer referências à mitologia grega. E a sua reflexão sobre a guerra do Oriente Médio vem carregada de noções como destino, fatalidade, terror… e compaixão. Além do mais, Incêndios faz parte de uma tetralogia. Mas o ponto forte, sem dúvida, é esse seu compromisso com o lúdico, o teatral. O fato de ele ter um grupo de teatro, escrever pra ele e com ele. Então essa opção teatral pela tragédia passa por aí mesmo, como você falou: por um poético conciso, um pouco árido. Claro que há também os longos relatos, a descrição emocionada e emocionante de Sawda e Nawal de todo o horror que elas viveram e presenciaram. Há momentos prolixos. Mas o fio condutor da peça está na história da mulher que foi aprender a ler e a escrever para sair da miséria e do ódio. Com isso ele desvia do enredo edipiano, que já virou drama! E traz de volta para o jogo da linguagem que é onde reside o trágico.

DANIELE: A palavra é tema na peça. A palavra falada, a palavra escrita, a revelação que aparece nos relatos falados, a revelação que está nas cartas. A palavra como promessa, como a da mãe para o filho, “aconteça o que acontecer, te amarei pra sempre”, a palavra quase como amuleto, como em “agora que estamos juntos, melhorou”. A palavra como documento: o testamento que desencadeia toda a ação, o compromisso do tabelião Hermile Lebel com as palavras escritas. Sawda fala de um mundo opaco, mudo, sem a escrita. Nazira ensina a Nawal a liberdade no domínio da língua escrita. No processo de tradução, as palavras tinham esse peso? A tradução trouxe, para você, alguma dimensão de revelação sobre o texto?

ANGELA: Sim. Aliás, isso sempre acontece. Vou traduzindo e vou desvendando a graça, a beleza do texto. O texto teatral é bonito por sua estrutura mais do que por suas imagens, suas mensagens. Lembro quando traduzi para o francês Dois perdidos numa noite suja, do Plínio Marcos, e fui percebendo como a história dos sapatos, que se repete ao longo da peça, amarrava o texto do ponto de vista rítmico, do ponto de vista da partitura sonora. Quando li pela primeira vez Incêndios, achei muito bem escrita, mas não fiquei entusiasmada, confesso. Fiquei um pouco preocupada com as gírias do Québec, como falei no início. Eu tinha que me familiarizar com esse outro modo de falar francês… Mas ao longo da tradução, justamente como as palavras tinham esse peso, como você falou, fui percebendo a beleza do trabalho de escrita do Mouawad. Esses trechos que você cita se repetem. Essas repetições vão pontuando o texto, dando o seu ritmo próprio. As falas do tabelião Hermile Lebel, com frases interrompidas ou que não se completam do jeito previsível, também são momentos de que gosto muito. A cena do cemitério, quando eles estão esperando os baldes, é uma das que eu prefiro. Gosto também do diálogo juvenil de Nawal e Wahab: aquela explosão do amor deles e eles não sabendo bem o que fazer com isso, mas já prenunciando toda a… tragédia!… Claro que tem os contrapontos com os rompantes do Simon, com muito palavrão e muita gíria. Tem o lado racional da Jeanne, falando por metáforas matemáticas, que são recorrentes também nos textos do Mouawad. Mas sem dúvida, a beleza do texto está no limite e no poder de transgressão da palavra.

Dinah Cesare é teórica do teatro, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (EBA- UFRJ) dentro da Área de Teoria e Experimentações em Arte na Linha de Pesquisa Poéticas Interdisciplinares e mestra em Artes Cênicas pela UNIRIO.

Daniele Avila Small é mestra em História Social da Cultura pela PUC e bacharel em Teoria do Teatro pela UNIRIO.

Leia também a crítica de Incêndios, por João Cícero :: http://www.questaodecritica.com.br/2013/12/carpintaria-%E2%80%93-o-drama-e-a-cena-apontamentos-e-duvidas/

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